segunda-feira, março 26, 2007

O brinco



Cá estou eu, de quatro feito um cachorro,
a farejar a porra de um brinco.
Minha mulher vai chegar de viagem
daqui a umas duas horas. Ela, as crianças
e o cachorro. Se eu não achar
o brinco antes de qualquer um deles,
estou ferrado.

O quarto ainda está de pernas
pró ar e eu me sentindo um crápula.
Me sentindo, médio. Foi bom.
Minto. Muito bom. Minto.
Ótimo virar a loura pelo avesso,
conspurcando meu próprio leito conjugal.
Ia começar a arrumar a
casa quando o telefone tocou.

"Perdi um brinco aí", ela disse;
Eu gelei.
"Aí onde?", a pergunta soou meio idiota. "Sei lá" - a voz macia respondeu do outro lado da linha- A gente fez amor pela casa toda".

Fiquei mudo um tempão.
"Alô" - Novamente
O veludo da voz. A loura deve ter
repetido o "alô" umas dez vezes.
"Pedro?"- Meu nome nem Pedro é .
"Vê se não liga mais pra cá" falei a
primeira coisa que me veio a cabeça.

"Cachorro! Na próxima vez deixo
Sua mulher achar o brinco".

Não vai haver próxima vez, pensei sem muita firmeza;
desliguei o telefone da tomada.

Prioridades: encontrar o brinco, arrumar
a casa, apagar as pistas, não
necessariamente nessa ordem.

Porra, eu podia ter perguntado
como é o brinco!
De ouro, de pérola, estrelinha,
Pingente, bolinha...
Bem, agora já foi!
Eliane, Eliane. Não chegue agora, meu bem.
Fure um pneuzinho, pare no Rancho da Pamonha,
Pegue uma blitz da polícia rodoviária,
qualquer coisa do tipo.
Acidente, não. Meus filhos não
podem sofrer um arranhãozinho.

Cadê o brinco?

Porra, calma.
Vamos reconstituir os passos.
Cozinha, primeiro.
A loura, só de avental e salto alto,
preparando um tagliatelle com ervas finas.
Eu, abrindo a primeira garrafa de
Casillero del Diablo, Sarah Brightman
espalhando a voz pelo Dolby estéreo:
"time to say goodbye..."

Esquece isso, canalha! Não dá.
Eu, colado na marquinha do biquini,
ajudando a mexer o molho,
mordendo sua orelha...

O brinco, porra!

Nem reparei se ela estava
de brinco! Eu, com a mão por
dentro do avental, segurando o seio
dela, a loura rindo, perguntando se eu
queria que o molho desandasse...

O molho vai desandar é se eu não achar a porra do brinco e Eliane achar.
Eliane, Eliane, meu amor, porque você aparece em minha cabeça nessas horas?
Quer fazer com que eu me sinta culpado?
Tá bem, sou culpado, mas
juro que esta foi a primeira vez.
Este ano.

Nada na pia, nada embaixo
do escorredor de pratos, nada embaixo
da grelha do fogão.
E se o brinco caiu no molho e eu comi?
Não, eu teria notado, mesmo que fosse
uma perolazinha de nada.

Você é louco, cara. Como é que
Traz uma mulher como essa para o
recesso de seu lar; templo sagrado
onde seus pimpolhos habitam;
santuário da sua esposa fiel?
Onde é que você estava com a cabeça?
No colo da loura, depois do jantar
maravilhoso que ela - já meio alta
depois da garrafa de Casillero
- Servira só de gravatinha borboleta
e guardanapo de linho branco
pendurado no braço.
No colo da loura,
ela já sem o guardanapo - mas ainda
de gravatinha - a folhear meus
Gibis eróticos:
Valentina, de Crépax;
Paulette, de Wolinsky & Pichard;
Druuna, de Paolo Eleuteri Serpentiere;
O Click, de Milo Manara.

Estou tentando recordar nossos passos
para descobrir onde o brinco pode
ter caído..
Os passos.
Sarah Brightman se foi - "Time to say
Goodbye" - e Astor Piazzollaa atacou
de "mano a mano".
Passos de tango com a loura
só de salto e gravata borboleta,
o cabelo preso no alto da nuca,
atrás das orelhas; a orelha onde
deveria estar o brinco que eu não vi.
Porra!
Uma hora dessas a Eliane já deve
estar na Avenida Brasil.
Tomara que o trânsito esteja infernal.
Sim, ainda é cedo, todo mundo está
vindo para o centro trabalhar.
Sim, as pistas devem estar todas
congestionadas na Brasil, espero.
As pistas.
Abrir todas as janelas,
deixar o ar circular.
Eliane tem olfato de perdigueiro.
Ai, cacete! Deus queira que ela
não não sinta nenhum cheiro de
perfume; eu não estou sentindo.
Trocar os lençóis e fronhas, rápido.
O brinco. Pode bem ter caído embaixo
da cama ou se perdido nos lençóis.
Se perder nos lençóis.
A voz macia dizendo:
" Venha, amor, se perder nos lençóis".
Desculpe, Eliane, mas não dava
pra deixar passar.
Sou um pústula, eu sei.
Abominável, no mínimo.
Eu me penitencio:
ando de 4 se você quiser,
ó rainha do lar, me arrasto a seus pés,
prometo a Nossa Senhora, mas me
ajude a achar esse brinco.
Aqui no quarto, no canto,
tem uma poltrona Le Corbusier,
que ela usa pra ler e eu usei para
colocar de quatro a gazela dourada.
Que vergonha.
Mas ela estava linda como
uma estátua de Rodin.
O brinco pode ter caído ali, no canto,
enquanto eu a cavalgava.
Não, não está, não caiu.

Porra!
Seu panaca!
Se você se safar dessa, nunca mais,
ouviu?
A língua da loura na minha orelha.
Eu não ouvi nada.
Eram só fluídos, fluídos diversos e o ouro dos pelinhos da coxa daquela valquíria do sexo, tremendo junto com suas pernas,
flanando como minúsculos estandartes.
Porra, vou ter um troço.
Minha respiração está ofegante e
estou banhado de suor.
Tenho que achar o brinco e antes
que Eliane chegue, tomar um banho,
se der tempo.
O banheiro!
Só pode estar lá!
Claro! Eu vi a Deusa loura
colocando de volta nos dedos os
anéis que deixara num canto da pia.
Ela bem pode ter colocado de
volta os anéis e esquecido os brincos.
Um deles, pelo menos.
Ou os dois.
Os dois: eu e ela na Jacuzzi que
Eliane mandou instalar.
Isso não se faz. Se eu fosse outro
estaria profundamente arrependido; eu
quero me arrepender mas não
consigo, como não consigo

ACHAR A PORRA DO BRINCO!

Minha esperança é que tenha caído
no ralo, ou quem vai escorrer pelo ralo é o meu casamento feliz de oito anos,
um casal de crianças lindas, um lar harmonioso e uma esposa que é um tesão,
uma fera na cama, a
melhor trepada do mundo,
bem-humorada, inteligente;
uma mulher de parar o trânsito,
na flor de seus 27 anos;
e eu, cretino, trepando dentro de casa
com uma loura burra - mas gostosa,
reconheço - que não sabe nem
onde põe os brincos.

Talvez minha Eli esteja na Lagoa,
que é bem perto daqui.
Deixa eu colocar o telefone de
novo na tomada.
Pronto. Ouvi um latido.
Adeus, mundo cruel.

O telefone e a campainha tocaram
ao mesmo tempo.

Alô". Tenho que abrir, seja o
que Deus quiser.
"Pedro?" - a voz macia - "Tem mais de
2 horas que estou ligando praí e só dá ocupado.
Ó, não precisa se preocupar,
achei o brinco, estava na bolsa"

Desliguei e corri pra porta.
Eliane abriu o seu sorriso
maravilhoso de 32 dentes perfeitos.

Tive uma ereção!!!

L.F.Veríssimo

Tela:Rodin

6 comentários:

Fatyly disse...

Fartei-me de rir e como gosto de Luis F.Verissimo:):):):):)

Bom dia*****

poetaeusou . . . disse...

*********
brinco com o brinco,
e no brinco em casa,
ficou cá um brinco,
que a brincar me arrasa
e tu sem o brinco
por em casa brincar
brinco procurando
e a porra do brinco
brinca com o que brinco
e a mulher chegando
porque não brinco com ela
se brinco com o brinco
o brinco a outra não tem
nunca mais brinco
nem brincar com alguem
brinco com tal confusão
a procurar o brinco
o que sinto ?
nada ...
nem sequer …
uma simples erecção ...
*
bj)
*********

Maria Carvalho disse...

Magnífico!!!!

SÓNIA P. R. disse...

Ai minha nossa senhora?
Já entrei e saí. Lol!!

Beijinho Isabel.

Uxka disse...

Wind, que coisa fantástica!
A-do-rei! (com doce sotaque brasileiro)

Special K disse...

He he gostei. Uma beijoca.