sábado, março 31, 2007

Duplar



Eu e você
deixar a boca
resvalar para
a outra boca
no beijo húmido
intenso, ávido

duplar
eu e você
em par
em perna
em mão
em coração batendo
lírico, lúcido
ímpeto
de estar
de entrar
sair
ficar
entrar
gozar
em par

duplar
em voz
em beijo sôfrego
em língua húmida
nos seios túrgidos
duplos
pêssegos
bicos tépidos

duplar
em olhos cúmplices
em mãos de artífice
na pele ardente
nas mucosas cálidas
límpidas, púrpuras
em pernas escancaradas
envolventes
sobre
as costas pálidas

duplar
eu em você
em secreções, saliva
você em mim
em contrações
espamos
múltiplos
nós dois
como um barco
à deriva
sem hora ou
lugar
para chegar

duplar
eu em você
você em mim
ávidos
máximos
gozar
em par
de modo ímpar
até ficarmos
fartos
cansados
tontos
de orgasmos
múltiplos
tantos
únicos

duplar
eu em você
dormir
e nem perceber
o corpo
sorrir.

Nálu Nogueira

Foto:Anna.Edyta Przybysz (aprzybysz)

PS:Como se mostraram interessados pelo poema, deixo aqui o link onde tirei este e onde há muitos mais.

A invisibilidade de Deus



Dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão de sua bondosa mão

o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu.

Al Berto

Tela:Miguel Ângelo

sexta-feira, março 30, 2007

31



Amor, então,
também acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

Paulo Leminsk

Foto:Elena Vasileva

Menina dos olhos de água



Menina em teu peito sinto o tejo
E vontades marinheiras de aproar
Menina em teus lábios sinto fontes
De água doce que corre sem parar
Menina em teus olhos vejo espelhos
E em teus cabelos nuvens de encantar
E em teu corpo inteiro sinto feno
Rijo e tenro que nem sei explicar
Se houver alguém que não goste
Não gaste, deixe ficar
Que eu só por mim quero te tanto
Que não vai haver menina para sobrar
Aprendi nos 'esteiros' com soeiro
E aprendi na 'fanga' com redol
Tenho no rio grande o mundo inteiro
E sinto o mundo inteiro no teu colo
Aprendi a amar a madrugada
Que desponta em mim quando sorris
És um rio cheio de água lavada
E dás rumo à fragata que escolhi
Se houver alguém que não goste
Não gaste, deixe ficar
Que eu só por mim quero te tanto
Que não vai haver menina para sobrar

Pedro Barroso

quinta-feira, março 29, 2007

Uma madrugada



Uma madrugada, tudo quieto,
impera a treva. A solidão escuto,
vislumbro véus de crepe no horizonte
da Natureza amarfanhada em luto.

Um pássaro noturno, depenado,
pousa num galho já se despencando
de uma roseira que não dá mais rosas ou, se elas nascem, nascem já murchando.

E, do relógio branco da parede, as setas apontadas para mim
afirmam que esta miserável noite
parou no tempo e nunca terá fim.

Alda Pereira Pinto

Foto:Stanmarek

Receita de mulher



As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República [Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Qu tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da [aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca húmida!) e também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem [saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de [coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima [penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca [inferior
A 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras
Do 1° grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer [beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ele não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

Vinícius de Moraes

Foto:Stanmarek

PS:Coloquei esta prosa de propósito, porque a acho machista. Mais nenhum poema de Vinícius ou prosa é assim, pelo menos que eu tenha conhecimento.

Livro das horas



Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

Miguel Torga

Foto:Oleg Gedevani

quarta-feira, março 28, 2007

Mesmo que não conheças



Mesmo que não conheças nem o mês nem o lugar
caminha para o mar pelo verão

Ruy Belo

Foto:Zacarias Pereira da Mata

Sem título



A perna docemente erguida sobre a página:
um verso assim não escreves sem meu gozo.
Sabia como marcar as frases onde retornar.
Os dois se buscavam entre enigmas e risos,
devolviam a cada um o que iam encontrando,
restos do outro, pequenas sombras dispersas.
Abro-te os lábios todos da casa. Não vês ali
na varanda uma parte de ti já esquecendo-se?
A voz podia estar entregue a qualquer um,
a dar por assombro a noite em um capítulo
de espasmos: olhos rabiscando-se, imagens
saltando do sexo de ambos, toda ela, todo ele,
tudo para encontrar-se e dizer: já estivemos.
Somente o amor nos revela o que perdemos.

Floriano Martins

Foto:Anna.Edyta Przybysz (aprzybysz)

Cem sonetos de amor-XIV



Me falta tiempo para celebrar tus cabellos.
Uno por uno debo contarlos y alabarlos:
otros amantes quieren vivir con ciertos ojos,
yo sólo quiero ser tu peluquero.

En Italia te bautizaron Medusa
por la encrespada y alta luz de tu cabellera.
Yo te llamo chascona mía y enmarañada:
mi corazón conoce las puertas de tu pelo.

Cuando tú te extravíes en tus propios cabellos,
no me olvides, acuérdate que te amo,
no me dejes perdido ir sin tu cabellera

por el mundo sombrío de todos los caminos
que sólo tiene sombra, transitorios dolores,
hasta que el sol sube a la torre de tu pelo.

Pablo Neruda

Foto:Stanmarek

terça-feira, março 27, 2007

Constância feminina



Agora já me amaste por um dia inteiro.
Amanhã, quando partires, o que dirás?
Irás antedatar algum voto mais recente?
Ou dizer que, agora,
Já não somos exactamente os mesmos de antes?
Ou que as juras, feitas por medo reverencial
Ao Amor e à sua ira, se podem renegar?
Ou, como veras mortes desligam veros casamentos,
À imagem destes, os contratos dos amantes
Unem só até que o sono, imagem da morte, os separe?
Para justificar teus próprios fins,
Tendo proposto mudança e falsidade, não terás tu
Outro meio senão a falsidade para seres sincera?
Lunática vã, contra tais evasivas eu poderia
Argumentar e ganhar, se quisesse,
O que me abstenho de fazer
Porque, amanhã, poderei vir a pensar como tu.

John Donne (tradução Helena Barbas)

Foto:Stanmarek

Alguém me explica porquê?



Alguém é capaz de me explicar como este ditador fascista é considerado o melhor português de todos os tempos??????????

Fragmentos de um Diário



Amo
as águas no instante em que não são do rio
Nem pertencem ainda ao mar.....
.....árduas planícies rosto incendiado pesando-me
nos ombros
hirto....tatuado no entardecer de magoada cocaína.....

.....leio baixinho aquele poema Eu de Belaflor
nocturna sombra de corpo embriagado
fogos por descuido acesos no húmido leito dos juncos...
...altíssima margem....inacessível noite de Florbela

e o soneto dizia: Sou aquela que passa e ninguém vê
sou a que chamam triste sem o ser
sou a que chora sem saber porquê

...apesar de tudo conheço bem este rio
e o cuspo diáfano do coral o sono letárgico
dos reduzidos seres marinhos esmagados
na pressa do mar...possuo este resíduo de vida estelar
gravada na pele está a cabeça de medusa loura....dói
nas comissuras penumbrosas das falésias
que me evocam
os ternos lábios das grandes bocas fluviais.....

...sinto o rigor das plantas erectas as vozes esparsas
os corpos de ouro enleados na violência das maresias....
...junto à foz de meu inseguro desaguar...continuo sentado
escrevo a desordem urgente das horas...medito-me
cuidadosamente o tabaco amargo pressente-te na garganta
e no fundo inóspito do corpo desenvolve-se
o desejo de fugir....
.... espero o cortante sal-gema das ilhas.....a ilusão
conseguir prolongar-me na secreta noite dos peixes....
...adormeço enfim
para que estes dias aconteçam mais lentos
nas proximidades inalteráveis deste mar....

Al Berto

Foto:Wind

PS:Por motivos de insanidade mental e não só,neste momento não sou capaz de comentar os poucos blogs onde ainda o faço. Por tal peço desculpa.

segunda-feira, março 26, 2007

O tempo



Não sei definir o tempo.
Ele cai sobre a minha cama
mas usa máscaras.
Se disfarça de vento
mas é monotonia.
Usa roupas de sombras
mas é dia quente.
Tem um jeito de anjo
mas é solidão...
O tempo caminha pelo corredor
sem ter acordado.
É sonâmbulo de alma inquieta,
um grito abafado
em um salão vazio.
Tempo sádico que mata
todos os meus motivos,
deturpa as minhas vontades,
rabisca meus desejos e some.
Não sei definir o tempo.
Não sei se ele cura
ou se passa por cima.
Pode ser homem, mulher,
qualquer coisa.
O tempo que me sufoca,
o tempo que me abriga...
nasce / morre / renasce
Poema adormecido,
outro dia...

Daniela Furmankiewicz

Foto:Oleg Gedevani

O brinco



Cá estou eu, de quatro feito um cachorro,
a farejar a porra de um brinco.
Minha mulher vai chegar de viagem
daqui a umas duas horas. Ela, as crianças
e o cachorro. Se eu não achar
o brinco antes de qualquer um deles,
estou ferrado.

O quarto ainda está de pernas
pró ar e eu me sentindo um crápula.
Me sentindo, médio. Foi bom.
Minto. Muito bom. Minto.
Ótimo virar a loura pelo avesso,
conspurcando meu próprio leito conjugal.
Ia começar a arrumar a
casa quando o telefone tocou.

"Perdi um brinco aí", ela disse;
Eu gelei.
"Aí onde?", a pergunta soou meio idiota. "Sei lá" - a voz macia respondeu do outro lado da linha- A gente fez amor pela casa toda".

Fiquei mudo um tempão.
"Alô" - Novamente
O veludo da voz. A loura deve ter
repetido o "alô" umas dez vezes.
"Pedro?"- Meu nome nem Pedro é .
"Vê se não liga mais pra cá" falei a
primeira coisa que me veio a cabeça.

"Cachorro! Na próxima vez deixo
Sua mulher achar o brinco".

Não vai haver próxima vez, pensei sem muita firmeza;
desliguei o telefone da tomada.

Prioridades: encontrar o brinco, arrumar
a casa, apagar as pistas, não
necessariamente nessa ordem.

Porra, eu podia ter perguntado
como é o brinco!
De ouro, de pérola, estrelinha,
Pingente, bolinha...
Bem, agora já foi!
Eliane, Eliane. Não chegue agora, meu bem.
Fure um pneuzinho, pare no Rancho da Pamonha,
Pegue uma blitz da polícia rodoviária,
qualquer coisa do tipo.
Acidente, não. Meus filhos não
podem sofrer um arranhãozinho.

Cadê o brinco?

Porra, calma.
Vamos reconstituir os passos.
Cozinha, primeiro.
A loura, só de avental e salto alto,
preparando um tagliatelle com ervas finas.
Eu, abrindo a primeira garrafa de
Casillero del Diablo, Sarah Brightman
espalhando a voz pelo Dolby estéreo:
"time to say goodbye..."

Esquece isso, canalha! Não dá.
Eu, colado na marquinha do biquini,
ajudando a mexer o molho,
mordendo sua orelha...

O brinco, porra!

Nem reparei se ela estava
de brinco! Eu, com a mão por
dentro do avental, segurando o seio
dela, a loura rindo, perguntando se eu
queria que o molho desandasse...

O molho vai desandar é se eu não achar a porra do brinco e Eliane achar.
Eliane, Eliane, meu amor, porque você aparece em minha cabeça nessas horas?
Quer fazer com que eu me sinta culpado?
Tá bem, sou culpado, mas
juro que esta foi a primeira vez.
Este ano.

Nada na pia, nada embaixo
do escorredor de pratos, nada embaixo
da grelha do fogão.
E se o brinco caiu no molho e eu comi?
Não, eu teria notado, mesmo que fosse
uma perolazinha de nada.

Você é louco, cara. Como é que
Traz uma mulher como essa para o
recesso de seu lar; templo sagrado
onde seus pimpolhos habitam;
santuário da sua esposa fiel?
Onde é que você estava com a cabeça?
No colo da loura, depois do jantar
maravilhoso que ela - já meio alta
depois da garrafa de Casillero
- Servira só de gravatinha borboleta
e guardanapo de linho branco
pendurado no braço.
No colo da loura,
ela já sem o guardanapo - mas ainda
de gravatinha - a folhear meus
Gibis eróticos:
Valentina, de Crépax;
Paulette, de Wolinsky & Pichard;
Druuna, de Paolo Eleuteri Serpentiere;
O Click, de Milo Manara.

Estou tentando recordar nossos passos
para descobrir onde o brinco pode
ter caído..
Os passos.
Sarah Brightman se foi - "Time to say
Goodbye" - e Astor Piazzollaa atacou
de "mano a mano".
Passos de tango com a loura
só de salto e gravata borboleta,
o cabelo preso no alto da nuca,
atrás das orelhas; a orelha onde
deveria estar o brinco que eu não vi.
Porra!
Uma hora dessas a Eliane já deve
estar na Avenida Brasil.
Tomara que o trânsito esteja infernal.
Sim, ainda é cedo, todo mundo está
vindo para o centro trabalhar.
Sim, as pistas devem estar todas
congestionadas na Brasil, espero.
As pistas.
Abrir todas as janelas,
deixar o ar circular.
Eliane tem olfato de perdigueiro.
Ai, cacete! Deus queira que ela
não não sinta nenhum cheiro de
perfume; eu não estou sentindo.
Trocar os lençóis e fronhas, rápido.
O brinco. Pode bem ter caído embaixo
da cama ou se perdido nos lençóis.
Se perder nos lençóis.
A voz macia dizendo:
" Venha, amor, se perder nos lençóis".
Desculpe, Eliane, mas não dava
pra deixar passar.
Sou um pústula, eu sei.
Abominável, no mínimo.
Eu me penitencio:
ando de 4 se você quiser,
ó rainha do lar, me arrasto a seus pés,
prometo a Nossa Senhora, mas me
ajude a achar esse brinco.
Aqui no quarto, no canto,
tem uma poltrona Le Corbusier,
que ela usa pra ler e eu usei para
colocar de quatro a gazela dourada.
Que vergonha.
Mas ela estava linda como
uma estátua de Rodin.
O brinco pode ter caído ali, no canto,
enquanto eu a cavalgava.
Não, não está, não caiu.

Porra!
Seu panaca!
Se você se safar dessa, nunca mais,
ouviu?
A língua da loura na minha orelha.
Eu não ouvi nada.
Eram só fluídos, fluídos diversos e o ouro dos pelinhos da coxa daquela valquíria do sexo, tremendo junto com suas pernas,
flanando como minúsculos estandartes.
Porra, vou ter um troço.
Minha respiração está ofegante e
estou banhado de suor.
Tenho que achar o brinco e antes
que Eliane chegue, tomar um banho,
se der tempo.
O banheiro!
Só pode estar lá!
Claro! Eu vi a Deusa loura
colocando de volta nos dedos os
anéis que deixara num canto da pia.
Ela bem pode ter colocado de
volta os anéis e esquecido os brincos.
Um deles, pelo menos.
Ou os dois.
Os dois: eu e ela na Jacuzzi que
Eliane mandou instalar.
Isso não se faz. Se eu fosse outro
estaria profundamente arrependido; eu
quero me arrepender mas não
consigo, como não consigo

ACHAR A PORRA DO BRINCO!

Minha esperança é que tenha caído
no ralo, ou quem vai escorrer pelo ralo é o meu casamento feliz de oito anos,
um casal de crianças lindas, um lar harmonioso e uma esposa que é um tesão,
uma fera na cama, a
melhor trepada do mundo,
bem-humorada, inteligente;
uma mulher de parar o trânsito,
na flor de seus 27 anos;
e eu, cretino, trepando dentro de casa
com uma loura burra - mas gostosa,
reconheço - que não sabe nem
onde põe os brincos.

Talvez minha Eli esteja na Lagoa,
que é bem perto daqui.
Deixa eu colocar o telefone de
novo na tomada.
Pronto. Ouvi um latido.
Adeus, mundo cruel.

O telefone e a campainha tocaram
ao mesmo tempo.

Alô". Tenho que abrir, seja o
que Deus quiser.
"Pedro?" - a voz macia - "Tem mais de
2 horas que estou ligando praí e só dá ocupado.
Ó, não precisa se preocupar,
achei o brinco, estava na bolsa"

Desliguei e corri pra porta.
Eliane abriu o seu sorriso
maravilhoso de 32 dentes perfeitos.

Tive uma ereção!!!

L.F.Veríssimo

Tela:Rodin

domingo, março 25, 2007

Lúbrica



Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!

Cesário Verde

Foto:Stanmarek

A pouco e pouco, aloja-se-me no coração



A pouco e pouco, aloja-se-me no coração
a cicatriz da espera.
Alheio-me da minha cronologia porque o passado
se tornou permanente. Caminho tão perto do mar,
que Ulisses avalia a direcção do vento pelos vestígios
do meu respirar, lento ou apressado.

Graça Pires

Foto:Salvador Sabater

***



De noite, amada, amarra teu coração ao meu
e que eles no sonho derrotem
as trevas como um duplo tambor
combatendo no bosque
contra o espesso muro das folhas molhadas.
Noturna travessia, brasa negra do sonho.
Interceptando o fio das uvas terrestres
com pontualidade de um trem descabelado
que sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.
Por isso, amor, amarra-me ao movimento puro,
à tenacidade que em teu peito bate.

Com as asas de um cisne submergido,
para que as perguntas estreladas do céu
responda nosso sonho com uma só chave,
com uma só porta fechada pela sombra.

Pablo Neruda

Foto:Michael Schultes

sábado, março 24, 2007

O baloiço



Psttttttttttt, pstttttttttttttt
Sou eu aqui em cima
Uma alma à espreita...

Baloiço-me todos os dias
à tua espera...
Sei as horas a que passas,
Sempre o mesmo andar,
Cabelo ao vento.

Paira a magia no ar
Brilham as estrelas
Mudam as cores
És o príncipe encantado
Que nunca encantou minha vida.

Sei que me sentes.
Ao passares
Teus olhos fecham…

Sentes-me aqui em cima
De lenço vermelho.
Lembras-te de mim
Da que te atraía
Mas era esquiva:
Coração protegido.

Um dia, apreendeste a morte
Entristeceste...
E todos os dias voltas
Ao baloiço onde ela estava...

Poema feito a quatro mãos e oito olhos por Wind e Jacky, partindo da foto de Manuel Holgado

Reinvenção



A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... - mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da luz, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só - no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só - na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meireles

Foto:ClanOfXymox

Poema



Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas do próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

Mário Cesariny

Foto:Manuel Holgado

sexta-feira, março 23, 2007

Talvez



Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,

E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...

Pablo Neruda

Foto:zet_ka aa(Zet)

PS:Hoje deu-me para Pablo Neruda:)

Dois



Dois...
Apenas dois.
Dois seres...
Dois objetos patéticos.
Cursos paralelos
Frente a frente...
...Sempre...
...A se olharem...
Pensar talvez:
"Paralelos que se encontram no infinito..."
No entanto sós por enquanto.
Eternamente dois apenas.

Pablo Neruda

Foto:Anna.Edyta Przybysz (aprzybysz)

quinta-feira, março 22, 2007

A noite



a noite - enorme
tudo dorme
menos teu nome

Mário Quintana

Foto:Yuri B

Agir, precisa-se!

Porque há coisas que me transcendem e a outras pessoas também, agradeço que vão ler este post ao blog da Seila, por favor.
Obrigada.

Pontos finais



Todo o teu corpo é um poema
que não teria fim
na arrogância das linhas e das formas
túmidas e sensuais,
- se a natureza, sábia, não pusesse
nos pontos culminantes de teus seios
dois pontinhos finais!...

J.G. de Araújo Jorge

Foto:klaus Goffelmeyer

quarta-feira, março 21, 2007

Procura-se título para esta foto



Foto:Wind

Não tenho por hábito colocar neste blog fotos minhas, mas esta é daquelas que gosto.
Novo desafio para quem quiser:uma palavra, frase, poema...

Geoffrey Kruse-Safford

"Spring Coming Into Focus?"

"Waking to Life?"

Poetaeusou

"esverdiada
bruma"

Paula Raposo

"O verde do meu olhar..."

Fresquinha

"O Grelo"

Jacky

"Janela mística"

MFC

"... o ninho da floresta!"

Fairybondage

"O paraiso das fadas...

o olhar da natureza...

Voa no verde...

Sonhando com mãe arvore...

Nos teus ramos, apenas a paz..."

O futuro



Aos domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos domingos iremos ao jardim.
Diremos, nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais,
Fundamentais.
Autómatos afins,
Misto de serafins
Sociais
E de standardizados mandarins,
Teremos preconceitos e pruridos,
Produtos recebidos
Na herança
De certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
Do que foi, do que já houve...
E sendo já então
Por tradição
E formação
Antiburgueses
- Solidamente antiburgueses -,
Inquietos falaremos
Da tormenta que passa
E seus desvarios.

Seremos aos domingos, no jardim,
Reaccionários.

Reinaldo Ferreira

Foto:Maury Perseval

Poesias

Encantação da Primavera

Brotam brotinhos na tarde feita
Só de suspiros:
O amor é um vírus...
Apenas o general de bronze continua de bronze!
O vento desrespeita todos os sinais do tráfego.
Velhinhos de gravata borboleta
Sobem e descem como autogiros.
O guarda de trânsito virou catavento.
As mulheres são de todas as cores como esses
manequins expostos nas vitrinas,
E onde é que estão, me conta, as tuas esperanças
mortas?!
Lá vão elas – tão lindas – vestidas de verde
Como Ofélias levadas pelos rios em fora
Enquanto eu nem me atrevo a olhar para o alto:
repara se não é
O Espírito Santo que vem descendo em lento vôo
E até ele, até Ele, deve estar assim, – todo irisado
Como os olhos das crianças, como as maravilhosas
bolinhas-de-gude!

Mario Quintana


Imagem daqui

Poeta Castrado, Não!

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
--- é tão vulgar que nos cansa ---
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
--- a morte é branda e letal ---
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
--- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
--- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

José Carlos Ary dos Santos


Imagem daqui

PS:Neste Dia da Primavera e da Poesia escolhi dois poemas. Um do Mário Quintana porque gosto imenso da maneira como escreve e outro do Grande Ary, porque é para mim o melhor poeta que houve pela sua versatilidade.

Olhando o mar



Sempre que fito o mar
tenho a ilusão de achar-me diante
de um silêncio amplo, ondulante,
de um silêncio profundo,
onde vozes lutassem por gritar,
por lhe fugirem do invisível fundo.

Diante do mar eu fico triste,
nessa mudez de quem assiste
reproduções do próprio dissabor;
diante do mar eu sou um mar,
a outro de apor
e a se indeterminar.

O mar é sempre monotonia,
na calmaria
ou na tempestade.
Fujo de ti, ó mar que estrondas!
porque a tristeza que me invade
tem a continuidade
das tuas ondas...

Mas te amo, ó mar, porque minha alma e a tua
são bem iguais: ambas profundamente
sensíveis, e amplas, e espelhantes;
nelas o ambiente
actua
apenas superficialmente...

Calma de cismas, de êxtases, de sonhos,
desesperos medonhos,
ânsias de azul, de alturas...
- Longos ou rápidos instantes
em que me transfiguro, em que te transfiguras...
Nos nossos sentimentos sem represa,
nas nossas almas, quanta afinidade!
- Tu sentindo por toda a natureza!
- Eu sentindo por toda a humanidade!

Nos dias muito azuis, o meu olhar,
atento,
a descer e a se elevar,
supõe o mar um espreguiçamento
do céu e o céu um êxtase do mar.

Há nos ritmos da água
marinha uma poesia, a mais completa,
essa poesia universal da mágoa.

O mar é um cérebro em laboração,
um cérebro de poeta;
nas suas ondas, vêm e vão
pensamentos, de roldão.

O mar,
imperturbavelmente, a rolar, a rolar...
O mar... - Concluo sempre que metido
em sua profundeza e em sua vastidão:
- o mar é o corpo, é a objetivação
do espaço, do infinito.

Gilka Machado

Foto:Agnieszka Uziębło

terça-feira, março 20, 2007

Cavalgamos o sonho



Espelhos de sol
no mar
a cobrir-me de um torpor
de acordar.
Tua força a desfazer
barreiras,
onda a voar
de espuma,
vento a varrer
o pensamento
no despertar
de um momento,
a preencher
sem razão alguma.
Ancorados
em coisa nenhuma
comungamos o tempo,
possuímos o infinito
com a intensidade
de um grito,
cavalgamos o sonho,
preso em nossa mão,
com a simplicidade
de um sim,
sem a amargura
de um não.
Bebemo-nos
sem esperas,
sem futuro
nem passado,
num misterioso
sonhar
deliciosamente
acordado.

Helena Guimarães

Foto:Aguinaldo Vera-Cruz

Folhagem



Descanso os olhos
sobre as folhas miúdas que tremem
Piscam minhas pálpebras
O vento me envolve
Existo
inacreditavelmente
entre o abrir e fechar
Página folheada
de um livro
vivo.

Rosália Milsztajn

Foto:Frédéric Karikese

Madrugada



É claro!! Sempre estava afim!
Uma noitada, música,
burburinho de vozes,
matizadas em vários tons...
Mais uma dose!!!
Estalar de copos, gargalhadas...
Mistura de sons!!!
É a boemia insone
exibindo falsa alegria,
procurando encher de amores
a madrugada vazia...
Já gostei...
...já fui assim!!
Hoje, a insônia, desabafo no papel...
Encontro marcado comigo!!!
Que ironia!!
Sou no momento, minha melhor
e mais fiel companhia...

Márcia Fasciotti

Foto:Yuri B

segunda-feira, março 19, 2007

A medida do abismo



Não é o grito
A medida do abismo?
Por isso eu grito
Sempre que cismo
Sobre tua vida
Tão louca e errada...
– Que grito inútil!
– Que imenso nada!

Vinícius de Moraes

Foto: zet_ka aa(Zet)

Senha



Será que um dia
encontro alguém
que ame poesia
e vá além
odeie hipocrisia
será que eu acho
quem adore se divertir
quem goste de sair
mas... diacho!
não encontrei
ainda
apenas sonhei
com alguém
que vai me completar
além
de me fazer gozar
alguém que tenha
a minha senha
a chave perdida
em algum lugar
da minha vida.

Liz Christine

Foto:Tomasz

Oração



Dai-me, Senhor, essa paz suave
que emana da mulher amada,
rio com temperatura de lã
onde aqueço a minha solidão.
Dai-me, Senhor, a coragem de proclamar
a infinita ternura do meu silêncio
quando olho para a mulher amada
no abandono do seu sono.
Dai-me, Senhor, o recato dos guardiães
para que eu silencie sobre todas as doces loucuras
da mulher amada.
Dai-me, Senhor, a mulher amada
subitamente surgida nos ícones da poesia.

Nei Leandro de Castro

Foto:Alexander Heinrichs

domingo, março 18, 2007

Erra uma vez



Nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez.

Paulo Leminski

Foto:Dorota Pawiłowska

Prestidigitação



Sou a que se perdeu
a ausente
e embora esteja quase
sempre aqui
aparentemente presente
não sou eu a que me vêem
— tu e toda essa gente —
mas o esboço
a sombra
o rastro
ou talvez apenas o reflexo
nas águas turvas de junho
da que fui
quando o inverno era
ainda
uma improvável e longínqua
possibilidade.

Márcia Maia, in poesia.net (197)

Foto:Manuel Holgado

Angela Adonica



Hoje deitei-me junto a uma jovem pura
como se na margem de um oceano branco,
como se no centro de uma ardente estrela
de lento espaço.

Do seu olhar largamente verde
a luz caía como uma água seca,
em transparentes e profundos círculos
de fresca força.

Seu peito como um fogo de duas chamas
ardía em duas regiões levantado,
e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes e claros.

Um clima de ouro madrugava apenas
as diurnas longitudes do seu corpo
enchendo-o de frutas extendidas
e oculto fogo.

Pablo Neruda

Foto:Michael Schultes

sábado, março 17, 2007

Poema da amante



Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.

Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita do tempo
Até a região onde os silêncios moram.

Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.

Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
Em tudo que ainda estás ausente.

Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.

Adalgisa Néri

Foto:Stanmarek

Quero escrever o borrão vermelho de sangue



Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.

Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.

Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.

Clarice Lispector

Foto:Elena Vasileva

Notas para o diário



Deus tem que ser substituído rapidamente por poe-
mas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-
mo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu cora-
ção, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário - o paraíso sabe-se que chega a lis-
boa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do mastro, e mandar arrear o velame.

é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem
cadastro.

a dor de todas as ruas vazias.

sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme acabou. não nos conheceremos nunca.

a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.

Al Berto (Repetido)

Foto:Manuel Holgado

Cais



Nasceu a 17 de Março de 1945

Para quem quer se soltar
Invento cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento amor e sei a dor de me lançar

Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador

Para quem quer me seguir
Eu quero mais
Tenho um caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir

Invento o cais
E sei a vez de me lançar

Também cantava Elis Regina

Milton Nascimento/Ronaldo Bastos

Imagem daqui

Ofício de Amar



Já não necessito de ti
Tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
Tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio
De outras galáxias, e o remorso.....

.....um dia pressenti a música estelar das pedras
abandonei-me ao silencio.....
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo.

Al Berto

Foto:ClanOfXymox

sexta-feira, março 16, 2007

Procura-se título para esta foto



Procura-se título, frase, poema,..., porque estou cansada...

Foto:Frédéric Karikese

Paula Raposo

'Sonhando por detrás de mim...'

Peciscas

"Há um mar por descobrir
no infinito do teu olhar!"

Yardbird

"Os teus olhos de água, são como oceanos vazios"

Dulce

"Pergunta"

Submerjo,
e os olhos rasos de água
lembram bóias para náufragos.
Nas águas mergulho
angústias
e entrego dúvidas.

Mar ou lágrimas?
Mergulho ou abraço?
Posse ou entrega?

E elas respondem-me,
queda!

Poetaeusou

*****
Diamante azul, em ti mulher.

*****

Fatyly

"Um olhar sobre um passado...presente!"

Papagueno

"Teus olhos doces, mar de tristeza onde me quero afogar."

Lena

olhos meus
que seguem os teus
na confusa aventura
de me entregar
ao sono, sorvido
neste meu rosto
de vidro
mergulhado
mas águas do mar

falta-me o tempo
para sentir a manhã

fica apenas este olhar vidrado
sem direcção!

Mádá

"O Mundo num olhar..."

O anjo magoado



Que foi dele
depois que lhe quebraram as asas?
Que foi dele
depois que lhe contaram
que no seu ombro havia carne?
Parou tristonho de voar.
E olhou estupefato para os pássaros.
Só viu as próprias lágrimas
e acreditou que o espaço se houvera transformado em aquário.

E pôs-se a nadar rumo a pátria.
Pensava: "Que largo mar seco de praias!"
E em volta de si mesmo esvoaçava os braços
num esboço de viagem.
Então mirou-se
no último olhar de poça d'agua
e descobriu seu rosto
pálido
lavado
com algumas gotas de suor e orvalho.
Vestiu tremendo o corpo claro
sentiu pudor de sua nudez de asas.
Procurou por todo o espaço
perscrutou a enxurrada.
Pensou: Ah, elas sim reconquistaram as aves".

E ancorou seu pranto na saudade.

Ilka Brunhilde Laurito

Foto:Christian Coigny

Missa profana



Nesta hora santa,
orai em meu altar de linho.
Dominus vobiscum!
Meu senhor está em mim.
Bendita sou entre as mulheres!
Alisai-me com carinho,
Curvai-vos,
Beijai meu ventre
E entre orações
E cantos
Explorai meus encantos.
Abri minha alma-missal:
Sou a boa-nova
Que se renova a cada leitura
Em mim, profana escritura.
Tomai meu seio:
É o vosso pão,
Pão da vida
Retorcida de prazer.
Comei-o com sofreguidão.
Levai meu cálice à boca,
Bebei do vinho que escorre.
Quem bebe deste vinho
Só morre de amor.
Vinde a mim,
Vosso reino,
Sou ofertório inteiro.
Comungai...comungai meu prazer
Amai-me
- Amém.

Emília Casas

Foto:Elena Vasileva

quinta-feira, março 15, 2007

Border+Line



Borderline!
Borderline?
Que raio é isto?
Bordar à linha?
Pensou ela.
Então passou à acção.
Bordou o seu corpo
Fez imensos desenhos
Em ponto de cruz.
(Engraçado até o seu apelido era cruz)
Teve sede
Bebeu água
Quando acabou
A água saiu pelos lindos pontos
Que tinha feito em si própria.

Wind

Foto:Lubomir Arabadjiev

A força do hálito



A força do hálito é como o que tem que ser.
E o que tem que ser tem muita força.

Vai (ou vem) um sujeito, abre a boca e eis que a gente,
que no fundo é sempre a mesma,
desmonta a tenda e vai halitar-se para outro lado,
que no fundo é sempre o mesmo.

Sovacos pompeando vinagres e bafios,
não são nada --bah...-- em comparação
com certos hálitos que até parece que sobem do coração.

"Ai onde transpira agora
o bom sovaco de outrora!"

Virilhas colaborando com parentesis ou cedilhas
são autênticas (e sem hálito) maravirilhas.
Quando muito alguns pingos nos refegos, nas braguilhas,
amoniacal bafor que suporta sem dor
aquele que está ao rés de tal teor.

Mas o mau hálito é pior que a palavra
sobretudo se não for da tua lavra.

Da malvada, da cárie ou, meudeus, do infinito,
o mau hálito é sempre, na narina,
como o baudelaireano, desesperado grito
da "charogne" que apodrecer não queria.

Alexandre O'Neill

Imagem daqui

quarta-feira, março 14, 2007

Faz-me o favor...



Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny

Foto:Eric Kellerman

PS:É repetido mas há dias em que temos de ouvir o nosso silêncio.

Esperança



Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente,
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.
Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
engana
não me deixes sozinho
esperança.

Almada Negreiros

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

Mário Quintana