quinta-feira, maio 31, 2007

Apelo de solidariedade

Li na Dulce e tal como ela nada posso fazer, mas posso divulgar o apelo.

Pode ser que quem leia possa ajudar, ou pelo menos ajude também a divulgar isto.

Dedicatória



O ar, amor —
este ar que eu te respiro.

Soares Feitosa

Foto:Yuri B

Amar a morte



Amar de peito aberto a morte.
Não de esguelha, de frente.

Amar a morte,
digamos,
despudoradamente.

Amá-la como se ama
uma bela mulher
e inteligente.Amá-la
diariamente
sabendo que por mais
que a amemos
ela se deitará
com uns e outros
indiferente.

Affonso Romano de Sant'Anna

Foto:Christian Coigny

Não quero ser o último a comer-te



Não quero ser o último a comer-te.
Se em tempo não ousei, agora é tarde.
Nem sopra a flama antiga nem beber-te
aplacaria sede que não arde

em minha boca seca de querer-te,
de desejar-te tanto e sem alarde,
fome que não sofria padecer-te
assim pasto de tantos, e eu covarde

a esperar que limpasses toda a gala
que por teu corpo e alma ainda resvala,
e chegasses, intata, renascida,

para travar comigo a luta extrema
que fizesse de toda a nossa vida
um chamejante, universal poema.

Carlos Drummond de Andrade

Foto:Paul Bolk

Amor e medo



Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.

Affonso Romano de Sant'Anna

Foto:Christian Coigny

Sonho Azul



Voando
fechado no tempo,
Encontro momentos há muito perdidos.
Nos vales do paraíso
Infiltro a magia da liberdade
Nas veias da imaginação
E navego pela leveza do esplendor.
Acendo a tocha da reflexão
Embalo os sentimentos nos fluidos do silêncio
E abro a janela da criação

Vem comigo desvendar os mistérios da primavera
Delicadamente sentada no brilho das águas cristalinas,
Vaguear por entre os sons da inocência
E saborear a profundidade da beleza do carinho.
Vem decifrar as doces linhas dos enigmas
Que se escondem na beleza dos murmúrios do vento
E nas cores quentes do por do sol.
Vem percorrer as ondas do magnetismo absorvente
Do brilho dos olhares apaixonados pela sensual motivação
Da união de dois sentimentos.
Vem absorver essas gotas criadoras de sonhos interruptos
Que derrubam montanhas inexploráveis
Criando riachos por onde deslizas delicadamente deitada.
Vem provar o amor.

Jorge Viegas

Foto:Roberto Palladini

quarta-feira, maio 30, 2007

A partir de agora

Soneto da separação



De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinícius de Moraes

Foto:Anulka

O Poema



O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto:Maury Perseval

terça-feira, maio 29, 2007

Subtil diferença



"Depois de algum tempo, você aprende a diferença, a sutil diferença entre dar a mão e acorrentar uma alma.
E você aprende que amar não significa apoiar-se, e que companhia nem sempre significa segurança.
E começa a aprender que beijos não são contratos e presentes não são promessas.
E começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e os olhos adiante com a graça de um adulto, e não com a tristeza de uma criança.
E aprende a construir todas as suas estradas hoje, porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, e o futuro tem o costume de cair em meio ao vôo.
Depois de um tempo, você aprende que até o sol queima se você ficar exposto por muito tempo.
Portanto, plante seu jardim e decore sua alma, em vez de esperar que alguém lhe traga flores.
E você aprende que realmente pode suportar...
Que realmente é forte e que realmente tem valor..."

William Shakespeare

Foto:Calvato

A minha amante



Dizem que eu tenho amores contigo!
Deixa-os dizer!…
Eles sabem lá o que há de sublime
Nos meus sonhos de prazer…
De madrugada, logo ao despertar,
Há quem me tenha ouvido gritar
Pelo teu nome…

Dizem - e eu não protesto -
Que seja qual for
o meu aspecto
tu estás
na minha fisionomia
e no meu gesto!

Dizem que eu me embriago toda em cores
Para te esquecer…
E que de noite pelos corredores
Quando vou passando para te ir buscar,
Levo risos de louca, no olhar!

Não entendem dos meus amores contigo -
Não entendem deste luar de beijos…
- Há quem lhe chame a tara perversa,
Dum ser destrambelhado e sensual!
Chamam-te o génio do mal -
O meu castigo…
E eu em sombras alheio-me dispersa…

E ninguém sabe que é de ti que eu vivo…
Que és tu que doiras ainda,
O meu castelo em ruína…
Que fazes da hora má, a hora linda
Dos meus sonhos voluptuosos -
Não faltes aos meus apelos dolorosos
- Adormenta esta dor que me domina!

Judith Teixeira

Foto:Konrad Gös

Arte-final



Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.

O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.

Uma coisa é a letra,
e outra o ato,

quem toma uma por outra
confunde e mente.

Affonso Romano de Sant'Anna

Foto:Paul Bolk

Estrada do Silêncio



Apalpo os
passos que dou lentamente...
vergado,
ando pelas ruas,
rasgando o chão de pedras nuas,
humilhado,
à procura de um sinal ardente.
Vai o sol poente encontrar-me
à beira mar deitado.
No meu peito,
vulcões de sangue quente
desfazem as imagens da mente.
Apetece-me rasgar o silêncio estúpido
fazer das tiras, uma longa trança de desejo
e banhá-la no sangue translúcido
que escorre pela face escondida.
Apetece-me desfazer palavras
tornando-as insignificantes no deslocamento do tempo,
quebrar silabas, dando movimento
ao ardor alojado no peito.
Arrancar os segundos ao tempo,
destruindo a monotonia do saber.
Arrancar os ponteiros do contratempo..
não continuar a sofrer.

Jorge Viegas

Foto:José Marafona

segunda-feira, maio 28, 2007

www.sem



Sem amor, sem ninguém
Sem nenhum, sem cem
Sem bondade, sem maldade
Sem saudade, sem alguém
Sem agora, sem passado
Sem futuro, sem presente
Sem memória
Sou www.sem
Sou www.sem

Sem sim, sem não
Sem baião, nem de dois
Sem tom, sem som
Sem batom, sem cachaça
Sem graça, sendo
Sem pó, sem pirraça
Sem feijão, sem arroz
Sem teto, sem chão

E o w do w do w ponto plugado
E nesse jogo inventado
Eu fico sem ponto sem

Sem amor, sem ninguém
Sem Rimbaud, sem cem
Sem queijo, sem rato
Sem beijo, sem Lacan
Sem Freud, sem manhã
Sem sina, sem menino, sem menina
Sem karma, sem cama, sem drama, sem gasolina
Sem comédia, sem a midia, sem a media
Sou ponto sem, sem cem
Sem sol, sem uol
Sem anzol, sem mar. sem lar

E o w do w do w ponto plugado
E nesse jogo inventado
Eu fico sem ponto sem

Sem verbo, sem advérbio
Sou transitivo direto
E nesse verbo de amor e de paixão
Tão só, tão, tão
Tão só, tão, tão
Tão só, tão, tão
Tão só, tão, tão
Tão só

Canta:Simone

Ze de Riba/Romildo Soares

Foto:Christian Coigny

Se duvidas que teu corpo...



Se duvidas que teu corpo
Possa estremecer comigo –
E sentir
O mesmo amplexo carnal,
– desnuda-o inteiramente,
Deixa-o cair nos meus braços,
E não me fales,
Não digas seja o que for,
Porque o silêncio das almas
Dá mais liberdade
às coisas do amor.

Se o que vês no meu olhar
Ainda é pouco
Para te dar a certeza
Deste desejo sentido,
Pede-me a vida,
Leva-me tudo que eu tenha
Se tanto for necessário
Para ser compreendido.

António Botto

Foto:Anna.Edyta Przybysz

Há dias



Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

Eugénio de Andrade

Foto:zet_ka aa(Zet)

O Prisioneiro



Trouxeram-me a prisioneira ao interrogatório.

Recusei-me às perguntas porque as respostas
estavam ao passado. Sequer o futuro
se lhe indagou; que também recusou
perguntar, quando os carrascos lhe disseram:

— Pergunte o que quiser.

Ela apenas balbuciou:
— Eu sei.

Mentíamo-nos,
porque jamais nos víramos.

Decretei a prisão imediata de todos os carrascos.
Mantive a prisioneira sob algemas,
que ninguém é louco de manter
tesoiro tão rico ao léu;

mas, prudência maior,
soltei-lhe os braços e mudei as algemas
aos meus próprios pulsos.

Ela —
os gestos diziam que me seriam
sob afagos.

Deixei:
apenas que os olhos, os cabelos húmidos:

— Os meus? Os dela?

Era o chamamento.

Soares Feitosa

Foto:Konrad Gös

domingo, maio 27, 2007

Safena



Sabe o que é um coração
amar ao máximo de seu sangue?
Bater até o auge de seu baticum?
Não, você não sabe de jeito nenhum.
Agora chega.
Reforma no meu peito!
Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas
aproximem-se!
Rolos, rolas, tinta, tijolo
comecem a obra!
Por favor, mestre de Horas
Tempo, meu fiel carpinteiro
comece você primeiro passando verniz nos móveis
e vamos tudo de novo do novo começo.
Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora
apertem os cintos
Adeus ao sinto muito do meu jeito
Pitos ventres pernas
aticem as velas
que lá vou de novo na solteirice
exposta ao mar da mulatice
à honra das novas uniões
Vassouras, rodos, águas, flanelas e cercas
Protejam as beiras
lustrem as superfícies
aspirem os tapetes
Vai começar o banquete
de amar de novo
Gatos, heróis, artistas, príncipes e foliões
Façam todos suas inscrições.
Sim. Vestirei vermelho carmim escarlate
O homem que hoje me amar
Encontrará outro lá dentro.
Pois que o mate.

Elisa Lucinda

Foto:Stanmarek

Escuto



Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou deus

Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto:zet_ka aa(Zet)

sábado, maio 26, 2007

Fantastic Machine


FantasticMachine
Uploaded by olivier66

Recebi por email e não resisti a colocar aqui esta maravilha.

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Cintilação de luas
assim que te desnudas
às escuras.

David Mourão-Ferreira

Foto:Nadya Kulagina

Cecília



Quantos artistas
Entoam baladas
Para suas amadas
Com grandes orquestras
Como os invejo
Como os admiro
Eu, que te vejo
E nem quase respiro

Quantos poetas
Românticos, prosas
Exaltam suas musas
Com todas as letras
Eu te murmuro
Eu te suspiro
Eu, que soletro
Teu nome no escuro

Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio
Na tua presença
Palavras são brutas

Pode ser que, entreabertos
Meus lábios de leve
Tremessem por ti
Mas nem as sutis melodias
Merecem, Cecília, teu nome
Espalhar por aí
Como tantos poetas
Tantos cantores
Tantas Cecílias
Com mil refletores
Eu, que não digo
Mas ardo de desejo
Te olho
Te guardo
Te sigo
Te vejo dormir

Chico Buarque

Foto:Konrad Gös

Passemos, tu e eu, devagarinho



Passemos, tu e eu, devagarinho,
Sem ruído, sem quase movimento,
Tão mansos que a poeira do caminho
A pisemos sem dor e sem tormento.

Que os nossos corações, num torvelinho
De folhas arrastadas pelo vento,
Saibam beber o precioso vinho,
A rara embriaguez deste momento.

E se a tarde vier, deixá-la vir
E se a noite quiser, pode cobrir
Triunfalmente o céu de nuvens calmas

De costas para o Sol, então veremos
Fundir-se as duas sombras que tivemos
Numa só sombra, como as nossas almas.

Reinaldo Ferreira

Foto:Anna.Edyta Przybysz

sexta-feira, maio 25, 2007

Amando a Lua



O sonho é uma verdade nua
Pintado de rosa
Como a imensidão da prosa.
O sentido encontra as razões
Mais sensíveis e profundas
No emaranhado das emoções
Canções povoam a auréola das estrelas
Sedutoras fontes incandescentes
Içam-se as velas transparentes
Navega-se pelos reflexos inspiradores
Captando aromas da brisa sensual
E descobre-se a linha harmoniosa do poente...
Amando na lua
O vento liberta os gestos
Os sentidos tornam-se modestos
O azul brilha nas palavras
E o coração fala pelo olhar.

Jorge Viegas

Foto:Christian Coigny

Denúncia



Sonharei, no teu seio calmo,
O sonho invisível do cego de nascença.

Dormirei, no teu cerrar de pálpebras,
Como um peixe desliza entre os ramos de árvore
Reflectidos na água.

Dormirei, nas tuas mãos pousadas no meu corpo,
O desejo de te acariciar sem perigo
- não vá tirar-te escamas, borboleta presa.

Dormirei, no teu sexo, a solidão do meu
Ao existir para que eu pense em ti.

Dormirei, na tua vida, a teimosia humana
De um sentido universal para as coisas connosco.

E se, depois, meu amor, formos estéreis,
Se a demora do tempo tiver tido um gesto abandonado,
E a morte, à nossa volta, um moleiro sem trigo,
O mundo que vier inveja-nos
E o nosso espírito há-de perdoar-nos.

Jorge de Sena

Foto:Konrad Gös

Sem título



"Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia
encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da
outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não
ficou nada. Esta história tradicional demonstra que se deve amar o
próximo ou então ter muito cuidado com o que se come."

Ana Hatherly

Imagem daqui

Subversiva



A poesia
Quando chega
Não respeita nada.

Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos

Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha

Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.

E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.

E promete incendiar o país.

Ferreira Gullar

Foto:Calvato

quinta-feira, maio 24, 2007

Voo



Alheias e nossas as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas, as palavras voam.
Voam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.

Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós, em
redor de nós as palavras voam.
E às vezes pousam.

Cecília Meireles

Foto:Stanmarek

Não tenho tempo para as estrelas



Se cruzasse o universo
De ponta a ponta,
Buscaria tão somente
Teu coração.
Se vagasse sobre o abismo
Azul e medonho do mar,
Buscaria simplesmente
As profundezas do teu sentimento.
Quando olho o céu noturno
Busco o rumo certo
Para teus suaves abraços.
Não tenho tempo a perder
Olhando as estrelas errantes,
Pois eu mesmo erro na terra
Tentando encontrar meu amor.
Poderia ser tua face
Como aquela constelação
Que me fita com diamantinos luzeiros.
Assim sendo não perderia
Tempo com as galáxias
Pois nas estrelas dos teus olhos
Encontro toda luz que preciso.
Não tenho tempo para as estrelas,
Nem mesmo se caíssem a meus pés,
Porque caminho certeiro como flecha
Para o coração bem amado
Da minha senhora da noite.

Marco Antonio Cardoso

Foto:Christian Coigny

quarta-feira, maio 23, 2007

Parabéns mãe!



Não tenho jeito para escrever mas tu também não vais ler porque estás noutro país.
É só para "dizer" que gosto muito de ti...

Nalgum lugar perdido



Olhar-te um pouco
Enquanto acaba a noite
Enquanto ainda nenhum gesto te magoa
E o mundo for aquilo que sonhares
Nesse lugar só teu

Olhar-te um pouco
Como se fosse sempre
Até ao fim do tempo, até amanhecer
E a luz deixar entrar o mundo inteiro
E o sonho se esconder

Nalgum lugar perdido
Vou procurar sempre por ti
Há sempre no escuro um brilho
Um luar
Nalgum lugar esquecido
Eu vou esperar sempre por ti

Enquanto dormes
Por um momento à noite
É um tempo ausente que te deixa demorar
Sem guerras nem batalhas pra vencer
Nem dias pra rasgar

Eu fico um pouco
Por dentro dos desejos
Por mil caminhos que são mastros e horizontes
Tão livres como estrelas sobre os mares
E atalhos pelos montes.

Mafalda Veiga

Foto:Thoenen Walo

Talvez



Talvez
eu fosse alguém
diferente

não que eu não goste
do que vejo, mas
as lembranças mudariam
muitas coisas
que hoje não consigo mudar

se acaso meus verbos
tivessem mais ligados
aos seus toques
e meu caos
fosse mais sua paz
e sua direção
fosse mais minha
estrada

quem sabe
os anos não tivessem
envelhecido papéis escritos
sem sentido
e tudo o que imaginei
pudesse ter acontecido
e as noites
não tivessem caído
em insônia
e tudo fosse mais divertido
no sonho ou no sorriso

Se tudo se modifica
em um instante
naquele podíamos
ter sido...

simplesmente
poderíamos ter sido
algo diferente

Cinthia Sousa Kaneyuki

Foto:zet_ka aa(Zet)

Musa



Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos

Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu subito falar
Que me foge de repente

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto:Christian Coigny

26



A seguir ao sol-posto
entre a sombra e a sombra
reencontro.

David Mourão-Ferreira

Foto:Alexander Dugaev

terça-feira, maio 22, 2007

Cada lugar teu-Mafalda Veiga



Sei de cor cada lugar teu
atado em mim, a cada lugar meu
tento entender o rumo que a vida nos faz tomar
tento esquecer a mágoa
guardar só o que é bom de guardar

Pensa em mim protege o que eu te dou
Eu penso em ti e dou-te o que de melhor eu sou
sem ter defesas que me façam falhar
nesse lugar mais dentro
onde só chega quem não tem medo de naufragar

Fica em mim que hoje o tempo dói
como se arrancassem tudo o que já foi
e até o que virá e até o que eu sonhei
diz-me que vais guardar e abraçar
tudo o que eu te dei

Mesmo que a vida mude os nossos sentidos
e o mundo nos leve pra longe de nós
e que um dia o tempo pareça perdido
e tudo se desfaça num gesto só

Eu vou guardar cada lugar teu
ancorado em cada lugar meu
e hoje apenas isso me faz acreditar
que eu vou chegar contigo
onde só chega quem não tem medo de naufragar.

PS:Para ouvir desligar o som do blog no lado direito.

Meu Deus, me dê a coragem



Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.

Clarice Lispector

Foto:Joris Van Daele

Magia



Quando pela manhã se abrem as janelas
E entra a brisa da felicidade, isto é magia.
Quando se cheira uma rosa encantada
E se sente o perfume de um beijo ardente, isto é magia.
Quando os raios escaldantes do sol
Se transformam em fonte eterna, isto é magia.
Quando se mergulha nas gotas da chuva
E navegamos pela imensidão, isto é magia.
Quando se toca na cores quentes do por do sol
E descobrimos cânticos dourados, isto é magia.
Quando se vê no reflexo do brilho do luar
Os contornos íntimos da sua beleza,
Se sente o perfume ardente do teu beijo,
O calor penetrante da tua ternura,
A imensidão absorvente do teu carinho,
Isto é AMOR.

Jorge Viegas

Foto:Christian Coigny

segunda-feira, maio 21, 2007

Se cada dia cai



Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.

Pablo Neruda

Foto:Sergey Gordeev

11



Diante do teu ventre
como não dizer "Sempre"
novamente.

David Mourão-Ferreira

Foto:Christian Coigny

domingo, maio 20, 2007

Quase nada



O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.

Eugénio de Andrade

Imagem daqui

A paixão medida



Trocaica te amei, com ternura dáctila
e gesto espondeu.
Teus iambos aos meus com força entrelacei.
Em dia alcmânico, o instinto ropálico
rompeu, leonino,
a porta pentâmetra.
Gemido trilongo entre breves murmúrios.
E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico,
senão a quebrada lembrança
de latina, de grega, inumerável delícia?

Carlos Drummond de Andrade

Foto: Anna.Edyta Przybysz

Cristal



Eu acalento um amor dentro do peito
Tão belo e frágil e puro como cristal.
Amor quebrável que só de sonhos é feito
- Eu sou romântico, quero o amor ideal!

Ela me chega numa noite sensual,
Tão bela e pura como o anjo mais perfeito;
Mas o seu corpo exala odor sensual
E o olhar jura loucuras no leito.

A pele cálida ao meu toque se eriça,
Pois que a chama do amor no corpo viça.
Os frutos róseos do busto me oferece,

E a flor mais íntima, recôndita, se umedece...
- Ai grande amor cujo refúgio é a Arte,
Cristal tão puro que a realidade o parte!

Antônio Adriano de Medeiros

Foto:Konrad Gös

Quarto em desordem



Na curva perigosa dos cinqüenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor

que não sabe como é feita: amor
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objecto mais vago do que nuvem
e mais indefeso, corpo! Corpo, corpo, corpo

verdade tão final, sede tão vária
a esse cavalo solto pela cama
a passear o peito de quem ama.

Carlos Drummmond de Andrade

Foto:Paul Bolk

sábado, maio 19, 2007

Desafio

A Paula Raposo fez-me mais um desafio.
Eis as minhas respostas

EU QUERO -Um/a amigo/a que me entenda
EU TENHO -Um cão que adoro
EU ACHO -Que quando a minha mãe morrer, não vou aguentar
EU ODEIO -Mentiras
EU SINTO –Que tenho muito para dar, mas ainda não encontrei a quem o fazer.
EU ESCUTO –Algumas pessoas
EU CHEIRO-Todos os cheiros, tenho um óptimo olfacto.
EU IMPLORO-Não imploro!
EU PROCURO-Encontrar-me
EU ARREPENDO-ME-De ter confiado em quem não devia.
EU AMO-A minha mãe
EU SINTO DOR-Quando me magoo, ou quando fazem algo que me magoa.
EU SINTO A FALTA-De um carinho.
EU IMPORTO-ME-Com as pessoas
EU SEMPRE-Durmo, nem que seja 1 hora. É das poucas coisas que podemos fazer "Sempre":)
EU NÃO FICO –Num sítio onde sinta que não sou bem recebida
EU ACREDITO-No meu cão.
EU DANÇO -Bem
EU CANTO -Mal
EU CHORO –Algumas vezes, depende de como estou.
EU FALHO –Às vezes, não sou máquina, sou pessoa.
EU LUTO –Neste momento por mim.
EU ESCREVO -Raríssimas vezes e nada de jeito. lol
EU GANHO –Muitas vezes no Mahjjong
EU PERCO –Algumas discussões por ser impulsiva
EU CONFUNDO-ME –A andar de carro em Lisboa
EU ESTOU – A fazer a seca deste desafio!
EU FICO FELIZ – Se as pessoas de quem gosto estão bem.
EU TENHO -Um emprego que gosto.
EU PRECISO –De paz.
EU DEVERIA –Não ser tão preguiçosa mentalmente.
EU SOU –Eu :)
EU NÃO GOSTO –De gente hipócrita, mentirosa, cínica…

Agora vou passar a:

Papagueno
Su
Gi
Fatyly

Se aceitarem, claro:)

E agora por favor NÃO me passem mais Desafios:)

4º Meme

A Su deu-me a honra de mais um "Meme". Com este já são 4 e estou estupfacta!

Já expliquei aqui o que é um "Meme".

Ao contrário das outras vezes que deixei frases de pessoas que admiro, hoje deixo a minha música preferida do meu "guru":)



Imagine-John Lennon

Tango



Chorava um bandoneon
Num canto de bar.
Meu vestido vermelho
O cabelo preso numa flor,
E o tango falando de amor,
Contrastavam com a luz neon.
Nossos corpos em uníssono,
Um balë tão sensual...
Movimentos em compasso,
Acompanhavam cada passo
Deste tango figurado,
Como um estranho ritual.
Batia o coração descompassado!
Teus lábios sensuais me enfetiçavam,
Tuas mãos macias brincavam em mim
Como o vento brinca, namorando
As flores de um jardim.
Teus olhos escuros, meio ciganos,
Insinuavam promessas,
Dessas, que misturam
Amor, desejo, paixão e mais, muito mais...
Um perfume no ar
E abraçado ao violino
Solitário bailarino,
O bandoneon a chorar
Um velho tango de amor,
Naquele canto de bar!

C. Almeida Stella

Tela:Ricardo Curchi

Nuvens



Encantei-me com as nuvens, como se fossem calmas
locuções de um pensamento aberto. No vazio de tudo
eram frontes do universo deslumbrantes.
Em silêncio via-as deslizar num gozo obscuro
e luminoso, tão suave na visão que se dilata.

Que clamor, que clamores mas em silêncio
na brancura unânime! Um sopro do desejo
que repousa no seio do movimento, que modela
as formas amorosas, os cavalos, os barcos
com as cabeças e as proas na luz que é toda sonho.

Unificado olho as nuvens no seu suave dinamismo.
Sou mais que um corpo, sou um corpo que se eleva
ao espaço inteiro, à luz ilimitada.
No gozo de ver num sono transparente
navego em centro aberto, o olhar e o sonho.

António Ramos Rosa

Foto:Margarida Delgado

Nu



A vestir-te
o corpo
nu

ou a sede
que é minha

ou a seda
que és tu.

David Mourão-Ferreira

Foto:Gabriele Rigon

sexta-feira, maio 18, 2007

Nega-me o pão, o ar



Nega-me o pão, o ar,
a luz, a Primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda

Foto:Christian Coigny

Antecipadamente escorregadia



Nas sombras do luar
O olhar enfeita o vazio
Símbolos alegremente sensíveis
Excitando a dimensão do equilíbrio

Alma volúvel
Que as lendas ancestrais
Diluíram docemente
Em simbioses sentimentais

O corpo ilumina-se
Mistura de ritmos e profecias
E ela enrola-se com o seu calor perfumado

Com os cabelos sombreados
Pelo reflexo dos mistérios
Murmura a canção da pérola apaixonada

Escorrega pelo passado
Criando misturas sensuais
Derretidas pela simetria da paixão

Jorge Viegas

Foto:Paweł Dzik

Corpoema



Das sílabas a espátula
começa pouco a pouco
a modelar-te em alma
o que era apenas corpo

De sílabas a estátua
De lâminas a sopro
o que era apenas alma
volve-se agora corpo.

David Mourão-Ferreira

Foto:Stanmarek

quinta-feira, maio 17, 2007

Quero



Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao dizer: Eu te amo,
dementes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.

No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amaste antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa colecção de objetos de não-amor.

Carlos Drummond de Andrade

Foto:Gabriele Rigon

Esta até faz doer!-Cultura sempre a cultura



*April 29th, 2007 *

**

*João Bonifácio entrevista Camané, para o suplemento Ípsilon, do Público.*

*O fadista Camané decidiu fazer um espectáculo, interpretando canções de
Jacques Brel, Aznavour e Sinatra, entre outros. *

*De Brel, Camané interpretou “Ne Me Quittes Pas”.*

*Recordo parte da letra dessa magnífica canção: *

*/”Laisse-moi devenir/ L’ombre de ton ombre/ L’ombre de ta main/L’ombre
de ton chien” /***

*Comenta João Bonifácio: /”É das canções de amor mais desesperadas que
já alguém escreveu: «Deixa-me ser o ombro do teu cão?» /*

*Camané acrescenta: /«Ele queria ser o ombro do cão dela porque queria
estar ao pé dela, não queria que ela o deixasse. E nessa fase da canção
existe o desespero: nem que seja uma mosca à tua volta, o ombro do teu
cão, qualquer coisa, mas que eu possa estar ao pé de ti.» /*

*O ombro do teu cão?!*

*Quer dizer: nem o jornalista Bonifácio nem o fadista Camané sabem que
“ombre” significa “sombra”!*

*Desse modo, os versos /«deixa-me ser a sombra da tua sombra/ a sombra
da tua mão/ a sombra do teu cão», /transformaram-se em /«deixa-me ser o
ombro do teu ombro/ o ombro da tua mão, o ombro do teu cão»./*

*Repito: o ombro do teu cão?!*

*O jornalista Bonifácio não fez o trabalho de casa, não percebe patavina
de francês, não consultou o dicionário e - pior! - não achou estranho
que Brel, com aquela sua interpretação sofrida e pungente, estivesse a
dizer uma patetice tão grande, como /«deixa-me ser o ombro do teu cão»./*

*Por seu lado, o fadista Camané, interpreta uma canção sem se preocupar
muito com o que está a cantar; para ele, tanto lhe faz estar a cantar um
poema soberbo, como um chorrilho de asneiras. Para ele, é tudo chinês
(ou francês, tanto dá?) *

*Já agora, por que não traduzir “Ne Me Quittes Pas” por “Não Me lixes,
Pá!”?*

Imagem daqui

PS:Recebido por email e desconheço o autor. Se alguém souber agradeço que escreva nos comentários, por favor.

Sei que a ternura



Sei que a ternura
Não é coisa que se peça,
E dar-se não significa
Que alguém a queira ou mereça.
Estas verdades,
Que são do senso comum,
Não me dão conformação
Nem sentimento nenhum
De haver força e dignidade
Na minha sabedoria...
Eu preferia
- Sinceramente, preferia! -
Que, contra as leis recolhidas
No que ficou dos destroços
De outras vidas,
Tu me desses a ternura que te peço;
Ou que, por fim, reparasses
Que a mereço.

Reinaldo Ferreira

Foto:zet_ka aa(Zet)

quarta-feira, maio 16, 2007

Chasing Cars

Se me deitar na areia, ficas comigo e esqueces tudo o resto? Preciso de ti, da tua quentura doce. Quando estás à minha beira, até o cinzento brilha com matizes de fogo. As manhãs acordam bem-humoradas. Preciso de ti, da tua calmaria. Quando estás ao meu lado, a minha inquietude é lago tranquilo. As noites adormecem felizes.

Se me deitar na areia, ficas comigo e esqueces tudo o resto? Contigo, não fazer nada é aventura. Ficamos aqui a perseguir as nuvens em forma de carro que deslizam velozes no écran do olhar. Sentimos o perfume inconsciente um do outro. Somos dedos entrelaçados, pele arrepiada. Somos tu e eu, nós...

Jacky (14.05.2007)

Bill Stephens

Devaneio inspirado na canção Chasing Cars dos Snow Patrol, com letra aqui.