quarta-feira, fevereiro 27, 2013

Corpo habitado



Corpo num horizonte de água,
corpo aberto
à lenta embriaguez dos dedos,
corpo defendido
pelo fulgor das maçãs,
rendido de colina em colina,
corpo amorosamente humedecido 
pelo sol dócil da língua.

Corpo com gosto a erva rasa
de secreto jardim,
corpo onde entro em casa,
corpo onde me deito
para sugar o silêncio,
ouvir
o rumor das espigas,
respirar
a doçura escuríssima das silvas.

Corpo de mil bocas,
e todas fulvas de alegria,
todas para sorver,
todas para morder até que um grito
irrompa das entranhas,
e suba às torres, 
e suplique um punhal.
Corpo para entregar às lágrimas.
Corpo para morrer.

Corpo para beber até ao fim -
meu oceano breve
e branco,
minha secreta embarcação,
meu vento favorável,
minha vária, sempre incerta
navegação.

Eugénio de Andrade

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segunda-feira, fevereiro 25, 2013

Táctica y estrategia



Mi táctica es mirarte
Aprender cómo sos
Quererte como sos

Mi táctica es hablarte
Y escucharte,
Construir con palabras
Un puente indestructible.

Quedarme en tu recuerdo
No sé cómo, ni sé
Con qué pretexto
Pero quedarme en vos,

Mi táctica es ser franco
Y saber que sos franca
Y que no nos vendamos
Simulacros,
Para que entre los dos
No haya telón ni abismos.

mi estrategia es 
en cambio 
más profunda y más 

En cambio

Más profunda y más simple,

Mi estrategia es
Que un día cualquiera,
Con qué pretexto
Por fin me necesites.

Mario Benedetti

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sábado, fevereiro 23, 2013

Folhas



Era uma folha pousada
no cotovelo do vento;
e pairava, deslumbrada,
entre morte e movimento.

Era uma folha: lembrava,
de tão frágil, o momento
em que a vida ficava
escrava do teu juramento.

Era uma folha: mais nada.
Antes fosse esquecimento!

David Mourão-Ferreira

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sexta-feira, fevereiro 22, 2013

quinta-feira, fevereiro 21, 2013

Quando te vi senti um súbito tremor de Primavera



Quando te vi senti um puro tremor de primavera
e a voluptuosa brancura de um perfume
No meu sangue vogavam levemente
anénomas estrelas barcarolas
O siêncio que te envolvia era um grande disco branco
e o teu rosto solar tinha a bondade de um barco
e a pureza do trigo e de suaves açucenas
Quando descobri o teu seio de luminosa lua
e vi o teu ventre  largamente branco
senti que nunca tinha beijado a claridade da terra
nem acariciara jamais uma guitarra redonda
Quando toquei a trémula andorinha do teu sexo
a adolescência do mundo foi um relâmpago no meu corpo
E quando me deitei a teu lado foi como se todo o universo
se tornasse numa voluptuosa arca de veludo
Tão lentamente pura e suavemente sumptuosa
foi a tua entrega que eu renasci inteiro como um anjo do sol.


António Ramos Rosa

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terça-feira, fevereiro 19, 2013

As rosas



Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

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domingo, fevereiro 17, 2013

Hoje é Outro Dia



Quando abro cada manhã a janela do meu quarto
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova…


Mário Quintana

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sexta-feira, fevereiro 15, 2013

Ausência



Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Carlos Drummond de Andrade

Foto:Eric Richmond

quarta-feira, fevereiro 13, 2013

Questão de pontuação


Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem tem alma dionisíaca);
—–
viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):
—-
o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.

João Cabral de Melo Neto

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segunda-feira, fevereiro 11, 2013

Arte de amar



Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Manuel Bandeira

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sábado, fevereiro 09, 2013

Viagem


Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revôlta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.
António Gedeão

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quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Resgate



Há qualquer coisa aqui de que não gostam
da terra das pessoas ou talvez
deles próprios
cortam isto e aquilo e sobretudo
cortam em nós
culpados sem sabermos de quê
transformados em números estatísticas
défices de vida e de sonho
dívida pública dívida
de alma
há qualquer coisa em nós de que não gostam
talvez o riso esse
desperdício.
Trazem palavras de outra língua
e quando falam a boca não tem lábios
trazem sermões e regras e dias sem futuro
nós pecadores do Sul nos confessamos
amamos a terra o vinho o sol o mar
amamos o amor e não pedimos desculpa.

Por isso podem cortar
punir
tirar a música às vogais
recrutar quem vos sirva
não podem cortar o verão
nem o azul que mora
aqui
não podem cortar quem somos.



Manuel Alegre (
Águeda 23/12/2012 ) visto na Eli

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terça-feira, fevereiro 05, 2013

A estrelinha polar




Oceano Atlântico, a bordo do Highland Patriot, a caminho da Inglaterra


De repente o mar fosforesceu, o navio ficou silente
O firmamento lactesceu todo em poluções vibrantes de astros
E a Estrelinha Polar fez um pipi de prata no atlântico penico.
Vinícius de Moraes
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domingo, fevereiro 03, 2013

Talvez



Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,

E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...


Pablo Neruda

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sexta-feira, fevereiro 01, 2013

Inventei a dança para me disfarçar.



Inventei a dança para me disfarçar.
Ébria de solidão eu quis viver.
E cobri de gestos a nudez da minha alma
Porque eu era semelhante às paisagens esperando
E ninguém me podia entender.


Sophia de Mello Breyner Andresen

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