quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Fotos Poema II

Do olhar desafiador do Homem



Foto:Greg Gorman

Do olhar acrobático da Mulher



Foto:Eric Kellerman

Como uma ilha



Tu és todos os livros,
Todos os mares,
Todos os rios,
Todos os lugares.
Todos os dias,
Todo o pensamento,
Todas as horas
O teu corpo no vento.
Tu és todos os sábados,
Todas as manhãs,
Toda a palavra
Ancorada nas mãos.
Tu és todos os lábios,
Todas as certezas,
Todos os beijos
Desejos, princesa.

Como uma ilha,
Sozinha...

Prende-me em ti,
Agarra-me ao chão,
Como barcos em terra
Como fogo na mão,
Como vou esquecer-te,
Como vou eu perder-te,
Se me prendes em ti,
Agarra-me ao chão,
Como barcos em terra,
Como fogo na mão,
Como vou eu lembrar-te
Se a metade que parte
É a metade que tens.

Tu és todas as noites
Em todos os quartos,
Todos os ventos
Em todos os barcos.
Todos os dias
Em toda a cidade,
Ruas que choram
Mulheres de verdade.
Tu és só o começo
De todos os fins,
Por isso eu te peço
Fica perto de mim.
Tu és todos os sons
De todo o silêncio,
Por isso eu te espero
Te quero e te penso.

Como uma ilha,
Sozinha...

Pedro Abrunhosa

Foto:Elena Vasileva

A sombra sou eu



A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

José de Almada Negreiros

Foto:Oleg Gedevani

De uma rua citadina



Folhas secas de plátanos
cobrem esta rua. Só assim
me é possível aceitar o caminho
entre as paredes e as casas.

Pisando o pavimento de folhas,
estou salva dos calafrios do medo,
entre janelas que soluçam e se calam
e portas que aprisionam os corpos.

Fiama Hasse Pais Brandão

Foto:Dennis Mecham

Rosário



E eu que era um menino puro
Não fui perder minha infância
No mangue daquela carne!
Dizia que era morena
Sabendo que era mulata
Dizia que era donzela
Nem isso não era ela
Era uma môça que dava.
Deixava... mesmo no mar
Onde se fazia em água
Onde de um peixe que era
Em mil se multiplicava
Onde suas mãos de alga
Sobre o meu corpo boiavam
Trazendo à tona águas-vivas
Onde antes não tinha nada.
Quanto meus olhos não viram
No céu da areia da praia
Duas estrelas escuras
Brilhando entre aquelas duas
Nebulosas desmanchadas
E não beberam meus beijos
Aqueles olhos noturnos
Luzinho de luz parada
Na imensa noite da ilha!
Era minha namorada
Primeiro nome de amada
Primeiro chamar de filha
Grande filha de uma vaca!
Como não me seduzia
Como não me alucinava
Como deixava, fingindo
Fingindo que não deixava!
Aquela noite entre todas
Que cica os cajus! travavam!
Como era quieto o sossego
Cheirando a jasmim-do-Cabo!
Lembro que nem se mexia
O luar esverdeado.
Lembro que longe, nos longes
Um gramofone tocava,
Lembro dos seus anos vinte
Junto aos meus quinze deitados
Sob a luz verde da lua.
Ergueu a saia de um gesto
Por sobre a perna dobrada
Mordendo a carne da mão
Me olhando sem dizer nada
Enquanto jazente eu via
Como uma anêmona n'água
A coisa que se movia
Ao vento que a farfalhava.
Toquei-lhe a dura pevide
Entre o pêlo que a guardava
Beijando-lhe a coxa fria
Com gosto de cana-brava.
Senti, à pressão do dedo
Desfazer-se desmanchada
Como um dedal de segredo
A pequenina castanha
Gulosa de ser tocada.
Era uma dança morena
Era uma dança mulata
Era o cheiro de amarugem
Era a lua cor de prata
Mas foi só aquela noite!
Passava dando risada
Carregando os peitos loucos
Quem sabe pra quem, quem sabe!
Mas como me perseguia
A negra visão escrava
Daquele feixe de águas
Que sabia ela guardava
No fundo das coxas frias!
Mas como me desbragava
Na areia mole e macia!
A areia me recebia
E eu baixinho me entregava
Com medo que Deus ouvisse
Os gemidos que não dava!
Os gemidos que não dava
Por amor do que ela dava
Aos outros de mais idade
Que a carregaram da ilha
Para as ruas da cidade.
Meu grande sonho da infância
Angústia da mocidade.

Vinícius de Moraes

Foto:Frédéric Karikase

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Fotos Poema I

Da graciosidade do Homem



Da timidez da Mulher


Fotos:Eric Kellerman

Segredo



Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar.

Maria Tereza Horta

Foto:Elena Vasileva

Quando a Sinceridade Fala Primeiro



Certo dia, um juíz perguntou ao mestre Nasrudin:

- Mestre, no caso de você ter de escolher entre a justiça e o dinheiro, o que você escolheria?

- O dinheiro, é claro - respondeu Nasrudin, sem pestanejar.

- O quê! - disse o juiz. Pois eu escolheria a justiça sem pensar duas vezes, porque
a justiça não é fácil de ser encontrada, enquanto o dinheiro, este não é tão raro assim. Podemos encontrá-lo por aí sem grandes dificuldades. Estou sinceramente espantado com a sua opção, Nasrudin. Não o julgava capaz de uma ambição, sendo um mestre!

- Meritíssimo, cada um deseja aquilo que mais lhe falta! - respondeu tranqüilamente o mestre Nasrudin.

Nasrudin

Imagem daqui

Com nadadeiras



A Sereia é uma fêmea, loira em geral
Que escolhe um canto num mar freqüentado
E se estende numa pedra grande
Espreitando os audazes navegadores
Por motivos extranáuticos.

A Sereia berra como uma cadela
Antes de mais nada, para atrair os homens
Mas na realidade, a fim de igualmente provar
Que não é um peixe verdadeiro.

Apesar do seu complexo de inferioridade
Nunca hesita em insinuar-se aos robustos capitães peludos
Mas a Sereia não tem sorte, creia,
Pois desde o Dr. Gouveia
Sabe-se que os marinheiros têm (às vezes) maus costumes.

Boris Vian (tradução de Ruy Proença)

Imagem daqui

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Não tenho mais palavras

Aconselho a todos o novo livro de Maria Mamede, que se encontra à venda na FNAC e na Bertrand.


Tenho a sorte de a conhecer pessoalmente, é uma pessoa queridíssima e mandou-me o livro, do qual escolhi este poema:

Não tenho mais palavras pra te dar
Mas não temas
Ficou-se nosso caso pelos poemas
Pelos livros, pelas canções
Tuas e nossas
E escrevo-te somente
Pra que possas
Guardar nesse baú, que sei que possuis
Os meus beijos
Plenos e azuis
Imensos areais de firmamento...
Ficou o nosso amor escrito no vento
Resta-nos a liberdade
Desejada?
Quem disse que a vida é sempre justa
Que dizer adeus nunca nos custa
Se contigo se vai a vida inteira
No sonho de nós dois junto à lareira?!
Cá dentro, fica o eco e mais nada!...

Maria Mamede, in "Lume", pág.43, Edições Papiro


Foto:Elena Vasileva

Intimidade



Se tocar um blues
e eu estiver de azul
como a tarde
me beija o pescoço
me explora o decote
(aos amigos se permitem
certas intimidades )

mas se tocar um tango
dança comigo
beija-me a boca
quem sabe me ama
(que não é de ferro
a amizade)

depois
tomar café com leite
e pão torrado

e seguir sendo amigos
por infinitas outras tardes

Poema:Márcia Maia que saiu na revista poesia.net, nº 197, Ano 5

Tela:Malena e Ricardo Curchi

Os domingos de Lisboa



Os domingos de Lisboa são domingos
Terríveis de passar - e eu que o diga!
De manhã vais à missa a S. Domingos
E à tarde apanhamos alguns pingos
De chuva ou coçamos a barriga.

As palavras cruzadas, o cinema ou a apa,
E o dia fecha-se com um último arroto.
Mais uma hora ou duas e a noite está
Passada, e agarrada a mim como uma lapa,
Tu levas-me p'ra a cama, onde chego já morto.

E então começam as tuas exigências, as piores!
Quer's por força que eu siga os teus caprichos!
Que diabo! Nem de nós mesmos seremos já senhores?
Estaremos como o ouro nas casas de penhores
Ou no Jardim Zoológico, irracionais, os bichos?
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Mas serás tu a minha «querida esposa»,
Aquela que se me ofereceu menina?
Oh! Guarda os teus beijos de aranha venenosa!
Fecha-me esse olho branco que me goza
E deixa-me sonhar como um prédio em ruína!...

Alexandre O'Neill

Foto:Eolo Perfido

domingo, fevereiro 25, 2007

Aurora boreal



Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

António Gedeão

Tela:Maluda

Íman



Na preeminência de um gesto soam murmúrios na tua boca.
São traços, fragmentos, que formam uma torrente de paixão.
As tuas coxas esmagam o chão na luta dócil feita de risos.
Aproxima-se o Inverno e com ele a matéria da prosa,
cuja frieza parece uma ferida em sangue.
Só nos resta o íman de que somos feitos…

Wind (sem o mínimo de inspiração)

Desafio do Finúrias

Foto:Joris Van Daele

" Modelo "


I

Quero que poses para mim.

Encontrarei a palavra que exprima,
o que em meu sangue tumultua,
e a imponderável e secreta rima
que é só tua.

Serás minha obra-prima!
Serei o teu pintor. . .
Quero que poses para um poema, meu amor,
toda nua.

II

Quero que poses para um poema,
toda nua.

(Perdoa, meu amor. Bem estranha é a exigência
com certeza...)

Sou um humilde poeta moderno
que não confia na imaginação,
nem faz esta injustiça
à tua beleza!

J.G. de Araújo Jorge

Foto:Eric kellerman

sábado, fevereiro 24, 2007

Antecipadamente escorregadia



Nas sombras
do luar
O olhar enfeita o vazio
Símbolos alegremente sensíveis
Excitando a dimensão do equilíbrio

Alma volúvel
Que as lendas ancestrais
Diluíram docemente
Em simbioses sentimentais

O corpo ilumina-se
Mistura de ritmos e profecias
E ela enrola-se com o seu calor perfumado

Com os cabelos sombreados
Pelo reflexo dos mistérios
Murmura a canção da pérola apaixonada

Escorrega pelo passado
Criando misturas sensuais
Derretidas pela simetria da paixão.

Jorge Viegas

Foto:ClanOfXymox

Tu e eu



Somos diferentes, tu e eu.
Tens forma e graça
e a sabedoria de só saber crescer
até dar pé.
E não sei onde quero chegar
e só sirvo para uma coisa
- que não sei qual é!
És de outra pipa
e eu de um cripto.
Tu, lipa
Eu, calipto.

Gostas de um som tempestade
roque lenha
muito heavy
Prefiro o barroco italiano
e dos alemães
o mais leve.
És vidrada no Lobão
eu sou mais albônico.
Tu,fão.
Eu,fônico.

És suculenta
e selvagem
como uma fruta do trópico
Eu já sequei
e me resignei
como um socialista utópico.
Tu não tens nada de mim
eu não tenho nada teu.
Tu,piniquim.
Eu,ropeu.

Gostas daquelas festas
que começam mal e terminam pior.
Gosto de graves rituais
em que sou pertinente
e, ao mesmo tempo, o prior.
Tu és um corpo e eu um vulto,
és uma miss, eu um místico.
Tu,multo.
Eu,carístico.

És colorida,
um pouco aérea,
e só pensas em ti.
Sou meio cinzento,
algo rasteiro,
e só penso em Pi.
Somos cada um de um pano
uma sã e o outro insano.
Tu,cano.
Eu,clidiano.

Dizes na cara
o que te vem a cabeça
com coragem e ânimo.
Hesito entre duas palavras,
escolho uma terceira
e no fim digo o sinônimo.
Tu não temes o engano
enquanto eu cismo.
Tu,tano.
Eu,femismo.

Luis Fernando Veríssimo

Foto:Brian Doben

Pirata



Avançando pela areia dos dias, regresso ao mar onde nasci, àquele mar que não começa onde a terra acaba, porque ninguém sabe o príncipio nem o fim do mundo. Parto num barco pirata e regresso ao mar sem margens, ao imenso azul que não se esgota na reflexão do céu e que continua para além do horizonte. Regresso aonde o chão me fugiu. Procuro-me em várias ilhas que me encontram e deixo as estrelas indicarem-me um caminho. Num mapa antigo, rasgado pelo vento da viagem, só havias tu, mas tu ficas do outro lado do mundo, onde o meu barco não chega nem o vento me empurra. Por vezes, adormeço ao leme e descubro-me em novos mundos de terra firme. Por lá me passeio e me retorna a pressa de partir para lugares onde não me prometi. Às vezes sonho que sei chegar ao outro lado do mundo e, na minha imaginação, abandono-me a essa vontade de marear no impossível. Ninguém sabe por onde ando, só, talvez, tu e quem me apanha distraída.

Prosa:Always

Foto:Yuri B.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Espero



Perdida em meus pensamentos
olho, além, a auto-estrada.
Alguém bebe, rápido, um café
junto ao balcão.
Uma pausa no caminho,
intervalo de um destino,
ou o cansaço de uma madrugada!
Um casal de velhos
apoia-se no corrimão
esperando o tempo acontecer.
O sol de Setembro,
cálido, atravessa o vidro,
as flores definham de sede
no jardim.
O dia desagua lento
no morno entardecer...

Mas eu não caminho,
eu espero!
Pela fantasia,
ou por mim?

Helena Guimarães

Foto:Eric Kellerman

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Amor bucólico em Bocage


Pierre Auguste Renoir

1

Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre flores?

Vês como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!

Naquele arbusto o rouxinol suspira;
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira:

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! tudo o que vês, se eu te não vira,
Mais tristeza que a morte me causara.

2

Já se afastou de nós o Inverno agreste
Envolto nos seus úmidos vapores;
A fértil Primavera, a mãe das flores,
O prado ameno de boninas veste.

Varrendo os ares, o sutil Nordeste
Os torna azuis; as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros e Amores,
E toma o fresco Tejo a cor celeste.

Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo.

Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!

3

O ledo passarinho, que gorjeia
D’alma exprimindo a cândida ternura;
O rio transparente, que murmura,
E por entre pedrinhas serpenteia;

O Sol, que o céu diáfano passeia,
A Lua, que lhe deve a formosura,
O sorriso da Aurora, alegre e pura,
A rosa, que entre os Zéfiros ondeia;

A serena, amorosa Primavera,
O doce autor das glórias que consigo,
A Deusa das paixões e de Citera;

Quanto digo, meu bem, quanto não digo,
Tudo em tua presença degenera,
Nada se pode comparar contigo

Bocage

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Encomenda

Conto erótico que vos ofereço, especialmente neste não-dia dos Namorados :)

Já não sentia o próprio corpo. Regressava a casa, após mais um dia entendiante e cansativo. Entrou no prédio carregada de sacas de compras e, claro, a porta estava fechada. Quando vinha sem nada, estava sempre escancarada para trás. Procurou a chave no meio do caos da sua mala. No finzinho de tudo. Já que estava ali, foi ver qual das simpáticas contas para pagar lhe tinha escrito. Nenhuma.

Ao invés, tinha lá uma pequena encomenda de correio verde. Para ela? Devia ser engano! Não… Era mesmo para ela. No remetente, um apartado qualquer. O que seria? De quem seria? Enfiou a caixa numa das sacas e dirigiu-se para o elevador.

Uns andares mais acima, abriu a porta. O cão ladrou. Sinal da sua chegada. Alerta aos vizinhos. Pousou as sacas na cozinha. O cão deu uns pinotes de contentamento. Bifes para mim, parecia ele dizer? Meteu no frigorífico os frescos e os congelados. Tirou o casaco e pegou na encomenda. Abanou-a. Não emitia qualquer som e era leve. Com uma faca, tirou a fita-cola e abriu-a. Corou violentamente! Uns bóxeres! A caixa trazia uns bóxeres dentro, e masculinos! Ainda bem que não tinha cedido à curiosidade e não tinha aberto a encomenda à frente do vizinho do 8º andar que costumava galá-la com o olhar no elevador. O coração batia quase dolorosamente com o espanto. Depois, penso nisso, falou para si própria. Foi tratar dos seus afazeres. Jantar. Loiça. Umas roupas para pôr a lavar e estender. Minutos que se transformaram em horas passaram sem que os pudesse agarrar.

Banho. Merecia um duche bem quente para descontrair o corpo mortiço. Mmmm a água pelo rosto e pelo cabelo. Lavou-o bem lavado. Ensaboou-se sempre com água quente a correr pelo corpo, pelos ombros e pelo pescoço, doce massagem. Já não se lembrava da última vez que umas mãos lhe tinham massajado o pescoço, nem que um homem a tivesse acariciado. Vivia fechada sobre o próprio corpo, sarcófago de sensações adormecidas. Enrolou-se no roupão. Secou o cabelo numa toalha. Passou creme para amaciar a pele. Vestiu a sua camisa de noite avermelhada que tinha comprado num desses dias, em que lhe apeteceu fazer uma loucura. Para quê? Ninguém nunca a tinha visto, nem nenhumas mãos lha tinham tirado.

Deitou-se na cama, cabelos ainda húmidos, refrescantes na almofada. Na mesinha de cabeceira, em cima do habitual livro: a encomenda. Tirou os bóxeres da caixa. Eram simplesmente brancos. A medo, aproximou-os do nariz. Cheiravam a qualquer coisa que não sabia bem definir. Cheiravam-lhe a homem.

Imperceptivelmente, ficou acelerada. Apeteceu-lhe tirar a camisa e sentir a frescura dos lençóis na pele. Tirou as cuecas. Cheirou-as. Tinham cheiro a sabão porque tinha acabado de as vestir, ainda não tinham guardado o seu próprio cheiro. Apeteceu-lhe sentir a textura dos bóxeres pelo corpo. Acariciou-se ao de leve com eles no peito, sobre a barriga e na parte interna das coxas onde a pele era mais tenra. O cheiro dele tinha-lhe ficado retido nas narinas. De olhos fechado, imaginou-o ali ao lado dela.

Ele aproximou-se. Encostou o seu corpo nu ao dela. Sentiu um frémito irresistível. Ele, na sua boca. Ele, no seu pescoço. Ele, agarrado às suas nádegas. Uma mão entreabre-lhe as pernas. Um dedo atrevido no seu sexo. Respiração acelerada. Dedo dominador que a tomou sem reservas. Não há qualquer pudor no desejo que cresce por dentro de uma forma quase violenta. Geme, mas apetece-lhe gritar, dizer-lhe coisas obscenas ao ouvido. Que ficaria ele a pensar? Pergunta perdida no meio do furacão de sensações que se abate sobre ela, com aquele dedo que simplesmente não pára, nem pretende parar. Chora. É demasiado. Não consegue conter as sensações dentro do corpo tanto tempo fechado.

Abre os olhos. Ele não está ali, mas está. O cheiro dele fez emergir nela a vontade de ser mulher, de voltar a sentir, de ceder aos impulsos e aos desejos. Paz. Corpo aberto. Corpo saído do sarcófago da insensibilidade. Agora, ela era todo corpo.

Adormece nua, agarrada aos bóxeres, a pensar que amanhã tem de descobrir de quem são…

Jacky (06.09.2005)

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Unplugged

No shopping. Gente aos molhos. Casais sentados lado a lado nas mesas da restauração. Alguns nem se olham. Passam mais tempo a conversar para aquele rectângulo multifacetado do que para o ser humano com boca e ouvidos incluídos. Também com cheiro e pele, menos fria que uma tampa de plástico.

Unplugged. Assim fico quando meus pensamentos se perdem nas palavras de ti. Imagino cenários no meio de toda aquela multidão. Ai se eles pudessem ler através do meu olhar sonhador. Sou tua. Sinto o teu hálito no meu pescoço. Arrepio-me à espera do beijo leve que me vais dar. Fecho os olhos. Hmmm. Fazes-me esperar. O desejo se for satisfeito no imediato esgota-se. Apetece-me erguer os braços, agarrar-te, virar-me para ti e arrebatar-te com a minha língua na tua boca. Fundir o meu corpo no teu querer.

Chamam por mim. Abro os olhos. Respondo uma banalidade qualquer, completamente alheada do que se passa em redor. Tu não estás. Há muito que não está ninguém. Ao lado, o casal continua junto mas ainda separado pela linha ténue dum telemóvel…

Jacky (04.11.2005)

Tempo...

A wind não vai editar durante uns dias. Fico eu por aqui a publicar uns devaneios que espero serem do vossos agrado. Beijinhos

Ísis



E diz-me a desconhecida:
"Mais depressa! Mais depressa!
"Que eu vou te levar a vida! . . .

"Finaliza! Recomeça!
"Transpõe glórias e pecados! . . ."
Eu não sei que voz seja essa

Nos meus ouvidos magoados:
Mas guardo a angústia e a certeza
De ter os dias contados . . .

Rolo, assim, na correnteza
Da sorte que se acelera,
Entre margens de tristeza,

Sem palácios de quimera,
Sem paisagens de ventura,
Sem nada de primavera . . .

Lá vou, pela noite escura,
Pela noite de segredo,
Como um rio de loucura . . .

Tudo em volta sente medo . . .
E eu passo desiludida,
Porque sei que morro cedo . . .

Lá me vou, sem despedida . . .
Às vezes, quem vai, regressa . . .
E diz-me a Desconhecida:

"Mais depressa" Mais depressa" . . .

Cecília Meireles

Foto:Maury Perseval

A noite chega com todos os seus rebanhos



Uma cidade amadurece nas vertentes do crepúsculo
Há um íman que nos atrai para o interior da montanha.
Os navios deslizam nos estuários do vento.
Alguma coisa ascende de uma região negra.
Alguém escreve sobre os espelhos da sombra.
A passageira da noite vacila como um ser silencioso.
O último pássaro calou-se.As estrelas acenderam-se.
As ondas adormeceram com as cores e as imagens.
As portas subterrâneas têm perfumes silvestres.
Que sedosa e fluida é a água desta noite!
Dir-se-ia que as pedras entendem os meus passos.
Alguém me habita como uma árvore ou um planeta.
Estou perto e estou longe no coração do mundo.

António Ramos Rosa

Foto:Elena Vasileva

Poética



Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. director.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

Imagem daqui

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Paciência



Ele era paciente. Sempre fora assim. Nunca fora de precipitar-te sobre as coisas, nem de se apressar. Tomava sempre o seu tempo. Ele sabia que a pressa é inimiga da perfeição e para ele, perfeição era saborear o momento com tempo. Às vezes, deixava escapar algumas oportunidades. Outras vezes, colhia os frutos que tinha semeado há muito tempo atrás.

Demorava a preparar-se de manhã. Tomava banho lentamente, sentindo na pele, a macieza do seu gel preferido e a água a escorrer-lhe pela pele. Desfazia a barba com calma, pormenorizadamente. Gostava de comer devagar. Reter o gosto na boca mais tempo. Sofria do stresse do trabalho como os outros mas a lentidão tornava-o mais perfeccionista.

Talvez por ser assim, sentia-se sempre atraído por mulheres eléctricas, recheadas de vida. Tentava tocar-lhes com o seu olhar quente, mas a maioria nem reparava nele, permanecia demasiado na sombra. Apesar da indiferença e das rejeições, mantinha-se firme. Sabia que havia de a encontrar, aquela que o haveria de arrebatar com paixão, aquela que viria repousar na sua doçura. Era só uma questão de deixar aqui e ali umas gomas de carinho, uns rebuçados de amor, uns quadradinhos de prazer. Sabia bem que mais tarde ou mais cedo, conseguiria cativar toda aquela energia. Era só esperar…

Jacky (13.11.2005)

Foto:Tomasz

Fragmento



No que sonho ou cavo
no que me falha ou cinde
existe um brilho
que não alcanço.
Ainda.

Neide Archanjo

Foto:Elena Vasileva

Um dia branco



Dai-me um dia branco, um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.

Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.

Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.

Um dia em que se possa não saber.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto:Dennis Mecham

domingo, fevereiro 11, 2007

Yessssssssssssssssssssssssss:)))



Se as sondagens da SIC forem certas ganha o SIM!
Finalmente ninguém mais precisa de ser preso, de morrer às mãos de carniceiras e podem fazer a IVG em segurança!

Imagem daqui

Como Nasrudin criou a verdade



— As leis não fazem com que as pessoas fiquem melhores — disse Nasrudin ao Rei. — Elas precisam, antes, praticar certas coisas de maneira a entrar em sintonia com a verdade interior, que se assemelha apenas levemente à verdade aparente.

O Rei, no entanto, decidiu que ele poderia, sim, fazer com que as pessoas observassem a verdade, que poderia fazê-las observar a autenticidade — e assim o faria.

O acesso a sua cidade dava-se através de uma ponte. Sobre ela, o Rei ordenou que fosse construída uma forca.

Quando os portões foram abertos, na alvorada do dia seguinte, o Chefe da Guarda estava a postos em frente de um pelotão para testar todos os que por ali passassem. Um edital fora imediatamente publicado: "Todos serão interrogados. Aquele que falar a verdade terá seu ingresso na cidade permitido. Caso mentir, será enforcado."

Nasrudin, na ponte entre alguns populares, deu um passo à frente e começou a cruzar a ponte.

— Onde o senhor pensa que vai? — perguntou o Chefe da Guarda.

— Estou a caminho da forca — respondeu Nasradin, calmamente.

— Não acredito no que está dizendo!

— Muito bem, se eu estiver mentindo, pode me enforcar.

— Mas se o enforcarmos por mentir, faremos com que aquilo que disse seja verdade!

— Isso mesmo - respondeu Nasrudin, sentindo-se vitorioso. — Agora vocês já sabem o que é a verdade: é apenas a sua verdade.

Nasrudin

Imagem daqui

Ninguém



Embriaguei-me num doido desejo
E adoeci de saudade.
Caí no vago ... no indeciso
Não me encontro, não me vejo
Perscruto a imensidade

E fico a tactear na escuridão
Ninguém. Ninguém
Nem eu, tão pouco!

Encontro apenas
o tumultuar dum coração
aprisionado dentro do meu peito
aos saltos como um louco.

Judith Teixeira

Foto:Elena Vasileva

Referendo

Já votei.
E vocês?
Seja qual for a vossa escolha vão votar, exerçam o vosso dever de cidadão para poderem reinvindicar depois direitos.
Não se abstenham!

wind

Do Outro Lado



Quando enfim abri os olhos
debruçado sobre ti, eu olhava teus cabelos finos
tão leves, como um tênue mistério em tua nuca...
E o pequenino lóbulo de tua orelha
onde pendurei o brinco do meu beijo.

E fiquei a pensar que estava ali, tão presente
em ti
e nem me vias...

...Tu estavas do outro lado,
em toda parte de minha vida,
e nem sabias...

J.G. de Araújo Jorge

Foto:Joris Van Daele

sábado, fevereiro 10, 2007

Ma Solitude



Pour avoir si souvent dormi avec ma solitude,
Je m'en suis fait presque une amie, une douce habitude.
Elle ne me quitte pas d'un pas, fidèle comme une ombre.
Elle m'a suivi ça et là, aux quatres coins du monde.

Non, je ne suis jamais seul avec ma solitude.

Quand elle est au creux de mon lit, elle prend toute la place,
Et nous passons de longues nuits, tous les deux face à face.
Je ne sais vraiment pas jusqu'où ira cette complice,
Faudra-t-il que j'y prenne goût ou que je réagisse?

Non, je ne suis jamais seul avec ma solitude.

Par elle, j'ai autant appris que j'ai versé de larmes.
Si parfois je la répudie, jamais elle ne désarme.
Et, si je préfère l'amour d'une autre courtisane,
Elle sera à mon dernier jour, ma dernière compagne.

Non, je ne suis jamais seul avec ma solitude.
Non, je ne suis jamais seul avec ma solitude.

Georges Moustaki

Foto:Maury Perseval

PS:Desculpem ser em francês, mas adoro esta música porque sinto uma grande identificação. Nunca estou só com a minha solidão(e com o Lucas).

Discurso



E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

Cecília Meireles

Foto:Dennis Mecham

Ascensão



Beijava-te como se sobe uma escadaria:
pedra a pedra, do luminoso para o obscuro,
do mais visível para o mais recôndito
– até que os lábios fossem
não o ardor da sede, nem sequer a magia
da subida,
mas o tremor que é pétala do êxtase,
o lento desprender do sol do corpo
com o feliz quebranto dos meus dedos.

João dos Sonhos

Foto: zet_ka aa(Zet)

Poesia Matemática



Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base,
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo otogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela a dela
Até que se encontraram
No Infinito.
"Quem és tu?"indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma dos quadrados dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
- O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs -
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclideanas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar.
Mais que um lar,
Uma perpendicular.

Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Freqüentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que o Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era expúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.

Millôr Fernandes

Imagem daqui

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

O ovo é uma galinha?

"Um ovo não é uma galinha porque não tem vida. Um feto tem vida? Penso que sim. Pessoalmente sou contra o aborto, mas ainda sou mais contra a penalização criminal das mulheres que o façam.
Não creio que, pelo facto de deixar de ser crime, o número de abortos aumente. Poderá sim melhorar as condições em que são feitos. Poderá minimizar o risco para as mulheres que decidirem fazê-lo.
Por isso, embora seja a favor da vida, o meu voto é SIM"


Opinião de Adolfo Luxúria Canibal (vocalista dos Mão Morta), enviada para a mailling-list dos Mão Morta.:

Ena, que grande confusão vai por aí!...

Um feto é um ser humano? E um girino, é uma rã? E um ovo, é uma galinha? E o
pai natal existe? Podes acreditar no que quiseres e actuar em consonância
com o que acreditas, não obrigues é os outros a acreditar no que tu
acreditas. A idade média e a inquisição já eram (espero eu)...

Uma vitória do sim não vai obrigar ninguém a fazer abortos, pelo contrário
vai dar a possibilidade a toda a gente de actuar livremente segundo a sua
consciência. Vai possibilitar que uns não sejam penalizados pelo
fundamentalismo de outros. Achas que um feto é um ser humano: tens toda a
legitimidade para achar isso e para actuares em conformidade, não tens é
legitimidade para me impores que eu ache a mesma coisa e para que eu actue
conforme tu achas - e isso é o não, uma forma de uma crença particular
continuar a impor-se sobre toda uma sociedade!

Nunca conheci ninguém que gostasse de abortar (e conheci muita gente que o
fez...), é das decisões mais terríveis e dolorosas que se pode tomar.
Acrescentar à dor dessa decisão a clandestinidade, com o inerente perigo de
vida (conheci várias pessoas, incluindo amigas, que morreram por sequelas de
aborto) e a ameaça de prisão, para si ou para quem a ajude (também conto
entre os meus amigos pessoas que passaram anos na prisão por terem, de
alguma forma, ajudado na prática de aborto, e eu próprio incorri várias
vezes nesse crime, inclusivé com participação directa no acto abortivo -
havendo falta de dinheiro para recorrer a clínicas clandestinas mais
sofisticadas, improvisava-se a clínica no quarto - é isto o sórdido da
clandestinidade), é, no mínimo, uma crueldade gratuita e malévola. É
inquisição no seu pior! É, mais uma vez, mandar a mulher-bruxa-demónio para
a fogueira.

Deixemo-nos de jogos de semântica! O que está em causa é se devemos ou não
continuar a castigar penalmente e fisicamente aquelas (e aqueles) que, por
qualquer motivo - doloroso, sem dúvida - tiverem que recorrer a uma
interrupção da gravidez. E a minha resposta é não! Não temos o direito de
castigar essas pessoas.

O meu voto é sim, e seria sempre sim fosse qual fosse a pergunta a referendo
desde que possibilitasse qualquer avanço civilizacional na liberalização do
aborto.

Adolfo LC


PS:Recebi por mail, coloquei porque conheço e fui com amigas assistir a alguns abortos clandestinos. Sei perfeitamente como são feitos, como acordam e como ficam fisica e psicologicamente.

Não quero amar-te



Não!! Não quero amar-te.
Não posso amar-te!
Mas és sol
do meu pensamento,
em ti a cada momento.

Lua das frias noites,
abraço
na minha solidão
de todos acompanhada,
sem norte, sem sul,
sem nada,
básicos seres
nesta imensidão
sem fim.

Não quero amar-te!
Seria o meu holocausto
na ara do teu corpo,
tua alma.
Meu ser no teu absorto,
ali, em êxtase, subjugado,
à espera, num soluço,
do teu beijo desejado.

Não! Não quero amar-te!
Mas a minha fantasia
segue os teus passos
no cumprir do dia a dia,
despe-te a roupa
suga-te o sexo
lambe-te o beijo,
colhe-te o abraço
como um pedaço
de mim!!

Helena Guimarães

Foto:Joris Van Daele

Desalinhamentos



Não suporto a visão dos acidentes que se distribuem pela auto-estrada
sigo acumulando desculpas justificativas convincentes por mais um atraso ou ausência
tenho náuseas ao tentar olhar a cena do desastre
ao mesmo tempo amoleço ao mesmo tempo me esforço para acelerar–o carro não obedece
mas sei que nada pode passar de um delírio passageiro
as manhãs nunca passam como gostaríamos
já me acostumei, mesmo sem rádio ou toca-fitas
já me acostumei
a ensaiar um enfarte no meio da avenida
a temer um desmaio em horas impróprias
me acostumei com o sal ao redor dos lábios salvando a pressão
que costuma baixar no calor
me acostumei mesmo com o carro a cena os desastres
rompendo o concreto pela manhã
mas mesmo assim não suporto
não suporto a visão dos acidentes que se distribuem
nem mesmo o acúmulo de justificativas
desculpas
por mais um atraso
mais uma ausência uma falta
enquanto um cão se debate no asfalto
e algumas pessoas se reúnem para assistir.

Annita Costa

Foto:Paweł Dzik

Eu em Descartes



Choro,
existo, logo, choro

E minhas lágrimas
se confundem
com a chuva, lá fora

Choro,
existo, logo, choro

Observo
o flamboyant florido
em meio à avenida
no entardecer
e carros
trespassantes

Observo mesmo
minhas veias
em fuligens
chamando de cór
meu coração

Choro,
existo, logo, choro

Lá,
aos longes,
um ipê todo roxo
em meio a prédios
insistente
- natural das
camadas e do

ozônio,
elo perdido
da natureza

Choro,
existo, logo, choro
Nos prédios
tantos,
solidões,
solidões compartilhadas
e ninguém,
no vazio

Choro,
existo, logo, choro

A noite me
cobre
com seu véu
de verdade:

Eu, meu copo e meu cigarro.

Minha música
minhas contas
meus papéis
minhas cartas
- que dizia
não esperar resposta
e meus gestos
transviados
no olhar alheio
Existo, logo.

Minhas lágrimas
dissolvem-se
por dentro
confundidas
nas veias
com a fuligem

Existo logus,
logo,
Bem locus.
Locus moralis minimus.

Locus ethos,
logo,
ethos sum.

Ergo...

Carlos Alberto de Almeida Dias

Foto:Oleg Gedevani

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Subitamente surge. Tem o teu rosto



O paraíso terrestre é uma flor verde.
As árvores abrem-se ao meio.
O que é sucessivo perde-se.
Se o tempo modifica os seres e os objectos
eu sinto a diferença e gasto-me.
O sol é um erro de gramática, a luz da madrugada
uma folha branca à transparencia da lâmpada.
Soam então os barulhos. Soam
de dentro das janelas,
de dentro das caixas fechadas há mais tempo,
de dentro das chávenas meias de café.
É tarde e és tu,
acima de tudo,
entre a manhã e as árvores,
à luz dos olhos,
à luz só do límpido olhar.

Nuno Júdice

Foto:Yuri B

A Máscara



Quem de nós tem a coragem
de aceitar a sua imagem,
aquela imagem sem graça,
sem rasgos, imagem baça
que o espelho teima em reflectir?

Quem de nós tem a ousadia,
no viver do dia a dia,
de retirar a mordaça
gritando ao vento que passa
o seu interno sentir?

Quem deixa cair a máscara?
Fantasia construída
de cada um para si.
Máscara de Rei, de Profeta,
de intelectual, de poeta,
de homem muito importante
que não esquece a cada instante
o gesto, o sorrir conveniente,
a vénia subserviente,
que nunca o desmascara.

Quem deixa cair a máscara?

Helena Guimarães

Imagem daqui

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Haiku


Ontem à noite
sonhei de corpo inteiro
— acordei com teu cheiro

Alonso Alvarez

Foto:zet_ka aa(Zet)

Número da paixão



Na corda bamba quero ser teu contrapeso
no número das facas assoviar nos teus ouvidos
no globo da morte quero ser teu copiloto
no vai e vem do trapézio quero ser quem te segura

quero te acompanhar pelas ruas do rio sorrindo ou chorando
quero me molhar todinho só pra te deixar sequinha nesse temporal
quero te abraçar apaixonado sentir teu coração pulsar
quero te beijar do oiapoque ao chuí, bem te vi

porque eu sei que teus cabelos são tempestades que me alucinam
que despencarei cada vez que subir nos teus andaimes
que me esfaquearei transtornado com suas sutis insinuações sobre o
tempo

que me transmutarei em nêspera cada vez que me disseres:
hasta luego, luz del fuego
que vagarei sem esperanças quando não mais fizeres parte
dos meus próximos capítulos
que capitularei enfim, com a cabeça espatifada nos escombros
do meu próprio coração.

Chacal

Foto:Eric Kellerman

Precisão



O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

Clarice Lispector

Foto:Howard Schatz

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Que Loucura



Que loucura é a vida!
Turbilhão de sensações,
de existências
que se estiolam
lentas,
em inerte engano.
Vidas tão cinzentas!
Os sonhos desfeitos dia a dia,
a renascer, límpidos
na mesma utopia.
Que loucura é a vida!

Onde estamos nós?
Somos ou não somos?

Alacres gnomos,
nesta imensidão,
cada vez mais sós.
Nos abstraímos.
Vivemos?
Não. Só existimos!

Helena Guimarães

Foto:zet_ka aa(Zet )

Fragmentos de um Diário

Amo
as águas no instante em que não são do rio
Nem pertencem ainda ao mar.....
.....árduas planícies rosto incendiado pesando-me
nos ombros
hirto....tatuado no entardecer de magoada cocaína.....

.....leio baixinho aquele poema Eu de Belaflor
nocturna sombra de corpo embriagado
fogos por descuido acesos no húmido leito dos juncos...
...altíssima margem....inacessível noite de Florbela

e o soneto dizia: Sou aquela que passa e ninguém vê
sou a que chamam triste sem o ser
sou a que chora sem saber porquê

...apesar de tudo conheço bem este rio
e o cuspo diáfano do coral o sono letárgico
dos reduzidos seres marinhos esmagados
na pressa do mar...possuo este resíduo de vida estelar
gravada na pele está a cabeça de medusa loura....dói
nas comissuras penumbrosas das falésias
que me evocam
os ternos lábios das grandes bocas fluviais.....

...sinto o rigor das plantas erectas as vozes esparsas
os corpos de ouro enleados na violência das maresias....
...junto á foz de meu inseguro desaguar...continuo sentado
escrevo a desordem urgente das horas...medito-me
cuidadosamente o tabaco amargo pressente-te na garganta
e no fundo inóspito do corpo desenvolve-se
o desejo de fugir....
.... espero o cortante sal-gema das ilhas.....a ilusão
conseguir prolongar-me na secreta noite dos peixes....
...adormeço enfim
para que estes dias aconteçam mais lentos
nas proximidades inalteráveis deste mar....

Al Berto

Sobre o referendo



Há cerca de 20 anos andava eu no curso e tive uma disciplina de Antropologia, onde a professora que era um génio, nos ensinou que foram os artistas que sempre mudaram as sociedades.
Não vou aprofundar isso aqui, mas se pensarmos bem é verdade. Nenhum político faz nada de bom, quem anda para a frente são os movimentos de artistas, como por exemplo: os músicos, os escritores, os pintores.
Não é por acaso que não acredito em políticos e sempre me dei com artistas, (mesmo sem antes saber que o eram), fazendo eles profissão disso, ou não.
Tive amigos que tocavam, cantavam, escreviam e desenhavam, estes mais raros, talvez porque eu nem um risco direito sei fazer.
Ainda hoje das poucas amizades que tenho, são artistas, embora não façam disso profissão.
E este parlapiet todo para quê?
Porque já estou farta de fundamentalismos sobre o referendo, de ouvir tanto disparate junto, mas como disso já escreveram outros blogs, limito-me a deixar aqui uma preciosidade de Natália Correia dita na Assembleia da República em 5 de Abril de 1982 em resposta ao então deputado do CDS João Morgado autor desta célebre frase: "O acto sexual é para ter filhos", no dia 2 de Abril do mesmo ano.

Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração!
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

Natália Correia/3 Abril 1982

Já conhecia, mas foi mandado por email pela Pink

Foto:Victor Ivanovski

Corpo adentro



Teu corpo é canoa
em que desço
vida abaixo
morte acima
procurando o naufrágio
me entregando à deriva.

Teu corpo é casulo
de infinitas sedas
onde fio
me afio e enfio
invasor recebido
com licores.

Teu corpo é pele exata para o meu
pena de garça
brilho de romã
aurora boreal
do longo inverno.

Marina Colasanti

Foto:Joris Van Daele

Pesadelo



Eu tenho muito,
muito medo,
muito medo de você!
Você é o meu fantasma predileto,
o meu espectro familiar,
que me apavora no sono
e de quem rio ao despertar.
Eu vivo por você num sonho antigo,
um sonho de antanho,
maluco, extemporâneo,
um sonho que já nem é sonho,
pois é quase de manhã.
Da noite alta que se desfez,
surgem palavras bêbadas,
tontas de sono,
ecoando pela casa,
junto aos passos do sonâmbulo.
Surgem de abismos profundos,
mas os abismos do sono
têm a altura da cama
(felizmente!)
E, lentamente, se recompõem
velhas estórias mal contadas,
"buenas dichas", vagos presságios,
frágeis linhas mal traçadas
da minha mão e da tua
entrelaçadas e entrelaçadas...

Mauro Mendes

Foto:Kirill Arsenjev