sábado, maio 31, 2008

Tu



Eclipsaste com um sorriso as tempestades violentas,
E com um simples toque das tuas mãos cariciosas,
Transformaste o céu de nuvens espessas e cinzentas,
Num veludo azul, com delicadas nuvens plumosas.

Emprestaste ao vento o teu perfume de maresia,
Em redor pairam aragens do teu aroma refrescante,
Esse teu cheiro é sonho, é esperança, é poesia,
O sol intimidou-se perante o teu olhar cintilante.

Fizeste do mundo uma contemplação maravilhosa,
E em cada vale, cada rio, cada colina...
Pairam reflexos suaves da beleza despretensiosa,
Que resplandece de ti e generosamente os ilumina.

Roubaste-me as lágrimas. São orvalho prateado!
Refizeste cada uma das tristezas numa nova flor!
Partamos agora. O caminho é longo e acidentado,
Atá chegarmos à nossa floresta perdida do amor.

Gonçalo Nuno Martins, in"Nada em 53 vezes", pág.66,Papiro Editora

Foto:Patrick Di Fruscia

Eu apoio

Poema do silêncio



Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.

José Régio

Foto:Piotr Kowalik

sexta-feira, maio 30, 2008

O eremita



-Tu, eremita,
em especial gostas de alguém?
-De todos os homens,
enquanto os conhecer mal,
e de ninguém,
quando os conheço bem.

Manuel Filipe, in"Nas Palmas Da Noite", pág.48, Apenas Livros

Foto:Dirk Vermeirre

quinta-feira, maio 29, 2008

Cala-te ...



Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido….

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
Com a minha sede.

José Gomes Ferreira

Foto:Manuel Holgado

quarta-feira, maio 28, 2008

A aliança



Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o exemplo. De qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também não tem nada a ver com a crise brasileira, o apartheid, a situação na América Central ou no Oriente Médio ou a grande aventura do homem sobre a Terra. Situa-se no terreno mais baixo das pequenas aflições da classe média. Enfim. Aconteceu com um amigo meu. Fictício, claro.

Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade rotineira, todos os dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos, naquela idade em que já sabe que nunca será o dono de um cassino em Samarkand, com diamantes nos dentes, mas ainda pode esperar algumas surpresas da vida, como ganhar na loto ou furar-lhe um pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou o carro no meio-fio e preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos grandes macacos que o desafiavam no jângal dos seus sonhos de infância, mas o macaco do seu carro tamanho médio, que provavelmente não funcionaria, resignação e reticências... Conseguiu fazer o macaco funcionar, ergueu o carro, trocou o pneu e já estava fechando o porta-malas quando a sua aliança escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no chão. Ele deu um passo para pegar a aliança do asfalto, mas sem querer a chutou. A aliança bateu na roda de um carro que passava e voou para um bueiro. Onde desapareceu diante dos seus olhos, nos quais ele custou a acreditar. Limpou as mãos o melhor que pôde, entrou no carro e seguiu para casa. Começou a pensar no que diria para a mulher. Imaginou a cena. Ele entrando em casa e respondendo às perguntas da mulher antes de ela fazê-las.

— Você não sabe o que me aconteceu!

— O quê?

— Uma coisa incrível.

— O quê?

— Contando ninguém acredita.

— Conta!

— Você não nota nada de diferente em mim? Não está faltando nada?

— Não.

— Olhe.

E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.

— O que aconteceu?

E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e desaparecendo.

— Que coisa - diria a mulher, calmamente.

— Não é difícil de acreditar?

— Não. É perfeitamente possível.

— Pois é. Eu...

— SEU CRETINO!

— Meu bem...

— Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei o que aconteceu com essa aliança. Você tirou do dedo para namorar. É ou não é? Para fazer um programa. Chega em casa a esta hora e ainda tem a cara-de-pau de inventar uma história em que só um imbecil acreditaria.

— Mas, meu bem...

— Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de algum motel. Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-vergonha!

E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir explicações. Ele chegou em casa sem dizer nada. Por que o atraso? Muito trânsito. Por que essa cara? Nada, nada. E, finalmente:

— Que fim levou a sua aliança? E ele disse:

— Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora, eu compreenderei.

Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta. Dez minutos depois reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no casamento deles, mas que eles, com bom-senso, a venceriam.

— O mais importante é que você não mentiu pra mim.

E foi tratar do jantar.

Luis Fernando Verissimo

terça-feira, maio 27, 2008

Instantânio



Enquanto o filho caçula, doente e pródigo, dorme, ela vela. Não fia ou tece.
Espreita o céu azul da tarde, pela janela aberta, e lê o jornal do dia.
Mesmo assim, em seu velho vestido de algodão bordado, deitada sobre a
cama, distraída, daria um belo quadro de Vermeer. Não fossem de prata
seus brincos.

Márcia Maia

Tela:Vermeer

Homem



Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras, nem cinzéis,
Nem acordes, nem pincéis,
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
Desde mais infinito a menos infinito.

António Gedeão

Foto:Piotr Kowalik

segunda-feira, maio 26, 2008

A que caminha



Donde vem
-que tudo agita-
a que caminha pelo mês de Maio,
com o vacilar do vento, nos seus passos?

Ou serão a luz à solta pelo campo,
e o frágil respirar da Primavera
que lhe tornam brusco, e ágil, o andar?

Quem fez tremer as madressilvas inocentes
que se encolhem, se por cima corre o ar?

Donde vem ela, solitária e singular,
com uma papoila a sorrir, entre os seus dentes?

Manuel Filipe, in"Nas Palmas Da Noite", pág.39, Apenas Livros

Foto:Yuri Bonder

domingo, maio 25, 2008

Um poeta não fode, ama



Um poeta não fode, ama.
Um poeta faz da página cama
Onde se deita, se contorce
Se abre e se sacia.
Um poeta toca as palavras
Como se acariciasse o corpo
E o poema cresce
E o poeta é verso
Que rola na página cama
Onde o poeta não fode, mas ama
E acaricia o corpo/verso
E o orgasmo que tem
É a poesia!

Encandescente, in"Encandescente", pág.56,Editora Polvo

Foto:José Miguel Rodríguez

Paulo Gonzo - Leve Beijo Triste



Teimoso subi
Ao cimo de mim
E no alto rasgei
As voltas que dei

Sombra de mil sóis em glória
Cobrem todo o vale ao fundo
Dorme meu pequeno mundo

Como um barco vazio
P'las margens do rio
Desce o denso véu lilas
Desce em silêncio e paz
Manso e macio

Deixa que te leve
assim tão leve
Leve e que te beije meu anjo triste
Deixo-te o meu canto canção tão breve
Brando como tu amor pediste

Nao fales calei
Assim fiquei
Sombra de mil sóis cansados
Crescendo como dedos finos
A embalar nossos destinos

Deixa que te leve
assim tão leve
Leve e que te beije meu anjo triste
Deixo-te o meu canto canção tão breve
Brando como tu amor pediste

(Solo)

Deixa que te leve
assim tao leve
Leve e que te beije meu anjo triste
Deixo-te o meu canto canção tão breve
Brando como tu amor pediste.



Foto:Gianluca Nespoli

Cantarei o Amor



Acima de tudo
cantarei o amor

O de Cristo de Confúcio, o de Romeu e D. Juan,
o de Che Guevara,
acima de tudo cantarei o amor.

Em todos os momentos, lascivos ou gloriosos
mansos ou eróticos,
unindo dois ou arrastando milhões,
nascido da ternura ou da revolta
procriando seres ou idéias,
acima de tudo cantarei o amor.

O amor
- cimento e força -
que constrói e ilumina
que convoca e conquista,
- bola de neve do bem inevitável,
acima de tudo cantarei o amor.

E o tirarei do coração
como a hóstia do cálice
ou o sol, da manhã,
ou a espada, da bainha,
- fulcro para a alavanca do meu verso
mover o mundo -

Acima de tudo cantarei o amor.

J.G. de Araújo Jorge

Foto:Yan Stav

sábado, maio 24, 2008

Sereno rosto



Quem perturba a rua, na manhã deserta?
Que obscuro silêncio procura afastar?
Que sereno rosto, na luz que desperta,
oculta um Inverno, triste, no olhar?

Oh! Mulher discreta, é a tua mão
que nesta cidade, colhe a solidão?

Manuel Filipe, in"Nas Palmas Da Noite", pág.7,Apenas Livros

Foto:Yuri Bonder

sexta-feira, maio 23, 2008

O suicida



O suicídio
não é algo pessoal
Todo suicida
nos leva
ao nosso funeral

O suicida
não é só cruel consigo.
É cruel, como cruel
só sabe ser
- o melhor amigo.
O suicida
é aquele que pensa
matar seu corpo a sós
Mas o seu eu se enforca
num cordão de muitos nós.

O suicida
não se mata em nossas costas.
Mata-se em nossa frente
usando seu próprio corpo
dentro de nossa mente.

O suicida
não é o operário
É o próprio industrial, em greve.
É o patrão
que vai aonde
o operário não se atreve.

Todo homem é mortal.
Mas alguns, mais que outros,
fazem da morte
- um ritual

O suicida, por exemplo,
é um vivo acidental.
É o general
que se equivocou de inimigo

e cravou sua espada
na raiz do próprio umbigo.
Mais que o espectador
que saiu no entreato,
o suicida
é um ator
que questionou o teatro.

O suicida
é um retratista
que às claras se revela.
Ao expor seu negativo,
queima o retrato
- e se vela.

O suicida, enfim,
é um poeta perverso
e original
que interrompeu seu poema
antes do ponto final.

Affonso Romano de Sant'Anna

Foto:Rakesh Syal

quinta-feira, maio 22, 2008

O frio silêncio



Por tantas vozes o querem nomear,
esqueceu-as
mergulhando
no frio silêncio do mar.

Manuel Filipe, in"Nas Palmas Da Noite", pág.26, Apenas Livros

Foto:Zacarias Pereira da Mata

PS:Novo livro de Manuel Filipe

quarta-feira, maio 21, 2008

Conheço o sal



Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

Jorge de Sena

Foto:Paul Bolk

terça-feira, maio 20, 2008

A mulher que passa



Meu Deus, eu quero a mulher que passa
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pelos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me concontrava se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacífica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.

Vinícius de Moraes

Foto:Gianluca Nespoli

segunda-feira, maio 19, 2008

Sei-te de cor



Sei de cor
cada traço do teu rosto, do teu olhar
cada sombra da tua voz e cada silêncio,
cada gesto que tu faças,
meu amor sei-te de cor

sei cada capricho teu e o que não dizes
ou preferes calar, deixa-me adivinhar
não digas que o louco sou eu
se for tanto melhor
amor sei-te de cor

sei porque becos te escondes,
sei ao pormenor o teu melhor e o pior
sei de ti mais do que queria
numa palavra diria
sei-te de cor.

sei cada capricho teu e o que não dizes
ou preferes calar deixa-me adivinhar
não digas que o louco sou eu
se for tanto melhor
amor sei-te de cor

sei de cor cada traço do teu rosto, do teu olhar
cada sombra da tua voz e cada silêncio,
cada gesto que tu faças
meu amor sei-te de cor.

Paulo Gonzo

Tempos



Eu sempre soube da verdade em teus olhos.
O que eles me disseram mantive guardado,
fora do alcance das conversas.

Havia um tempo em que a despedida
principiava um outro encontro,
escondido dos olhos e das conversas.

Havia um tempo com um doce cheiro no ar
de todos os perfumes.
Uma busca constante do olhar,
um gosto a mais nas coisas...
Era batom!

E era depois a pele,
o deslizar dos cabelos,
o afago das mãos...

A casa cheia de nossas conversas,
dos modos, das esperas e demoras.
Uma vida em tantos acordar!

Era por fim um outro olhar,
sem mais as mesmas verdades
(embora nunca mentiras).
Mas sem as mesmas respostas.

Outras vozes agora falam no nosso silêncio.
Mudamos os rumos,
os olhares,
o sentido da conversa.

Celso Brito

Foto:Janosch Simon

domingo, maio 18, 2008

Catando os cacos do caos



Catar os cacos do caos
como quem cata no deserto
o cacto
- como se fosse flor.

Catar os restos e ossos
da utopia
como de porta em porta
o lixeiro apanha
detritos da festa fria
e pobre no crepúsculo
se aquece na fogueira erguida
com os destroços do dia.

Catar a verdade contida
em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas
no pêlo
- do dia cão.

Recortar o sentido
como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso
com a inconsútil emenda
à vista.

Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.

Catar os cacos de Dionisio
e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho
ou sangue vertido.

Catar os cacos de Orfeu partido
pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer
o fígado
- como era antes.

Catar palavras cortantes
no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras
o brilho do diamante.

É um quebra-cabeça? Então
de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada
deixar gravada a emoção

Cacos de mim
Cacos do não
Cacos do sim
Cacos do antes
Cacos do fim

Não é dentro
nem fora
embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora
que violento
o sentido nos deflora.

Catar os cacos
do presente e outrora
e enfrentar a noite
com o vitral da aurora.

Affonso Romano de Sant'Anna

Foto:Rakesh Syal

sábado, maio 17, 2008

O Amor bate na porta



Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não posso compreender...

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, maio 16, 2008

E tudo mudou...



O rouge virou blush
O pó-de-arroz virou pó-compacto
O brilho virou gloss

O rímel virou máscara incolor
A Lycra virou stretch
Anabela virou plataforma
O corpete virou porta-seios
Que virou sutiã
Que virou lib
Que virou silicone

A peruca virou aplique, interlace, megahair, alongamento
A escova virou chapinha
"Problemas de moça" viraram TPM
Confete virou MM

A crise de nervos virou estresse
A chita virou viscose.
A purpurina virou gliter
A brilhantina virou mousse

Os halteres viraram bomba
A ergométrica virou spinning
A tanga virou fio dental
E o fio dental virou anti-séptico bucal

Ninguém mais vê...

Ping-Pong virou Babaloo
O a-la-carte virou self-service

A tristeza, depressão
O espaguete virou Miojo pronto
A paquera virou pegação
A gafieira virou dança de salão

O que era praça virou shopping
A areia virou ringue
A caneta virou teclado
O long play virou CD

A fita de vídeo é DVD
O CD já é MP3
É um filho onde éramos seis
O álbum de fotos agora é mostrado por email

O namoro agora é virtual
A cantada virou torpedo
E do "não" não se tem medo
O break virou street

O samba, pagode
O carnaval de rua virou Sapucaí
O folclore brasileiro, halloween
O piano agora é teclado, também

O forró de sanfona ficou eletrônico
Fortificante não é mais Biotônico
Bicicleta virou Bis
Polícia e ladrão virou counter strike

Folhetins são novelas de TV
Fauna e flora a desaparecer
Lobato virou Paulo Coelho
Caetano virou um chato

Chico sumiu da FM e TV
Baby se converteu
RPM desapareceu
Elis ressuscitou em Maria Rita?
Gal virou fênix
Raul e Renato,
Cássia e Cazuza,
Lennon e Elvis,
Todos anjos
Agora só tocam lira...

A AIDS virou gripe
A bala antes encontrada agora é perdida
A violência está coisa maldita!

A maconha é calmante
O professor é agora o facilitador
As lições já não importam mais
A guerra superou a paz
E a sociedade ficou incapaz...

... De tudo.

Inclusive de notar essas diferenças.

Luís Fernando Veríssimo

quinta-feira, maio 15, 2008

Cilada verbal



Há vários modos de matar um homem:
com o tiro, a fome, a espada
ou com a palavra
- envenenada.

Não é preciso força.
Basta que a boca solte
a frase engatilhada
e o outro morre
- na sintaxe da emboscada.

Affonso Romano de Sant'Anna

Foto:Berenice Kauffmann Abud - AFIAP

quarta-feira, maio 14, 2008

Infinitamente Presente



No voo
pela noite dos leves mistérios
Onde as estrelas se transformam em anjos,
O sonho liberta um calor profundo,
Enchendo o infinito de fogo e paixão.

O murmúrio dourado dos teus olhos,
Transforma-se no raio de luz
Que multiplica a estrada da vida
Clarificando a imagem do amanhã.

Os segredos vão voando docemente
Por entre vagas de suspiros,
E as recordações vagueando
Pelos recantos da memória transparente.

Simples histórias quentes,
Remexendo com o passado recente,
Crepúsculo de energia crescente
Paraíso da sereia apaixonada.

No esplendor da viagem
Encontro o brilho da canção
Sorrindo alegremente
E descubro a pureza da tua imagem.

Jorge Viegas

Foto:Anna.Edyta Przybysz

terça-feira, maio 13, 2008

Em Louvor da Promiscuidade



Quem tem de amor,
físico amor, ideia
que os olhos não possuem qual amor façamos
e que ele não vive do que os outros façam
ante os curiosos olhos com que bebamos
o ritmo das ancas como as formas
enlaçadas por mãos e pernas, sexos e bocas,
de pudicícia desastrada e matrimónica
com prostituta ou esposa. ou vive
de imaginar paixões por um só corpo
que não são mais que tê-lo tido e o hábito
de continuar a tê-lo. amor-amor
é uma outra coisa, mas não isto
nem o prazer que é feito de um prazer alheio
feito só de prazer sem pensamento
- que no promiscuo amor o imaginar
é só imaginar-se o que varia em acto.

Jorge de Sena

Foto:Paul Bolk

segunda-feira, maio 12, 2008

Cântico



Num impudor de estátua ou de vencida,
coxas abertas, sem defesa... nua
ante a minha vigília, a noite, e a lua,
ela, agora, descansa, adormecida.

Dos seus mamilos roxo-azuis, em ferida,
meu olhar desce aonde o sexo estua.
Choro... e porquê? Meu sonho, irreal, flutua
sobre funduras e confins da vida.

Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos...
enquanto o luar a numba, inerte, gasta
da ternura feroz do meu amplexo.

Cantam-me as veias poemas nunca feitos...
e eu pouso a boca, religiosa e casta,
sobre a flor esmagada do seu sexo.

José Régio

Foto:Yuri Bonder

domingo, maio 11, 2008

Hey Jude

Porque é espectacular!:)

***



A esperança mói.

A esperança dói.

A esperança mói,

a esperança

dói porque mói;

A esperança mói;

a esperança

dói porque dói.

A esperança mói

mói mói

dói

Cassiano Ricardo, "Moinho"

Foto:Yuri Bonder

Poema "roubado" descaradamente à Eli

sábado, maio 10, 2008

Não és tu



Era assim tímido esse olhar,
A mesma graça, o mesmo ar;
Corava da mesma cor,
Aquela visão que eu vi
Quando eu sonhava de amor,
Quando em sonhos me perdi.

Toda assim; o porte altivo,
O semblante pensativo,
E uma suave tristeza
Que por toda ela descia
Como um véu que lhe envolvia,
Que lhe adoçava a beleza.

Era assim; e seu falar,
Ingénuo e quase vulgar,
Tinha o poder da razão
Que penetra, não seduz;
Não era fogo, era luz
Que mandava ao coração.

Nos olhos tinha esse lume,
No seio o mesmo perfume,
Um cheiro a rosas celestes,
Rosas brancas, puras, finas,
Viçosas como boninas,
Singelas sem ser agrestes.

Mas não és tu... ai! não és:
Toda a ilusão se desfez.
Não és aquela que eu vi,
Não és a mesma visão,
Que essa tinha coração,
Tinha, que eu bem lho senti.

Almeida Garrett

Foto:Yuri Bonder

sexta-feira, maio 09, 2008

Poética



Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

Foto:Piotr Kowalik

quinta-feira, maio 08, 2008

O rio



Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu, da terra.
Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milênios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.

Um rio nasceu.

Vinícius de Moraes

Foto:Patrick Di Fruscia

Paul Simon & Art Garfunkel - Bridge Over Troubled Water



Porque gosto.

Como de Súbito na Vida



Como de súbito na vida tudo cansa!
e cansa-nos a vida e nos cansamos dela,
ou ela é quem se cansa de nós mesmos,
na teima de existir e desejar?
Porque, neste cansaço, não o que não tivemos,
ou que perdemos, ou nos foi negado,
o que de que se cansa, mas também
o quanto temos, nos ama, se nos dá
a até os simples gozos de estar vivo.
Um dia é como se uma corda se quebrara,
ou como se acabara de gastar-se,
que nos prendia a tudo e tudo a nós.
Não é que as coisas percam importância,
as pessoas se afastem, se recusem,
ou nós nos recusemos. Não.é mais
ou menos que isto- se deseja igual
ao como até há pouco desejávamos.
É talvez mais. Mas sem valor algum.
O dia é noite, a noite é dia, a luz
se apaga ou se derrama sobre as coisas
mas elas deixam de ter forma e cor,
ou se sumir no espaço como forma oculta.
E o que sentimos é pior que quanto
dantes sentíamos nas horas ásperas
da fúria de não ter ou de ter tido.
Porque se sente o não sentir. Um tédio
Não como o tédio antigo. Nem vazio.
O não sentir. Que cansa como nada.
Até dizê-lo cansa. É inútil. Cansa.

Jorge de Sena

Foto:Stanmarek

quarta-feira, maio 07, 2008

Novas poesias inéditas



Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

Alberto Caeiro

Foto:Rakesh Syal

terça-feira, maio 06, 2008

José



E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você consasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Carlos Drummond de Andrade

Foto:Piotr Kowalik

segunda-feira, maio 05, 2008

Nas ervas



Escalar-te lábio a lábio,
percorrer-te: eis a cintura
o lume breve entre as nádegas
e o ventre, o peito, o dorso
descer aos flancos, enterrar

os olhos na pedra fresca
dos teus olhos,
entregar-me poro a poro
ao furor da tua boca,
esquecer a mão errante
na festa ou na fresta

aberta à doce penetração
das águas duras,
respirar como quem tropeça
no escuro, gritar
às portas da alegria,
da solidão.

porque é terrivel
subir assim às hastes da loucura,
do fogo descer à neve.

abandonar-me agora
nas ervas ao orvalho -
a glande leve.

Eugénio de Andrade

Foto:Paul Bolk

Pardalzinho



O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!

Manuel Bandeira

domingo, maio 04, 2008

A defesa do poeta



Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em criança que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e Sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.

Natália Correia

Imagem daqui

sábado, maio 03, 2008

Poemas para a amiga (Fragmento 3)



É tão natural
que eu te possua
é tão natural que tu me tenhas,
que eu não me compreendo
um tempo houvesse
em que eu não te possuísse
ou possa haver um outro
em que eu não te tomaria.

Venhas como venhas,
é tão natural que a vida
em nossos corpos se conflua,
que eu já não me consinto
que de mim tu te abstenhas
ou que meu corpo te recuse
venhas quando venhas.

E de ser tão natural
que eu me extasie
ao contemplar-te,
e de ser tão natural
que eu te possua,
em mim já não há como extasiar-me
tanto a minha forma
se integrou na forma tua.

Affonso Romano de Sant'Anna

Foto:Paul Bolk

Subúrbios



Trago-me preso a um desejo
de me unir ao vento
arrastar as ondas
e atirá-las nas pedras

traço-me em planos
tortos, obtusos, interrogativos
arrisco-me em pequenos versos
em espaços ínfimos

ergo-me simétrico
lanço-me em linha reta
só o tempo curva em mim

há um dor que me atravessa
que risca minha poesia
afogada em tantas indagações.

Celso Brito

Foto:Zacarias Pereira da Mata

sexta-feira, maio 02, 2008

A frescura



Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que'eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

Álvaro de Campos

Foto:Piotr Kowalik

Desesperança



Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo. . .

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado,
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspeto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

- Ah, como dói viver quando falta a esperança!

Manuel Bandeira

Foto:Gianni Candido

quinta-feira, maio 01, 2008

Dos milagres



O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!

Mário Quintana

Foto:Rakesh Syal

1º de Maio de 1974



Meu Maio

A todos
Que saíram às ruas
De corpo-máquina cansado,
A todos
Que imploram feriado
Às costas que a terra extenua –
Primeiro de Maio!
Meu mundo, em primaveras,
Derrete a neve com sol gaio.
Sou operário –
Este é o meu maio!
Sou camponês - Este é o meu mês.
Sou ferro –
Eis o maio que eu quero!
Sou terra –
O maio é minha era!

Vladimir Maiakovski

Estive na Alameda, às cavalitas do meu pai:)

Imagem daqui