segunda-feira, dezembro 31, 2012

Recomeça….



Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…
Miguel Torga
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Desejo a todos um Bom 2013:)

sábado, dezembro 29, 2012

Fingir que está tudo bem



Fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga. 


José Luís Peixoto

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quinta-feira, dezembro 27, 2012

Tu eras também uma pequena folha



Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.


Pablo Neruda

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terça-feira, dezembro 25, 2012

Dia de Natal




Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?)
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente acotovela, se multiplica em gestos esfuziante,
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
E como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha em pijama.

Ah!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus,
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

António Gedeão

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sexta-feira, dezembro 21, 2012

Também o deserto vem


 
Também o deserto vem
do mar. Não sei em que navio,
mas foi desses lugares
que chegaram ao meu jardim
as palmeiras.
Com o sol das areias
em cada folha,
na coroa o sopro
ainda húmido das estrelas.


Eugénio de Andrade

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quarta-feira, dezembro 19, 2012

Atento, vejo a chama fulva da abelha




Atento, vejo a chama fulva da abelha
e a cadência do desejo monótono vagabundo
num pequeno corpo ardente e frágil.
O mundo aqui é um sopro verde
em que tudo flui em silenciosos gozos.
Na delícia do ócio o pensamento
entrega-se ao vento e ao olvido.
Só o desejo ordena o fluente ardor
que em mil meandros se propaga no ar.
E de tanto respirar essa pátria volante
eu própria sou a espessa substância do bosque.

António Ramos Rosa

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segunda-feira, dezembro 17, 2012

Evadir-me, esquecer-me



Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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sábado, dezembro 15, 2012

Minuto



O amor? Seria o fruto
trincado até mais não ser?
(Mas para lá do prazer
a Vida estava de luto …)
Fui plantar o coração
no infinito: uma flor…
(Mas para lá do fervor
a Vida gritou que não!)
O amor? Nem flor nem fruto.
(Tudo quanto em nós vibrara
parecia pronto a ceder …)
Foi apenas um minuto:
a fome intensa tão rara!,
de ser criança, ou morrer…
David Mourão-Ferreira
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quinta-feira, dezembro 13, 2012

Não canto porque sonho



Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
O teu sorriso puro,
A tua graça animal.
Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria 
somente um bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinha.
Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
Por vê-los nus e suados.

Eugénio de Andrade


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terça-feira, dezembro 11, 2012

Amei demais



Madruguei demais. Fumei demais. Foram demais 
todas as coisas que na vida eu emprenhei. 
Vejo-as agora grávidas. Redondas. Coisas tais, 
como as tais coisas nas quais nunca pensei. 

Demais foram as sombras. Mais e mais. 
Cada vez mais ardentes as sombras que tirei 
do imenso mar de sol, sem praia ou cais, 
de onde parti sem saber por que embarquei. 

Amei demais. Sempre demais. E o que dei 
está espalhado pelos sítios onde vais 
e pelos anos longos, longos, que passei 

à procura de ti. De mim. De ninguém mais. 
E os milhares de versos que rasguei 
antes de ti, eram perfeitos. Mas banais. 


Joaquim Pessoa

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domingo, dezembro 09, 2012

Poesia do nascer do dia



Minha praia ardorosa e solitária 
aberta ao grande vento e ao largo mar 
tu me viste querer-lhe com a doce 
piedade das sombras do luar 

teus cabos se adiantam como braços 
para abraçar as ninfas receosas 
que fugindo oferecem sobre as vagas 
suas nítidas formas amorosas 

braços paralisados por desejo 
que o mundo e sua lei não permitiu 
ou suspendeu amor que livre jogo 
maior que posse em fugaz tempo viu 

e como vós me alongo e como tu 
areia me ofereço a toda sorte 
por sua liberdade ou por destino 
que por só dela seja belo e forte. 

Agostinho da Silva

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sexta-feira, dezembro 07, 2012

quarta-feira, dezembro 05, 2012

Pesca



O humilde pescador nocturno
aguarda que um peixe se deslumbre
com o brilho da hélice desligada
sob o silêncio cúmplice das estrelas
e abraçado à botija de aguardente
não reclama sequer a sua presa
antes aguarda a incerta esmola
que o mar complacente às vezes nega.

O humilde pescador nocturno
aguarda que um peixe se distraia
com o seu barco que em soluços sincopados
respira levemente sobre as ondas,
enquanto os olhos reclinados sobre as águas
reconhecem o perfil do horizonte
e quase se perdem na contemplação dos astros
e quase se afogam na noite de diamantes.

Manuel Filipe, in"Via de Curetes", pág.37, Edição do Autor

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segunda-feira, dezembro 03, 2012

Lisa says



"À noite
todos os gajos são parvos"

Manuel Filipe, in"Via de Curetes", pág.42, Edição do Autor

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sábado, dezembro 01, 2012

quinta-feira, novembro 29, 2012

Amor



Amor, amor, amor, como não amam
os que de amor o amor de amar não sabem
como não amam se de amor não pensam
os que amar o amor de amar não gozam.
Amor, amor, nenhum amor, nenhum
em vez do sempre amar que o gesto prende
o olhar ao corpo que perpassa amante
e não será de amor se outro não for
que novamente passe como amor que é novo.
Não se ama o que se tem nem se deseja
o que não temos nesse amor que amamos
mas só amamos quando amamos ao acto
em que de amor o amor de amar se cumpre.
Amor, amor, nem antes, nem depois,
amor que não possui, amor que não se dá,
amor que dura apenas sem palavras tudo
o que no sexo é o sexo só por si amado.
Amor de amor de amar de amor tranquilamente
o oleoso repetir das carnes que se roçam
até ao instante em que paradas tremem
de ansioso terminar o amor que recomeça.
Amor, amor, amor, como não amam
os que de amar o amor de amar não amam.
Jorge de Sena
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terça-feira, novembro 27, 2012

Sentenças delirantes dum poeta para si próprio em tempo de cabeças pensantes



1
Não te ataques com os atacadores dos outros.
Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção.
0 mesmo deves fazer com os açaimos.
E com os botões.

2
Não te candidates, nem te demitas. Assiste.
Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira.
Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia.

3
Tira as rodas ao peixe congelado,
mas sempre na tua mão.

Depois, faz um berreiro.
Quando tiveres bastante gente à tua volta,
descongela a posta e oferece um bocado a cada um.

4
Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre
um caixote com serradura à tua espera.
Pode haver. Se houver, melhor...

Esta deve ser a tua filosofia.

5
Tudo tem os seus trâmites, meu filho!
Não faças brincos de cerejas
sem te darem, primeiro, as orelhas.

Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia.

6
Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que
te puseram em cima da cabeça?
Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.

É provável que te sintas logo muito melhor.

Sai, então, de baixo da pedra.

7
Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra.
Poderias atrapalhar os trabalhos.
Os de pedra sobre pedra, entenda-se.

Mas dá sempre um "Bom dia!" ao pessoal do estaleiro.
Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa.

8
Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre
com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo
a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia.
Oxalá o consigas!

(...)

11
Resume todas estas sentenças delirantes numa única
sentença:
Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa

 Alexandre O'Neill

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domingo, novembro 25, 2012

sexta-feira, novembro 23, 2012

Crepuscular



A incerteza cai com a tarde
no limite da praia. Um pássaro
apanhou-a, como se fosse
um peixe, e sobrevoa as dunas
levando-a no bico. O
seu desenho é nítido, sem
as sombras da dúvida ou
as manchas indecisas da
angústia. Termina com a
interrogação, os traços do fim,
o recorte branco de ondas
na maré baixa. Subo a estrofe
até apanhar esse pássaro
com o verso, prendo-o à frase,
para que as suas asas deixem
de bater e o bico se abra. Então,
a incerteza cai-me na página, e
arrasta-se pelo poema, até
me escorrer pelos dedos para
dentro da própria alma.


Nuno Júdice

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quarta-feira, novembro 21, 2012

Retrato Ardente



No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra. 

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre. 

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio. 

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha


Eugénio de Andrade

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segunda-feira, novembro 19, 2012

Bastava-nos amar. E não bastava


Bastava-nos amar. E não bastava
          o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar

a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.
Joaquim Pessoa 

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sábado, novembro 17, 2012

Outono


Uma lâmina de ar
Atravessando as portas. Um arco,
Uma flecha cravada no outono. E a canção
Que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.
E um velho marinheiro, grave, rangendo o cachimbo como
Uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio.
É outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza
Quando saio para a rua, molhado, como um pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se
Da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.
Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede
Cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se
Como se, de repente, não houvesse mais nada senão
A imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.
Não há palavras que descrevam a loucura, o medo, os sentidos.
Não há um nome para a tua ausência. Há um muro
Que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho
Que a minha boca recusa. É outono.
A pouco a pouco despem-se as palavras.

Joaquim Pessoa 

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sexta-feira, novembro 16, 2012

Parabéns Observador:)

O Observador hoje faz anitos, por isso nada como cantar-lhe os parabéns:)



Para o seu nick arranjei esta imagem:



Festeja bem o dia, amigo virtual:)




quinta-feira, novembro 15, 2012

Lisa says



"Os ausentes
enchem as noites de silêncio."

Manuel Filipe, in"Via de Curetes", pág.14, Edição do Autor

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quarta-feira, novembro 14, 2012

terça-feira, novembro 13, 2012

Credo



Foi abandonado na terra
para aprender a andar sobre as águas
como certo deus menor.

Conheceu a imperfeição,
a penosa tristeza dos homens
e as múltiplas formas de viver na angústia.

Não estava preparado.
Obrigou-se a crer na ressurreição da carne,
talvez à terceira noite.

Manuel Filipe, in "Via de Curetes", pág.61, Edição de Autor

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segunda-feira, novembro 12, 2012

Meio-dia



Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo
Parece bater palmas.


Sophia de Mello Breyner Andersen

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domingo, novembro 11, 2012

Nocturno com flores



(...)

sem as cores propriamente
do jardim a seus pés
a Lua insolvente
espreita de revés
o vermelho estridente
do canteiro de aloés

(...)

Manuel Filipe, in"Via de Curetes", pág.59, Edição do Autor~

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sexta-feira, novembro 09, 2012

Estranhamente



Transmitimos o desprezo
através de uma língua obscura
que faz crescer o silêncio

e por sua vez o silêncio propaga-se
nesse mais que obscuro desprezo
que tantas vezes nos detém a língua,

mas a poesia
obscura língua desprezada
nasce estranhamente do silêncio.

Manuel Filipe, in"Via de Curetes", pág. 49, Edição do Autor

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quinta-feira, novembro 08, 2012

Domingo


Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.
Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar…
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
«Bom tempo para amanhã»…
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina…
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
— porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!
Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.
Partindo deste princípio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!
Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores…
Penso isto, e vou a grandes passadas…
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia.
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz…
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
— ao sol como num ritual consagrado a um deus! —
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida…
Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!
E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura…
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos…
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bem feito
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés…
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos.
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
— rapaz, traz-me um café…
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
— Olha, quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol…
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
— …. no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água…
… um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou…
O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?…
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.
Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!
Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou…
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes…
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó…
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!
Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!
Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!
Manuel da Fonseca, retirado da Eli
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quarta-feira, novembro 07, 2012

Um regato



(...)

estreito e temeroso
no escuro e às cegas
o caminho das águas
entre avencas e canas
revela-se apenas
no rolar luminoso
das pedras mais pequenas

(...)

Manuel Filipe, in"Via de Curetes", pág. 54, Edição do Autor

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terça-feira, novembro 06, 2012

segunda-feira, novembro 05, 2012

agosto 31 18:30



nem azul
imensa e cor de madrepérola
                                a lua
              despida de amores
perdoa o lugar-comum
                             e baila
além da minha janela

Márcia Maia

Foto: Eli

sábado, novembro 03, 2012

A parte do anjo



Bebeste-me de um trago
ou pausadamente
como quem testemunha um desastre?

As flores  suadas que outrora
pontuavam a fita do teu rosto
arrepanham-se agora inférteis.

Deves regá-las delicadamente
como era hábito fazer às madeiras fúteis
onde os corpos reabilitavam a sede.

Ornatos, nichos reservados aos olhos
mais fulgentes, de tudo isso guardo
apenas o sumo demorado da pele.

Bebeste-me de um trago,
perguntei, ou pausadamente
como quem se evapora de si?

Vasco Gato, in"Este é o Meu Sangue", pág.21, Tea For One, 2012

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quinta-feira, novembro 01, 2012

As quatro estações



Vem o Inverno com o seu carrinho do frio
a apertar nas curvas; a Primavera e os seus
paroxismos que não duram muito; o Verão
e os seus langores de ainda menos; e por fim,
mas também pode ser no meio ou no princípio,
lá vens tu, que não falhas nunca, melancólico
e misericordioso Outono, a estenderes-me a taça
de vinho puro que eu bebo lenta e gravemente
com aquela lentidão, aquela gravidade característica
dos que não têm religião nenhuma, ou têm apenas essa.

Rui Caeiro, in"Este é o Meu Sangue", pág.20, Tea For One, 2012

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