segunda-feira, julho 31, 2006

Pórtico



Outros serão
os poetas da força e da ousadia.
Para mim
— ficará a delicadeza dos instantes que fogem
a inutilidade das lágrimas que rolam
a alegria sem motivo duma manhã de sol
o encantamento das tardes mornas
a calma dos beijos longos.
(Um ócio grande. Morre tudo
dum morrer suave e brando...

Que os outros fiquem com o seu fel
as suas imprecações
o seu sarcasmo.
Para mim
será esta melancolia mansa
que me é dada pela certeza de saber
que a culpa é sempre minha
se as lágrimas correm ...

João José Cochofel

Foto:Gianni Candido

Dormes...



XVIII

Dormes... Mas que sussurro a umedecida
Terra desperta? Que rumor enleva
As estrelas, que no alto a Noite leva
Presas, luzindo, à túnica estendida?

São meus versos! Palpita a minha vida
Neles, falenas que a saudade eleva
De meu seio, e que vão, rompendo a treva,
Encher teus sonhos, pomba adormecida!

Dormes, com os seios nus, no travesseiro
Solto o cabelo negro... e ei-los, correndo,
Doudejantes, sutis, teu corpo inteiro

Beijam-te a boca tépida e macia,
Sobem, descem, teu hálito sorvendo
Por que surge tão cedo a luz do dia?!

Olavo Bilac

Foto:Maury Perseval

sábado, julho 29, 2006

A que há-de vir



Aquela que dormirá comigo todas as luas
É a desejada de minha alma.
Ela me dará o amor do seu coração
E me dará o amor da sua carne.

Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo
E virá a mim com os peitos e virá a mim com os lábios
Ela é a querida da minha alma
Que me fará longos carinhos nos olhos
Que me beijará longos beijos nos ouvidos
Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso.
Ela só verá minhas alegrias e minhas tristezas
Temerá minha cólera e se aninhará no meu sossego

Ela abandonará filho e esposo
Abandonará o mundo e o prazer do mundo
Abandonará Deus e a Igreja de Deus
E virá a mim me olhando de olhos claros
Se oferecendo à minha posse
Rasgando o véu da nudez sem falso pudor
Cheia de uma pureza luminosa.
Ela é a amada sempre nova do meu coração
Ela ficará me olhando calada
Que ela só crerá em mim
Far-me-á a razão suprema das coisas.
Ela é a amada da minha alma triste
E a que dará o peito casto
Onde os meus lábios pousados viverão a vida do seu coração

Ela é a minha poesia e a minha mocidade
É a mulher que se guardou para o amado de sua alma
Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela dele.

Ela é o amor vivendo de si mesmo.
É a que dormirá comigo todas as luas
É a que eu protegerei contra os males do mundo.

Ela é a anunciada de minha poesia
Que eu sinto vindo a mim com os lábios e com os peitos
E que será minha, só minha, como a força é do forte e a poesia é do poeta.

Vinícius de Moraes

Foto:Stanmarek

Lição de um gato siamês



Só agora sei
que existe a eternidade:
é a duração
finita
da minha precariedade

O tempo fora
de mim
é relativo
mas não o tempo vivo:
esse é eterno
porque afetivo
– dura eternamente
enquanto vivo

E como não vivo
além do que vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo).

Ferreira Gullar

Foto:José Marafona

sexta-feira, julho 28, 2006

Gozo IX



Ondula mansamente a tua língua
de saliva tirando
toda a roupa...

já breves vêm os dias
dentro de noites já
poucas.

Que resta do nosso
gozo
se parares de me beijar?

Oh meu amor...
devagar...
até que eu fique louca!

Depois... não vejas o mar
afogado em minha
boca!

Maria Tereza Horta

Foto:Stanmarek

O Poço



Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.

Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?

Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.

Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.

Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.

Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.

Pablo Neruda

Foto:Stanmarek

quinta-feira, julho 27, 2006

O livro sobre nada



Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

Tudo que não invento é falso.

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia.

Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.

A inércia é o meu ato principal.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.

Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Por pudor sou impuro.

Não preciso do fim para chegar.

De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra — Como um lápis numa península.

Do lugar onde estou já fui embora.

Manoel de Barros

Imagem daqui

Desencontro Marcado



É, não vem,
não vou.
Deixa pra lá,
depois se vê.
Você queima
e eu não ponho
a mão no fogo por você.

Aldir Blanc

Foto:Gianny Candido

quarta-feira, julho 26, 2006

Dádiva



Não me peçam palavras melífluas
quando apenas a sonora gargalhada
me irrompe do peito como pedra lascada
nem sorrisinhos de catálogo de moda
quando o mijar numa esquina da cidade
é um acto poético e cheira a vida
não me peçam gestos simétricos e convencionais
quando um cosmopolítico manguito
abarca toda a náusea
de Bordalo a Pasolini
Não me peçam nunca aquilo que vós quereis
porque eu dou apenas aquilo que possuo
e que é esta raiva enorme de cuspir
esta feroz vontade de gritar
e o sexo amplo enorme e predisposto
a fertilizar o amor em todas as esquinas
peçam-me a mim
nada mais
e dar-vos-ei tudo o que possuo
o suor o sangue o sexo
EU
e comigo dar-vos-ei o homem primitivo
o que recusa a civilização do marketing
o que caga nas gravatas dos public-relations
mas que aposta no futuro único do
CRESCEI E MULTIPLICAI-VOS
Sim peçam-me a mim
Tomai e comei

ESTE É O MEU CORPO

Fernando Peixoto

Foto:Solatges Irina

Janela de Desejo



Avisto-te ao longe
Ainda distante
Aguardo por ti
Meu fogoso amante

Reconheço-te as feições
Distingo os teus traços
Espero com desejo
Que me tomes nos braços

Espreito-te à janela
Já te vejo aproximar
Estou nua à tua espera
Pronta para me entregar

Aguardo que passes a porta
Vibro a cada passo teu
Como se sentisse já
Teu corpo entrando no meu.

Entras finalmente em casa
Comes-me só com o olhar
Arrasto-te até à cama
Anda, vem-me Amar...

Poema:Xuk, feito através de um desafio que lhe fiz através da foto.

Foto:Maury Perseval

terça-feira, julho 25, 2006

Orgasmo



Sexo
adorável
palavra
Ato
delicioso
incansável
Corpo
curvas derrapantes
maravilhoso
Você
estou condenada
você é a culpada
De desejos ardentes
Noite gelada
Inverno na madrugada
Parece verão
Corpo febril
Culpa da paixão
Seu rosto infantil
Sorrindo
Não pare...
Estou quase atingindo.

Liz Christine

Foto:Lutz Behnke

Frase/Pensamento



"Não ponha o dedo na vida do outro. Você pode estar tocando merda e de graça."



Palumbo


Imagem daqui

Ofício de Amar



Já não necessito de ti
Tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
Tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio
De outras galáxias, e o remorso.....

.....um dia pressenti a música estelar das pedras
abandonei-me ao silêncio.....
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo.

Al Berto

Foto:Calvato

Ecos Na Catedral



Os teus olhos são vitrais
Que mudam de cor com o céu
E quando sorriem, iguais...
E quando sorriem, iguais...
Quem muda de cor sou eu

Tomara teus olhos vissem
O amor que trago por ti
Nem o entardecer me acalma...
Nem o entardecer me acalma...
Na ânsia de te ter aqui

E o teu perfume, o incenso
Os ecos de uma oração
Misturam-se num esboço imenso
Afogam-se na solidão

Fui para um templo de pedra
Escolhi um recanto isolado
Que me faça esquecer tua voz...
Esquecer-me da tua voz...
Que me faça acordar do passado

Escondida em sítio sagrado
E não me apetece o perdão
Devo estar enfeitiçada
Náufrago do coração

E o teu perfume, o incenso
Os ecos de uma oração
Misturam-se num esboço imenso
Afogam-se na solidão

Não sei se perdoo o meu fado
Não sei se consigo enfim
Um dia esquecer que teus olhos
Sorriem, mas não para mim

Madredeus

Foto:Dionísio Leitão

segunda-feira, julho 24, 2006

Levando......



Há um quê de tristeza no meu canto,
na minha solitária dança.

Há um quê de espanto ante este imutável
cotidiano.

Parece que da última vez já se passaram anos.

De você, esperava tanto...
Troca, aceitação, confiança.

Como nos escravizamos,
ou nos deixamos escravizar.
E mais fundo mergulhamos
até a luz do sol não mais enxergar.
E assim a sagrada vida atravessamos,
sem sustos, desafios, e sem mudanças,
pois acima de tudo respeitamos:
os outros, nós mesmos, nossos limites.
Até nos enganamos, nos convencendo
de que há outra chance: outra vida,
novo par, uma outra dança...

Cecília Quadros

Foto:Sascha Hüttenhain

Superheróticos



Enquanto o Incrível Hulk
cresce na parte de cima
verde que nem perereca,
a pobre parte de baixo,
vermelhinha de vergonha,
não rasga nem a cueca.
Já o Homem Invisível
tem um troço tão encolhido
que ganhou este apelido.
E o Homem Aranha? Coitado!
Dia e noite, noite e dia
só na luta contra o mal
deve ter teias no pau...
Êta turminha sem sal!
Não é ridículo?
Ninguém aguenta mais os Super Homens,
com seus cintos de utilidade
e estreitas mentalidades...
Homens com maiúsculos agás,
"gagás".
Chega dos valores desta escala:
muito falo e pouca fala.
Se afinal é preciso mudar tudo,
que se tire então, do homem, o H mudo.

Leila Míccolis

Foto:Arthur Tress

sábado, julho 22, 2006

Ponto de vista



Eu não tenho vergonha
de dizer palavrões,
de sentir secreções
(vaginais ou anais).
As mentiras usuais
que nos fodem sutilmente
essas sim são imorais,
essas sim são indecentes.

Leila Míccolis

Foto:Eolo Perfido

Inscrição estival



Ó grande plenitude!

E a tudo
a tudo alheio,
saboreio.

Absorto
sorvo
este cacho de uvas
tão maduras...

Este cacho de curvas que é o teu corpo.

David Mourão-Ferreira

Foto:Sascha Hüttenhain

sexta-feira, julho 21, 2006

Feitiço



Eu gostava de olhar para ti
E dizer-te que és uma luz
Que me acende a noite, me guia de dia e seduz...

Eu gostava de ser como tu
Não ter asas e poder voar
Ter o céu como fundo, ir ao fim do mundo e voltar...

Eu não sei o que me aconteceu...
Foi feitiço!
O que é que me deu?
Para gostar tanto assim de alguém
Como tu...

Eu gostava que olhasses
para mim
E sentisses que sou o teu mar
Mergulhasses sem medo, um olhar em segredo, só para eu
Te abraçar...

Eu não sei o que me aconteceu...
Foi feitiço!
O que é que me deu?
Para gostar tanto assim de alguém
Como tu...

O primeiro impulso é sempre mais justo, é mais verdadeiro...
E o primeiro susto dá voltas e voltas na volta redonda de um beijo profundo...

Eu...
Eu não sei o que me aconteceu...
Foi feitiço!
O que é que me deu?
Para gostar tanto assim de alguém
Como tu...
Eu...
Não sei o que me aconteceu...
Foi feitiço!
O que é que me deu?
Para gostar tanto assim de alguém
Como tu...
Como tu...

André Sardet

Foto:Maury Perseval

Erótico puritano



As pontas dos meus seios apontam para o céu
inchados e duros
pequenos e brancos
reluzem e gritam
enquanto as estrelas queimam e umedecem
meus santos orifícios
com seus toques inesperados.
sou cega, muda, espasmódica.
pernas abertas por um mundo melhor.

Niandra LaDez

Foto:Stanmarek

Amor, pois que é palavra essencial



Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da prórpia vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o climax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

Carlos Drummond de Andrade

Foto:Gregor Podgorski

quarta-feira, julho 19, 2006

Frase/Pensamento



Não faças aos outros o que queres que te façam; os gostos deles podem ser diferentes dos teus.


Bernard Shaw

Imagem daqui

Excerto de "Estação Dourada"



[…]

Abriu-se a porta do quarto e, ainda enlaçados, entram em desiquilíbrio numa insólita suite, cheia de divãs verdes, com duas tapeçarias do Camarinha atrás do enorme tálamo, e vários desenhos estilizados de António Carneiro na parede do fundo, onde branquejam os vaporosos cortinados de musselina que caem pesadamente os reposteiros, emoldurando a grande janela ogival, que deve dar para o jardim.
Sentam-se na beira da cama, que é de facto imensa, com colcha de damasco, e que range.
- Vê lá se essa janela está bem fechada. Que frio!
- Vê-se daqui a poeira das estrelas a cair sobre um muro branco, lá longe. O muro branco do nada.
- Lá estás tu…Já não me queres beijar? Os beijos não são contagiosos.
- Pois não. Agora o resto…creio que não tenho preservativos. Chatice! Estás a ver, não ando sempre preparado para as ocasiões.
- Não gosto de te ouvir falar assim.
- Não sei o que tenho Madalena. Decepção?
Depois fita-a, como se de repente fosse perdê-la, a engolir a palavra indesculpável, e deita-a sobre o leito imenso, nem afasta a colcha, que é também pesada. Desaperta botões, puxa-lhe a camisola de caxemira pela cabeça, quase lhe rebenta os atilhos do soutien, até expor às luzes veladas do quarto os seus mamilos erectos, as axilas escuras de tentadora, toda a morna solidão da sua pele. Até lhe tocar, com os dedos a tremerem, o sexo húmido de orvalho.
- Pára, por favor.
- Não sei se consigo, Madalena.
- Beija-me o umbigo, aí onde tenho o sinal da maldade.
Apertam-se, largam-se, despem-se completamente, quase ao desafio, tornam a beijar-se, lânguidos, saboreando-se, brincam, beliscam-se, lambem-se, a lua roça-se pelos canaviais, o sangue da paixão bate-lhes nas veias, rega as mãos com que eles já se possuem, talvez chame alucinações ou se misture aos lírios da pureza quando eles sorriem.
É em delírio, como num sonho mau, mas onde o mal é o bem e o bem é o mal, quando António se arqueia sobre ela, qual a estaca vermelha se enterra não na boca, como previsto, mas na obscura flor do ventre de Madalena.
O orgulho dela loucura divina dissipe-se quando os lábios comovidos de ambos se unem sobre o ardor da batalha.
[…]

Urbano Tavares Rodrigues, in Publicações Europa-América, Lisboa, 2003

Foto:Joris Van Daele

terça-feira, julho 18, 2006

Into My Arms



I don't believe in an interventionist God
But I know, darling, that you do
But if I did I would kneel down and ask Him
Not to intervene when it came to you
Not to touch a hair on your head
To leave you as you are
And if He felt He had to direct you
Then direct you into my arms

Into my arms, O Lord
Into my arms, O Lord
Into my arms, O Lord
Into my arms

And I don't believe in the existence of angels
But looking at you I wonder if that's true
But if I did I would summon them together
And ask them to watch over you
To each burn a candle for you
To make bright and clear your path
And to walk, like Christ, in grace and love
And guide you into my arms

Into my arms, O Lord
Into my arms, O Lord
Into my arms, O Lord
Into my arms

And I believe in Love
And I know that you do too
And I believe in some kind of path
That we can walk down, me and you
So keep your candlew burning
And make her journey bright and pure
That she will keep returning
Always and evermore

Into my arms, O Lord
Into my arms, O Lord
Into my arms, O Lord
Into my arms.

Nick Cave & The Bad Seeds

Foto:Michel Pilon

Amo o teu túmido candor de astro



A tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva
Por ti eu sou a leve segurança de um peito
que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata
Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar
Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto.

António Ramos Rosa

Foto:Gianni Candido

segunda-feira, julho 17, 2006

Frase/Pensamento



As mulheres podem tornar-se facilmente amigas de um homem; mas, para manter essa amizade, torna-se indispensável o concurso de uma pequena antipatia física."


Nietzsche

Foto: Philippe Cometti

domingo, julho 16, 2006

Excerto de "A balada da praia dos cães"



[...] Às vezes pasmo, Melanie, com a exactidão com que estes momentos me vêm à memória. Estou a ver o elevador, é como se tivesse sido ontem. O portão de grades trabalhadas em cobre, o guarda-vento de vidros foscos com umas flores lavradas que pareciam jarros do oriente. E os espelhos aos lados? E o banquinho de veludo na parede do fundo, tão virginal, tão romântico? Oh, era uma cestinha de arcanjos, aquele elevador, todo em ouros e brancos esmaltados. Mas o inesquecível era a máscara do diabo que havia no tecto a olhar cá para baixo! Assustava e enternecia. Tinha uns corninhos de fauno, saídos do conjunto da figura que era em relevo dourado e com uma mascarilha vermelha. Tantas minúcias, eu bem digo…Não te parece estranho?
E todavia tudo se passou fora do tempo e do espaço! Tudo, ma chèrie, Tudo! Ainda mal tínhamos fechado a porta já o Gaston-Philippe se colava a mim a percorrer-me desvairadamente com as mãos. Contornava-me, cingia-me com um braço e procurava-me as coxas e as nádegas por baixo da roupa. Eu própria levantei o vestido, colando-me mais a ele, e imagina a surpresa que o tomou quando sentiu nos dedos a verdade do meu ventre!
Sim, minha Melanie, eu estava nua por baixo do vestido! Não me perguntes porquê, mas no bar, por um impulso inexplicável, tinha ido ao toilette com esse propósito. Um presságio? Só sei que estava feliz com o meu instinto, felicíssima. O assombro e o deslumbramento do Gaston-Philippe por aquela surpresa não tiveram limites e eu sentia isso através da sua mão que era grata e ardente. E que hábil, que mão! Que imaginativa e que extensa, Melanie! Penetrava com tais segredos que me levava para lá da ascensão do próprio elevador e logo me esgotava e me fazia afundar à medida que voltávamos a descer.
Impossível calcular as vezes que percorremos para baixo e para cima aqueles cinco andares. Uma verdadeira escalada do paraíso! Subíamos e mergulhávamos, e tornavamos a subir…a nossa viagem parecia não ter fim, pois o Gaston.-Philippe era daqueles amantes afortunados nos quais l’amour fou é servido por um talento prático ajustado às circunstâncias e, assim, manobrava o manípulo do elevador no momento exacto em que ele se ia a deter.
Mas entontecedor ainda foi que dei por ele de joelhos, abraçado às minhas pernas e abrindo-me toda ao mesmo tempo, nem sei, com o rosto mergulhado nas minhas coxas! Então senti-me trespassada por algo muito vivo e voraz, por uma espessura revolvente e arguta que me descobria por dentro e me dilatava, sugando-me. E eram mais coisas, minha querida, os dentes percorrendo os pelos e os músculos , o calor do rosto contra o meu ventre, as mãos explorando-me as nádegas, tanta coisa!
Eu, de pé, um perna em cima do ombro dele, via-me ao espelho e não me reconhecia. Esquecida, esquecida, liberta pelo espaço…"

José Cardoso Pires, Excerto de "O texto" em A Balada da Praia do Cães, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1982.

Foto:Elena Vasileva

Dá-me o tempo



Deita-te em mim,
Descobre onde estás,
Escuta o silêncio,
Que o meu corpo te traz.
Não me deixes partir,
Não me deixes voar,
Como um pássaro louco
Como a espuma do mar.

Sente a força da noite
Como facas no peito,
Como estrelas caídas
Que te cobrem o leito.
Tenho tantos segredos
Que te quero contar
E uma noite não chega,
Diz que podes ficar.

Dá-me o tempo,
Dá-me a paz,
Viver por ti não é demais.
Dá-me o vento,
Dá-me a voz,
Viver por ti, morrer por nós.

Enfim nós os dois,
Os teus gestos nos meus,
Perdidos no quarto
Sem dizermos adeus.
Adiamos a noite,
Balançamos parados,
Pela última vez
Os nossos corpos colados.

Sente a força que temos
Quando estamos assim,
Um segundo é o mundo
Que nos separa do fim.
Porque tens de partir
Quando há tanto a dizer?
Eu não sei começar,
Não te quero perder.

Refrão

(Eu gosto das formas que tomas,
Como o toque do cristal,
E dos vidros, dos poemas,
Da febre do metal)

Pedro Abrunhosa

Foto:Eric Richmond

sábado, julho 15, 2006

Poema canino



Ontem vesti um par de boxers
Cada um deles me comeu
Um tomate
Eram vegetarianos.


In "De boas erecções está o Inferno cheio" poesia satírica de Dick Hard

Imagem daqui

Poema para Medgar Evers



(Líder negro dos EUA assassinado a bala quando entrava à noite em sua casa)

1

Sound
Our
Soul

– bell

Sound
Our
Soul

– bell

Sound
Our
Soul

– bell.

Em algum ponto do mundo é noite
e um homem negro tomba morto.

KU
KLUX
KLAN
– Alabama.

KU
KLUX
KLAN
– Aleluia.

2

Negra
Noite
oculta
a fala.

Negro
corpo
oculta
a bala.

Negro
forro
é negro
morto.

KU
KLUX
KLAN
– Alabama

KU
KLUX
KLAN
– Aleluia.

3

O Senhor é meu pastor
HALLELLUIA ! HALLELLUIA !
Mas um lobo me atacou
HALLELLUIA! HALLELLUIA!
No vale da escura noite
HALLELLUIA! HALLELLUIA!
Meu corpo se amortalhou
HALLELLUIA! HALLELLUIA!
Sobre as taças do inimigo
HALLELLUIA! HALLELLUIA!
O meu sangue transbordou
HALLELLUIA! HALLELLUIA!
O senhor é meu pastor
HALLELLUIA! HALLELLUIA!
Mas um branco me matou
HALLELLUIA! HALLELLUIA!

KU
KLUX
KLAN
– Aleluia

KU
KLUX
KLAN
– Alabama.

4

No Alabama
É onde o homem é menos homem
É onde o homem quando é branco
– é lobo e homem

e o homem quando é negro
– é lodo e lama.
No Alabama
Um homem quando é negro
sabe que seu sangue porque é negro
– é drama

e cedo ou tarde pelas pedras
– se derrama.

No Alabama
É onde o homem é menos homem.
Dali é que nos chega
O sangue inscrito em telegrama.
Dali é que nos chega
Um nome que era negro e escuro
E agora se transfunde em pura chama.

KU
KLUX
KLAN
– Aleluia.
KU
KLUX
KLAN
– Alabama.

Affonso Romano de de Sant'Anna

Imagem daqui

Resposta ao Anjo Gabriel



Agora que aprendeste a incendiar-me
e me adivinhas inteira dentro do vestido
agora que invadiste a sala e o chão de minha casa
agora que fechaste a porta
e me calaste com teus lábios e língua
peço-te afoitamente
que me faças assim
ínfima e sagrada
muito mais pornográfica do que lírica
muito mais profana do que tântrica
muito mais vadia do que tua.

Iracema Macedo

Foto:Stanmarek

sexta-feira, julho 14, 2006

Provas da inexistência de Deus (por ele mesmo)



Sonhei que Deus dava autógrafos
À saída do Céu
Depois de uma sessão
De poesia

Nos copos da assistência
Escorria uísque
E o patrocinador era
A Coca-Cola

"Eu não existo"
Disse Deus, modesto
Um coro de vozes bradou
"Você é o maior!"

Sorrindo beatífico de barbas
Deus ganhou fôlego
E prosseguiu
Lampeiro

"Eu não existo
Sou invenção dos povos
Aos quais agradeço
A deferência

Eu não existo
Sou um sonho nocturno
Para muitos
A referência"

Os aplausos ribombaram
E na Terra houve trovoadas
Que duraram
Três dias e três noites

Na livraria Barata
Surgiu um livro curioso
"Eu não existo"
Assinado por Deus

Edição de autor
Discreta, top de vendas
Mística e
De boa leitura

In "De boas erecções está o Inferno cheio" poesia satírica de Dick Hard

Foto:José Marafona

Fantasia assinada



Tínhamos, não sei por que nem quando, combinado que ele ia fazer meu retrato, mas nunca dava tempo e nenhum dos dois se organizava pra conseguir uma brecha na agenda. Um dia era ele que esperava a visita de um galerista importante, outro era eu que não acreditava em duendes e tinha que trabalhar. Enquanto isso, rodando como um fundo musical, uma euforia que ainda não era concretamente um tesão; mais parecida era com a excitação pela idéia de fazer o que jamais havia feito: posar para um pintor.

Nada que justificasse tanto alvoroço. Ninguém tinha combinado que eu deveria me despir para posar. Mas, lá no íntimo, já eu partia desse pressuposto. Querendo. Imaginando muito mais. Temendo.

Até quando nos encontramos numa festa. Ele veio conversar e baixinho, rouco, como se conspirando, perguntou quando eu poderia ir vê-lo em seu atelier. Olhei para os lados pra me certificar se meu namorado não estava nas proximidades e marquei dia e hora. Selamos o acordo.

Sem nada assumir, escolhi calcinhas de cetim verde escuro quase preto, combinando com um sutiã rendado. Meias novas e um figurino irretocável, sugerindo pecado. Banho, ao começar a me aprontar, perfume gostoso espalhado pelo corpo inteiro, inclusive entre os dedos dos pés. Surpresa me critiquei: Ainda não conseguiram pintar a imagem dos cheiros.

Consumindo-me em fantasias, depois de tanta preparação, ali estávamos um em frente ao outro. Ele, de macacão salpicado de tinta de todas as cores e ocasiões, mas o rosto barbeado e, se não me engano, exalava um leve cheiro de madeira perfumada como os perfumes da moda.
Foi me explicando como fazia suas próprias tintas, como com elas invadia as telas. Segurou-me com carinho pelo queixo, a luz do sol examinou meu rosto e minha mão, para decidir qual matiz seria o mais apropriado. Pôs-se a trabalhar, enquanto eu, caladinha, sentada no único divã de veludo cor de maravilha, alisava o tecido, observando. Mais tarde veio conferir a tonalidade que encontrara para minha cor: entre cambraia e pêssego, comentou, quase inaudível. Em seguida, parecia que eu já não estava mais ali. Concentrava-se para esboçar-me.

Pincelava na tela meu rosto que não se parecia comigo de início para depois começar a parecer-se. Vinha e apalpava meus olhos com os polegares. Voltava ao cavalete. Olhava-me. Olhava a tela à distância. Examinava-me longa e lentamente; gesto sempre despudorado. Aproximava-se e me acariciava o nariz, medindo-o. Voltava a seu posto. Trocou de pincel, pegando agora um bem mais delicado. Desceu aos lábios de forma aplicada. Voltou a manipular as tintas numa paleta que trouxe para perto, e me explicou que estava inventando uma cor para meus lábios, descrevendo-os com gulosa luxúria. Experimentando a cor, passou o tímido pincel pelos contornos de minha boca, ato demorado, cuidadoso, ilícito; me deixando arrepiada, me obrigando a suspirar alto, quase me traindo. E para que ele não adivinhasse o estado de minhas calcinhas, fechei os olhos e o deixei servir-se, modular-me. Voltou à tela e depois de me pincelar à vontade, foi até a janela e decidiu que o sol já não mais o satisfazia. Continuaríamos no dia seguinte. Eu estava tonta. Rubra. Afogueada. Ele notou e indagou com cinismo se no dia seguinte eu conseguiria ficar como agora. Ria pelo cantinho da boca quando o deixei, respondendo: talvez.

Ao chegar o tal dia seguinte, ele tinha se adiantado e já desenhado meu pescoço. Contou-me que passou a noite inteira a fazer isso, me imaginando. Dizendo assim passava os dedos pelas minhas linhas, na tela, mais uma vez me arrepiando cá, me umedecendo lá.

Chegando perto ainda mais ousado, deslizou o olhar por mim inteira, descendo pela curva dos seios por entre o decote, adivinhando-os em tamanho e formato, desenhando-os demoradamente. Acariciava um depois o outro com o pincel. A partir daí me olhava com o rabo de um só olho, enquanto com a cabeça do polegar esfumava sombras em meus mamilos, que em mim se iam encolhendo, ficando durinhos. E ele a me fitar como se estivesse percebendo o arco-íris por baixo de minha blusa.

Acho que está ficando seca. Vou molhá-la mais. Estava se referindo à tinta. Deu lambidinhas nas linhas do pescoço, descendo até um dos meus peitos em figura, enquanto passava os dedos pelo outro, com ternura.

O corpo dele se avolumava também me querendo, fazendo de seu macacão uma tenda armada, assim como o meu o queria, regando-se. Mas graças à diferença eu estava absolutamente confiante que ele não sabia do que acontecia em mim, pois meu corpo não se denunciava como o dele, assim. Maliciosa, ria do que nele se passava, e ele não podia se rir igualmente de mim por ser masculino, expressionista.

Foram muitas essas sessões entre tardes ensolaradas ou escuras. De todas elas eu saía excitada, sentindo um não sei o quê, que vinha não sei de onde, e doía não sei por quê. Era tudo feito muito vagarosamente, prolongando os momentos. Fatalmente chegou o dia em que ele, já depois de ter me definido o umbigo e me acariciado o ventre com seus instrumentos, revelou minhas coxas e o que está entre elas, meu sexo, feixe das emoções mais fortes dessa vida. Me fez de pêlos louros e ralos, como sou. Me fez de pernas largas e abertas esperando sua visita, como estava. E para se certificar de que seria bem-vindo, acrescentou ao quadro duas gotinhas soltas descendo pela minha virilha esquerda, sugerindo já saber dos líquidos que de mim se geravam, mistérios da alma indiscreta que denuncia o querer feminino, cheio de ambivalências impressionistas.

Querendo comparar criação e criatura, quando o retrato ficou pronto, me pediu agora, finalmente, para tirar a roupa toda. Precisava ver-me. Eu precisava dele.

Nua, me conduziu pelos ombros, colocando-me ao lado da obra, na mesma posição da imagem. Como outras vezes já tinha feito, tomou distância para avaliar o resultado. Enquanto olhava para nós também se desnudava. Seu pincel, seu sexo já se preparavam para o ato final. Foi só quando veio a completar esse seu trabalho, satisfazendo-lhe o último detalhe, imprimindo em meu dentro sua assinatura e no canto inferior direito do quadro, seu orgasmo.

Joyce Cavalccante

Foto:Stanmarek

quarta-feira, julho 12, 2006

A Mulher Que Virou Homem



Meu pai me disse: meu filho tá muito cedo
Eu tenho medo que você case tão moço
Eu me casei e olha o resultado
Eu tô atolado até o pescoço

Minha mulher apesar de ter saúde
Foi pra Hollywood, fazer uma operação
Agora veio com uma nova bossa
Com a voz grossa que nem um trovão
Quando eu pergunto o que é isso, Joana?

Ela responde: você se engana
Eu era Joana antes da operação
Mas de hoje em diante meu nome é João
Não se confunda nem troque meu nome
Fale comigo de homem pra homem
Fique sabendo mais de uma vez
Que você me paga tudo que me fez

Agora eu ando todo encabulado
E essa mágoa é que me consome
Por onde eu passo todo mundo diz:
Aquele é o marido da mulher que virou homem


Eu nunca vi mulher machona
Eu já vi muita bichona, já vi muito travesti
Já vi macho virar fêmea se operando lá em baixo
Mas mulher virando macho acho que eu nunca vi

Eu já lhe disse meu nome é João
E depois da operação eu sou cabra muito macho
E tu me paga por tudo que me fizeste
Tu vai ver o cabra-da-peste
Tu vai sossegar o facho

Porque um diacho desse jeito foi acontecer comigo?
Mas só pode ser castigo
Virou tudo pelo avesso
A minha sina é tomar conta da fachina
Pra esposa masculina
Ai meu deus, eu não mereço

Não reclame mais da vida
E vá fazer minha comida
Porque tu fez carne moída e eu pedi carne de sol
Ponha tudo na bandeja
E não se esquece da cerveja
Cala a boca e não me beija
Que eu to vendo futebol

Gabriel Pensador

Foto:Pierre és Gilles

Sexualidade



Eu sou heterossexual
sou roxo.
Eu sou homossexual
sou cor de rosa.
Eu sou bissexual
sou violeta neon.
Eu sou trissexual
abro meu leque na mão.
Eu sou quadrissexual
sou amarelo – limão.
Eu sou quinssexual
sou laranja – dourado.
Eu sou seis vezes
a cor do pecado.
Vou mudando de cor
até chegar no estado puro dos tons.
Sou branco virgem
na tonalidade assexuada.

Cristiane Neder

Foto:Howard Schatz

terça-feira, julho 11, 2006

A fruta aberta



Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.

Agora sei as coisas como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.

Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.

Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.

Thiago de Mello

Foto:Elena Vasileva

Reportagem



Aborrecido, passeio
Pelas ruas da cidade.
Deixei agora o Rossio
E atravesso o Borratém.
Deu meia-noite pausada
No Carmo. Um amigo meu
Passa e tira-me o chapéu.
Paro a uma esquina. Esmoreço
Numa saudade que surge
Dentro de mim não sei como:
Uma saudade infinita,
Misto de choro e revolta.
Alguém me chama no escuro:
Volto a cabeça. A uma porta
Um vulto mexe. - Sou eu!,
Não fuja, sou eu... - Mas quem?
Retrocedo, não conheço
A mulher que me chamou.
Na verdade ninguém ouve,
Ninguém distingue o apelo
Do amor que anda perdido
No mistério de mentir:
Deixo-a ficar onde estava;
Dou-lhe um cigarro e um sorriso
Dizendo que vou dormir.
Atira-me boa-noite
Num frio olhar de ofendida.
Meto à rua do Amparo
A perguntar se esta vida
Não terá finalidade
Menos sórdida e banal?
Atafonas. Uma Igreja.
Mais acima o Hospital.
Um marinheiro propõe
A esta que atravessou
A rua do Benformoso
Irem tomar qualquer coisa
Na Leitaria da Guia.
Ela pára. É uma catraia
Que talvez não tenha ainda
Dezasseis anos. Bonita.
Devagar vou-me chegando
Xaile, uma blusa, uma saia...
E oiço a fala dos dois.
Ele parece uma onda,
Impetuoso, alagante.
Ela é um breve bandó
Num corpito provocante.
E seguem... Ele, encostado,
Muito encostado e aquecido
Lá vai como se encontrasse
Um objecto perdido
Que foi milagre encontrá-lo...
Cortaram além!... E param?
Oiço o rebate de um estalo
E um grito subtil de prece
Amedrontada na fuga...
Desço ao Marquês do Alegrete.
Um candeeiro sinistro
Numa casa que se aluga...
Vejo um polícia. Arrefece.
Um grupo de três sujeitos
Discute o vinho de Torres.
Varrem as ruas. Um gato
Bebe água numa sarjeta;
Uma carroça parou
Carregada de hortaliça
Junto à Praça da Figueira.
Corto a rua dos Fanqueiros
Já um pouco estropiado...
Acendo um cigarro. A noite
Lembra um fantasma assustado...
Chego ao Terreiro do Paço.
O arco da rua Augusta
Parece mais imponente
Na minha desolação...
Vou até ao cais. Em baixo
O rio bate sem reacção...
A maré vasa. No céu,
Vão-se apagando as estrelas.
Um guarda-fiscal dormita
Na guarita, mas de pé.
Um velhote com um cesto
E uma lata vem dizer-me
Se eu quero beber café.
Num banco de pedra. Cismo.
E ali me fico a cismar
Em coisa nenhuma... O dia
Principia a querer ser
Mais um passo na incerteza
Das nossas aspirações...
As águas do rio a escutar
Parecem adormecidas...
E o dia nasce! Vem triste,
Nublado, fosco, cinzento,
Enquanto pela cidade
A vida acorda e desata
O matinal movimento...

António Botto

Foto:Stanmarek

segunda-feira, julho 10, 2006

Ausência



Procurei o meu corpo ao acordar
Encontrei-o cansado. Deitado numa posição estranha.
Nada habitual.
Quando o vesti tinha um cheiro que não o meu
E doíam-me na pele marcas que não me lembro.
Soube que me tinhas sonhado.
Ausente de mim no sono
O meu corpo vagueou nas tuas mãos.

Encandescente in Erotismo na Cidade, página 23

Foto:Maury Perseval

Algum dia...



Algum dia um novo Papa
anunciará altivo
que Deus é raiz quadrada
de um quantum negativo
e o Deus que tanto procuro
em que atingido me afundo
é aquele ser-não-ser
do que acontece no mundo
da matéria mais que densa
é que é divertido ser
ali se nada acontece
tudo pode acontecer.

Agostinho da Silva

Imagem daqui

O laço e o abraço



Meu Deus! Como é engraçado! Eu nunca tinha reparado como é curioso um
laço... uma fita dando voltas?

Enrosca-se, mas não se embola, vira, revira, circula e pronto: está dado o laço.

É assim que é o abraço: coração com coração, tudo isso cercado de braço.

É assim que é o laço: um abraço no presente, no cabelo, no vestido,

em qualquer coisa onde o faço. E quando puxo uma ponta, o que é que acontece?

Vai escorregando... devagarzinho, desmancha, desfaz o abraço.

Solta o presente, o cabelo, fica solto no vestido.

E, na fita, que curioso, não faltou nem um pedaço.

Ah! Então, é assim o amor, a amizade. Tudo que é sentimento.

Como um pedaço de fita. Enrosca, segura um pouquinho,

mas pode se desfazer a qualquer hora, deixando livre as duas bandas do laço.

Por isso é que se diz: laço afetivo, laço de amizade.

E quando alguém briga então se diz: romperam-se os laços.

E saem as duas partes, igual meus pedaços de fita, sem perder nenhum pedaço.

Então o amor e a amizade são isso...

Não prendem, não escravizam, não apertam, não sufocam.

Porque quando vira nó, já deixou de ser um laço.

Mário Quintana

Foto:Joris Van Daele

domingo, julho 09, 2006

Perguntas à Língua Portuguesa



Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o vôo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem, é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.

Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.

Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulburbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?

Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?

No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?

A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?

O mato desconhecido é que é o anonimato?

O pequeno viaduto é um abreviaduto?

Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?

Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?

Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?

Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?

O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?

Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?

Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?

Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?

Mulher desdentada pode usar fio dental?

A cascável a quem saiu a casca fica só uma vel?

As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?

Um tufão pequeno: um tufinho?

O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?

Em águas doces alguém se pode salpicar?

Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?

Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?

Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?

Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.

Mia Couto

Imagem daqui

sexta-feira, julho 07, 2006

C (Como és)



Eu só quero o teu namoro
Não quero os papéis, nem amarras
Que te afastem de mim
Quero ouvir o teu corpo
Gritar com alma: sim!

Eu não quero o teu cuidado
Nem quero saber do passado
Seja ele bom ou ruim
Quero-te aqui agora
Sem princípio, nem meio, nem fim

E mais além de nós os dois
Há um mais um
Que não estão sós
És tão linda
Brinca amor
C (Como és)
Deixa ouvir a tua voz

Eu não quero o teu ciúme
Isso é chama que devora
Quem de si próprio é curtido
E o teu sorriso
É o melhor de todos
Os shows ao vivo

Eu não quero as tuas mágoas
Eu quero as tuas doces águas
Que eu desejo navegar
É o sumo do teu amor
Que eu quero saborear

E mais além de nós os dois
Há um mais um
Que não estão sós
És tão linda
Brinca amor
C (Como és)
Deixa ouvir a tua voz

Jorge Palma

Foto:Gianni Candido

Um voto em minhas relações com os outros



Você e eu estamos numa relação que eu valido e quero manter. Ainda que cada um de nós seja uma pessoa separada com necessidades diferentes e o direito a satisfazer essas necessidades, quando você estiver tendo problemas para satisfazer suas necessidades, eu tentarei escutar com aceitação genuína, a fim de facilitar que você encontre suas próprias soluções em vez de depender da minha. Eu também tentarei respeitar seu direito de escolher suas próprias convicções e desenvolver seus próprios valores, indiferente de quanto eles possam ser como os meus.

Porém, quando seu comportamento interferir com o que eu tenho que fazer para adquirir minhas próprias necessidades, eu lhe falarei aberta e honestamente como seu comportamento me afeta, confiando que você respeitará o bastante as minhas necessidades e sentimentos para tentar mudar o seu comportamento que é inaceitável para mim. Também, sempre que uma parte do meu comportamento for inaceitável para você, eu espero que você me fale aberta e honestamente, para que assim eu possa tentar mudar o meu comportamento.

Muitas vezes, quando acharmos que qualquer um de nós não pode mudar para satisfazer as necessidades do outro, reconheceremos que temos um conflito e nos comprometeremos a solucionar tal conflito, sem que qualquer um de nós recorra ao uso de poder ou autoridade para ganhar às custas da perda do outro. Eu respeitando suas necessidades, mas também respeitando as minhas próprias necessidades. Sendo assim, sempre nos esforcemos para procurar uma solução que seja aceitável para ambos de nós. Suas necessidades serão satisfeitas, e assim as minhas - ninguém perderá, ambos ganharemos.

Que possa ser uma relação saudável na qual ambos de nós possamos nos esforçar para tornar-nos o que nós somos capazes de ser. Nós podemos continuar nos relacionando um com o outro com respeito mútuo, amor e paz.

Mahatma Gandhi

Imagem daqui

quinta-feira, julho 06, 2006

O Amor



Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa,.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em enumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
- Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casa.
Para que
doravante
a família
seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra.

Maiakóvski

Foto:Stanmarek

Fica (Poesia Sufi)



Tocaste a órbita do coração celeste,
agora fica aqui.
Pudeste ver a lua nova
agora fica.

Sofreste em excesso por tua ignorância,
carregaste teus trapos
para um lado e para outro,
agora fica aqui.

Teu tempo acabou.
Escutaste tudo o que se pode dizer
sobre a beleza desse amante,
fica aqui agora.

Juraste em teu coração
que havia leite nesses seios,
agora que provaste desse leite,
fica.

Rumi

Foto:Stanmarek

quarta-feira, julho 05, 2006

***



A máscara é o não-ser, o Nada. A passagem do Ser à máscara, e a volta da máscara ao Ser seria um devir. Mas a passagem da máscara à máscara é a perpetuação do Nada, a infinitização da alteridade.


Leyla Perrone-Moysés

Foto:Maury Perseval

Aquela



Minha amada é de carne, de pele e pêlo.
Ora é negra, ora é loura, ora é vermelha.
Minha amada é três. É trinta e três.
Minha amada é lisa, é crespa, é salgada, é doce.

Ela é flor, é fruto, é folha, é tronco.
Também é pão, é sal e manga-rosa.
Minha amada é cidade de ruas e pontes.
É jardim de arrancar flores pelo talo.

Ela é boazuda e é bela como uma fera.
Minha amada é lúbrica, é casta, é catinguenta.
Minha amada tem bocas e bocas de sorver,
de sugar, de espremer, de comer.

Minha amada é funda, latifúndia.
Minha amada é ela, aquela que não vem.
Ainda não veio, nunca veio, ainda não.
Mas virá, ora se virá. A diaba me virá.

Darcy Ribeiro

Foto:Sascha Hüttenhain

Azuliante



Este poema
começa com um homem de tronco nu
à sua mesa de trabalho e hiante
a esta hora em que de oriente a ocidente
se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes
e o mar é o teu nome a esta hora pétala a pétala
em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos
e ver no meio do deserto o único
o magnífico devorador de rosas a comer um pão
enquanto do Oceano resta apenas
o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos de uma criança
Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva azul
com raiva azul
como a urina violenta dos amantes
com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte

Choverá muito eu sei choverá muito
e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo
sobre o tremor de terra em que tu danças
na tua roda de cigarros cada vez mais depressa
cada vez mais depressa
e lento o peixe de plumas de águia letra a letra
dá a volta ao mundo dos teus olhos
enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande uivo
de oriente a ocidente

Certas palavras muito duras quando a noite cai
não devem ter outra origem sabes tão bem como eu
porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo
são as rosas com que o poeta fala
à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante
de costas para a luz contra o grande uivo:
de oriente a ocidente a mesma flor podre o estado
segredos de estado as razões de estado a segurança do estado
o terrorismo de estado os crimes contra o estado
e o equilíbrio do terror
de oriente a ocidente meu amor de oriente a ocidente

Digo não Eu digo não
digo o teu nome que diz não

No entanto às portas da cidade e ao pé de cada árvore
à espera que tu chegues ou passes simplesmente
estão os grandes do império com o chapéu na mão
para cumprimentar-te
Então passas tu com a lua no peito
dividindo distribuindo os alimentos

passas tu devagar atirando as moedas
que os dias não aceitam e gastamos depressa
noite mil e uma noites de quem espera

Meu amor países pátrias têm todos um nome
de letras imundas que não é para escrever
Se ainda podes ouvir o búzio da infância
ouvirás com certeza o sinal de partir

No comboio multicor sobre carris ferozes e azuis
que há mil anos dá a volta ao mundo
sou eu o homem que viaja nu porque eu sou
o arco-íris e a rosa no trapézio
e tu toda a paisagem que atravesso
como se fosse de bicicleta
como se fosse sílaba a sílaba
a primeira frase sobre a terra

tu com as tuas luvas de amianto ao lado do vulcão
com a tua máscara de olhar a aurora boreal
de me olhares para sempre nua eu a tempestade
de coração a coração
Roda sórdida da razão cínica e canto de galos
depenados vivos que cantam nos intervalos da morte
no meu livro de horas deste século
está escrito que o homem livre fará o seu aparecimento
sob a forma de um cometa de cauda fascinante
que arrastará os amorosos até ao centro do mundo
donde partirão na rosa-dos-ventos e este será o sinal.

António José Forte

Foto:Stanmarek

terça-feira, julho 04, 2006

Drida, a maga perversa e fria



Pairava sobre as casas
Defecava ratas
Andava pelas vias
Espalhando baratas
Assim era Drida
A maga perversa e fria.
Rabiscava a cada dia o seu diário.
Eis que na primeira página se lia:
Enforquei com a minha trança
O velho Jeremias.
E enforcado e de mastruço duro
Fiz com que a velha Inácia
Sentasse o cuzaço ralo
No dele dito cujo.
Sabem por quê?
Comeram-me a coruja.
Incendiei o buraco da Neguinha.
Uma criola estúpida
Que limpava remelas
De porcas criancinhas.
Perguntaram-me por que
Incendiei-lhe a rodela?
Pois um buraco fundo
De régia função
Mas que só tem valia
Se usado na contramão
Era por neguinha ignorado.
maldita ortodoxia!
Comi o cachorro do rei
Era um tipinho gay
Que ladrava fino
Mas enrabava o pato do vizinho.
Depenei o pato.
Sabem por quê?
Cagou no meu cercado.
E agora vou encher de traques
O caminho dos magos.
Com minha espada de palha e bosta seca
Me voy a Santiago.

Moral da história:
Se encontrares uma maga (antes
Que ela o faça), enraba-a.

Hilda Hilst

Foto:Maury Perseval

Cálice do amor



Sorvo os teus lábios no cálice do amor.
é um vinho extasiante;
embriaga-me de ternura,
dá-me novo alento.

A energia que invade o meu peito
dissipa todos os senões
como se nunca tivessem existido.
O tempo pára. O momento é nosso.

Às vezes, tudo parece ilusão,
mas a ilusão é o toque mágico
com que a realidade brinda a vida.

Entregamo-nos intensamente.
Cabeça, corpo, emoção são o elo
que permeiam duas essências a se refletirem.
Dois espelhos antepostos e uma única imagem.

O descanso não existe.
O calor é avassalador.
O amor é o fruto de todas as nossas realizações,
cada um construindo o outro, em busca de nós mesmos.

Paulo José Pinheiro Machado

Foto:Stanmarek