terça-feira, março 11, 2008

Poema da malta das naus



Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das prais
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.

António Gedeão

Foto:Dirk Vermeirre

9 comentários:

peciscas disse...

Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.

Como isto dói, de hoje em dia...
Grande a forma como o Manuel Freire musicou este belissimo poema.

Nilson Barcelli disse...

Sempre gostei deste poema.
Mas agora, já com outros olhos, cada vez lhe dou mais valor.

Bela escolha, como sempre, ditada pelo teu bom gosto.

Beijinhos.

Mocho Falante disse...

Adoro António Gedeão, o expoente máximo da nossa poesia. Adorei este poema tão nosso, tão lusitano

Beijocas

Paula Raposo disse...

Excelente poema! António Gedeão sempre me agradou.

Special K disse...

Não é mesmo fácil ser português mas acho que não trocaria esse sabor a sal por nada deste mundo.
Bjks

Fatyly disse...

Fantástico, sempre fantástico e actual.

Beijos

Menina Marota disse...

Cada vez gosto mais de ler Gedeão.
Grata pela partilha.

Um abraço carinhoso e continuação de boa semana ;)

Lola disse...

Wind,

Gedeão sempre.
Não consigo ler o poema sem ouvir a voz do Manuel Freire...

Beijinhos

António disse...

O Rómulo, grande poeta!