segunda-feira, outubro 30, 2006

O camelo e a música



Eu tinha lido que, lá na Índia, elefantes olhando
o crepúsculo, às vezes, choram.
Mas agora está aí esse filme "Camelos também choram".
A gente sabe que porcos e cabritos quando estão sendo mortos
soltam gemidos e berros dilacerantes.
Mas quem mata galinha no interior nunca relatou ter visto
lágrimas nos olhos delas.
Contudo, esse filme feito sobre uma comunidade
de pastores de ovelhas e camelos, lá na Mongólia,
mostra que os camelos choram, mas choram não diante
da morte, mas em certa circunstância que faria chorar
qualquer ser humano.
E na platéia, eu vi, os não camelos também choravam.
Para nós, tão afastados da natureza, olhando a dureza
do asfalto e a indiferença dos muros e vitrinas;
para nós que perdemos o diálogo com plantas e animais,
e, por conseqüência, conosco mesmos,
testemunhar com aquela bela família de mongóis o nascimento
de um filhote de camelo e sua relação com a mãe
é uma forma de reencontrar a nossa própria e
destroçada humanidade.
É isto: eles vivem num deserto.Terra árida, pedregosa.
Eles, dentro daquelas casas redondas de lona e madeira,
que podem ser montadas e desmontadas.
Lá fora um vento permanente ou o assombro do silêncio
e da escuridão.
E as ovelhas e carneiros ali em torno, pontuando a paisagem
e sendo a fonte de vida dos humanos.
Sucede, então, que a rotina é quebrada com o parto difícil
de um camelinho. Por isto, a mãe camela o rejeita.
O filho ali, branquinho, mal se sustentando sobre as pernas,
querendo mamar e ela fugindo, dando patadas e indo acariciar
outro filhote, enquanto o rejeitado geme e segue inutilmente a mãe
na seca paisagem. A família mongol e vizinhos tentam forçar
a mãe camela a alimentar o filho. Em vão.
Só há uma solução, diz alguém da família,
mandar chamar o músico.
Ao ouvir isto estremeci como se me preparasse para testemunhar
um milagre. E o milagre começou musicalmente a acontecer.
Dois meninos montam agilmente seus camelos e vão
a uma vila próxima chamar o músico. É uma vila pobre,
mas já com coisas da modernidade, motos, televisão, e,
na escola de música, dentro daquele deserto,
jovens tocam instrumentos e dançam, como se a arte
brotasse lindamente das pedras.
O professor de música, como se fosse um médico de aldeia
chamado para uma emergência, viaja com seu instrumento
de arco e cordas para tentar resolver a questão da rejeição materna.
Chega.E ali no descampado, primeiro coloca o instrumento
com uma bela fita azul sobre o dorso da mãe camela.
A família mongol assiste à cena. Um vento suave começa a tanger
as cordas do instrumento. A natureza por si mesma harpeja
sua harmônica sabedoria. A camela percebe.
Todos os camelos percebem uma música
reordenando suavemente os sentidos. Erguem a cabeça,
aguçam os ouvidos, e esperam. A seguir, o músico retoma
seu instrumento e começa a tocá-lo, enquanto a dona da camela
afaga o animal e canta. E enquanto cordas e voz soam,
a mãe camela começa a acolher o filhote, empurrando-o docemente
para suas tetas. E o filhote antes rejeitado e infeliz,
vem e mama, mama, mama desesperadamente feliz.
E enquanto ele mama e a música continua, a câmara mostra
em primeiro plano que lágrimas desbordam umas após outras
dos olhos da mãe camela, dando sinais de que a natureza
se reencontrou a si mesma, a rejeição foi superada,
o afeto reuniu num todo amoroso os apartados elementos.
Nós, humanos, na platéia, olhamos aquilo estarrecidos.
Maravilhados.
Os mongóis na cena constatam apenas mais um exercício
de sua milenar sabedoria. E nós que perdemos o contato
com o micro e o macrocosmos ficamos bestificados com nossa
ignorância de coisas tão simples e essenciais.
Bem que os antigos falavam da terapêutica musical.
Casos de instrumentos que abrandavam a fúria, curavam a surdez,
a hipocondria e saravam até a mania de perseguição.
Bem que o pensamento místico hindu dizia que a vida
se consubstancia no universo com o primeiro som audível
-um Ré bemol e que a palavra só surgiria mais tarde.
Bem que os pitagóricos, na Grécia, sustentavam que
o universo era uma partitura musical,
que o intervalo musical entre a Terra e a Lua
era de um tom e que o cosmos era regido
pela harmonia das esferas.
Os primitivos na Mongólia sabem disto.
Os camelos também.
Mas nós, os pós-modernos cultivamos a rejeição,
a ruptura e o ruído.
Haja professor de música para consertar isto.

Affonso Romano de Sant'Anna

Foto:Francisco Castelo

2 comentários:

Maria Carvalho disse...

Mais uma bela escolha, Isabel! A música faz milagres, é verdade. Beijos para ti.

MariaTuché disse...

Bom dia Wind :)