domingo, dezembro 31, 2006

Poetas Escolhidos–XI –“Desafio” à Vida



Estigma

Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos
O que os homens não querem.
Ao vento arremessamos
As verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos.
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos
Mas que somos.

José Carlos Ary dos Santos, in "Obra Poética", pág.51, Edições Avante

Guardo as lágrimas para uma ocasião especial

Guardo as lágrimas para uma ocasião especial.
Prefiro a revolta sólida
À tristeza líquida visível a quem me olha.
Prefiro-me zangada
A passivamente lavada em lágrimas e em auto-comiseração.
Se sobrevivi
Foi porque quando magoada não chorei
Porque de tão quente que era a dor me secou as lágrimas
E queimou os olhos.
Quando derrubada não me lamentei
Mas da dor fiz músculo, revolta, força
E de mim me ergui
E a mim me levantei.
Guardo as lágrimas para uma ocasião especial
Como quem guarda um segredo vergonhoso
Não um bem precioso.
E enfrento o mundo de olhos secos
Desafiando a vida, puta predadora,
A conseguir fazer-me chorar.

Encandescente, in "Palavras Mutantes", pág.41, Edições Polvo

Segredo

A vida é longa
E o fogo tanto,
Que a alma mirra,
Escurece,
Faz-se cinza.

Dá-se à alma o corpo
Que merece:
-Desfaz-se em pranto,
Morre aos poucos,
Vai na brisa.

Nem que fosse dos mortais
O escolhido
E, adormecido,
Me tomassem
Pela mão;

Não venderia o incerto pelo certo
Nem a vertigem doa ares pelo chão.
Não trocaria o longínquo pelo perto,
Nunca serei um entre tantos, porque não.

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág.40, Edições Manuel Filipe

Caderno II

Quando me perco de novo neste antigo
Caderno de capa preta oleado
Que um dia rasguei com fúria e desespero
E que um amigo recolou com amor e paciência

De novo se ergue em minha frente a clara
Parede cal do quarto matinal
Virado para o mar e onde o poente
Se afogueava denso e transparente
E a sonâmbula noite se azulava

Ali o tempo vivido foi tão vivo
Que sempre à própria morte sobrevive
E cada dia julgo que regressa
Seu esplendor de fruto e de promessa.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas", pág.48, Edições Caminho

Foto:Elena Vasileva

PS: Não podia deixar acabar este ano sem fazer esta "rapsódia" de poemas destes autores.
E porquê? Por várias razões:
-Para mim (e desculpem todos os outros), são os melhores em todos os registos: amor, dor, vida, ironia, humor, tirando um já todos têm poemas musicados…, são mutantes, camaleões.
-Admiro-os porque transmitem uma força que não tenho.
-Dá-me prazer tentar conjugá-los, sendo eles tão diferentes.
-E simplesmente porque gosto muito deles:)


A Fatyly usando versos dos poetas, brincou e fez isto:

Da noite que nos gera, e nós amamos
Guardo as lágrimas para uma ocasião especial
E enfrento o mundo de olhos secos
Desfaz-se em pranto, morre aos poucos
Desafiando a vida, puta predadora
Parede cal do quarto matinal
A conseguir fazer-me chorar
Nunca serei um entre tantos, porque não!

5 comentários:

Fatyly disse...

Concordo contigo, são de facto quatro grandes poetas, com estilos diferentes que lidos transmitem mil e um sentimentos de força, de "solta as amarras" de "vai em frente" e que nada serve marinar no passado.

Todos temos essa "força" desde que primeiramente acreditemos em nós, para depois partir para o mundo. Vamos ao chão? levantamo-nos e nisso ou para isso, lá está a "força"! Cada um ao seu geito somos obreiros de nós próprios.

E brincando com as palavras...

Da noite que nos gera, e nós amamos
Guardo as lágrimas para uma ocasião especial
E enfrento o mundo de olhos secos
Desfaz-se em pranto, morre aos poucos
Desafiando a vida, puta predadora
Parede cal do quarto matinal
A conseguir fazer-me chorar
Nunca serei um entre tantos, porque não!

BlueShell disse...

Sempre me surpreendo pela positiva ao vir aqui!

Um 2007 abençoado, pleno de saúde e Paz
BShell e um ENORME BEIJO AZUL!

Anónimo disse...

E foi uma óptima escolha. Venho desejar-te um fantástico 2007.
FELIZ ANO NOVO!

Caracolinha disse...

Querida, beijos encaracolados naquilo que a vida tiver de melhor ...

Abraços e :), muitos !!!!

Cristina disse...

wind

um bom Ano para ti, com tudo o que mais desejares. um grande beijinho!