terça-feira, dezembro 19, 2006

Poema temperamental



Ó caralho! Ó caralho!
Quem abateu estas aves?
Quem é que sabe? quem é
que inventou a pasmaceira?
Que puta de bebedeira
é esta que em nós se vem
já desde o ventre da mãe
e que tem a nossa idade?
Ó caralho! Ó caralho!
Isto de a gente sorrir
com os dentes cariados
esta coisa de gritar
sem ter nada na goela
faz-nos abrir a janela.
Faz doer a solidão.
Faz das tripas coração.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque não vem o diabo
dizer que somos um povo
de heróicos analfabetos?
Na cama fazemos netos
porque os filhos não são nossos
são produtos do acaso
desde o sangue até aos ossos.
Ó caralho! Ó caralho!
Um homem mede-se aos palmos
se não há outra medida
e põe-se o dedo na ferida
se o dedo lá for preciso.
Não temos que ter juízo
o que é urgente é ser louco
quer se seja muito ou pouco.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque é que os poemas dizem
o que os poetas não querem?
Porque é que as palavras ferem
como facas aguçadas
cravadas por toda a parte?
Porque é que se diz que a arte
é para certas camadas?
Ó caralho! Ó caralho!
Estes fatos por medida
que vestimos ao domingo
tiram-nos dias de vida
fazem guardar-nos segredos
e tornam-nos tão cruéis
que para comprar anéis
vendemos os próprios dedos.
Ó caralho! Ó caralho!
Falta mudar tanta coisa.
Falta mudar isto tudo!
Ser-se cego surdo e mudo
entre gente sem cabeça
não é desgraça completa.
É como ser-se poeta
sem que a poesia aconteça.
Ó caralho! Ó caralho!
Nunca ninguém diz o nome
do silêncio que nos mata
e andamos mortos de fome
(mesmo os que trazem gravata)
com um nó junto à garganta.
O mal é que a gente canta
quando nos põem a pata.
Ó caralho! Ó caralho!
O melhor era fingir
que não é nada connosco.
O melhor era dizer
que nunca mais há remédio
para a sífilis. Para o tédio.
Para o ócio e a pobreza.
Era melhor. Concerteza.
Ó caralho! Ó caralho!
Tudo são contas antigas.
Tudo são palavras velhas.
Faz-se um telhado sem telhas
para que chova lá dentro
e afogam-se os moribundos
dentro do guarda-vestidos
entre vaias e gemidos.
Ó caralho! Ó caralho!
Há gente que não faz nada
nem sequer coçar as pernas.
Há gente que não se importa
de viver feita aos bocados
com uma alma tão morta
que os mortos berram à porta
dos vivos que estão calados.
Ó caralho! Ó caralho!
Já é tempo de aprender
quanto custa a vida inteira
a comer e a beber
e a viver dessa maneira.
Já é tempo de dizer
que a fome tem outro nome.
Que viver já é ter fome.
Ó caralho! Ó caralho!

Ó caralho!

Joaquim Pessoa

Foto:Foi-me enviada por mail, infelizmente não conheço o autor.

PS:Já editei este poema, mas repito porque o consumismo do Natal é cada vez maior e este poema é actualíssimo.
É daqueles que eu gostava de ter escrito!

7 comentários:

lingua disse...

fabuloso poema! Obrigado por o dares a conhecer

mfc disse...

É simplesmente fantástico.
Joaquim Pessoa é um excelente poeta.

Maria disse...

É um poema muito forte e belíssimo.
Beijosssss

Gi disse...

Despertei tarde para a poesia, costumo dizer que não a apreciava devidamente porque a lia com a cabeça e não com o coração. Tenho andado, de há poucos anos a esta parte às "apalpadelas" a tentar conhecer mais. O meu genro, homem de teatro tem sido uma ajuda preciosa nesta matéria. Mas o teu cantinho também é especial. Este não conhecia e é daqueles que não toca só o coração. Também põe a cabeça a pensar.
Desculpa ter-me alongado. Eu que até nem gosto de escrever!...

Fatyly disse...

Este poema deveria servir para os habituais cartões de natal ou colado nos placares das campanhas publicitárias que proliferam por todo o lado.

Gostei e concordo contigo. Não é só o consumismo natalício e se eu te disser que há quem vá de férias mostrando aos outros que vivem bem...hipotecando já o subsdio de natal de 2007? Não acreditam? então informem-se e Ó caralho, Ó caralho que o mundo está num alho!

Beijos

Anónimo disse...

Wind ,
linda......excelente......excelente......mas excelente post!

Fotografia fantastica.....poema soberbo......e só mesmo uma pessoa tão especial como tu para fazer este post magnifico!

;)

Uma beijoca de boa continuação de dia!

Nilson Barcelli disse...

A fotografia é reveladora do total egoísmo em que os povos mais ricos vivem, mesmo com todos os simulacros de ajuda que não convencem ninguém.
O poema, confesso que não gostei por aí além.

Beijos