quarta-feira, outubro 10, 2007

A mão suja



Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
A água está podre.
Nem ensaboar.
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos.

A princípio oculta
no bolso da calça,
quem o saberia?
Gente me chamava
na ponta do gesto.
Eu seguia, duro.
A mão escondida
no corpo espalhava
seu escuro rastro.

E vi que era igual
usá-la ou guardá-la.
O nojo era um só.

Ai, quantas noites
no fundo de casa
lavei essa mão,
poli-a, escovei-a.
Cristal ou diamante,
por maior contraste,
quisera torná-la,
ou mesmo, por fim,
uma simples mão branca,
não limpa de homem,
que se pode pegar
e levar à boca
ou prender à nossa
num desses momentos
em que dois se confessam
sem dizer palavra...
A mão incurável
abre dedos sujos.

Eu era um sujo vil,
não sujo de terra,
sujo de carvão,
casca de ferida,
suor na camisa
de quem trabalhou.
Era um triste sujo
feito de doença
e de mortal desgosto
na pele enfarada.
Não era sujo preto
- o preto tão puro
numa coisa branca.
Era sujo pardo,
pardo, tardo, cardo.

Inútil reter
a ignóbil mão suja
posta sobre a mesa.
Depressa, cortá-la,
fazê-la em pedaços
e jogá-la ao mar!
Com o tempo, a esperança
e seus maquinismos,
outra mão virá
pura - transparente -
colar-se a meu braço.

Carlos Drummond de Andrade

Foto:Paul Dzik

6 comentários:

Fatyly disse...

Pôxa...este é dramático mas tão real. Desconhecia!

Beijocas

mfc disse...

... apesar de tudo é a nossa!

papagueno disse...

Lindo e a foto é fantástica.
Beijinhos

António disse...

Isabel querida!
Que estupendo é este poema!
Chega a ser cruel...mas é mesmo bom!

Beijinhos

Nilson Barcelli disse...

Há quem passe a usar luvas.
Porque ser honesto é muito perigoso...
Grande poema. Boa escolha.
Beijinhos

PS: gostei da tua historinha de detectives e suspense lá em baixo; escreve mais vezes... ainda que menos vezes (em menos posts por semana)

Paula Raposo disse...

Se existe algo que possa ser lindo demais, é este poema!!