quinta-feira, novembro 02, 2006
A espantosa realidade das cousas
A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.
Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.
Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.
Alberto Caeiro
Foto:Sandra Battaglia
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6 comentários:
Simples e complexo...Beijos.
Sempre bom reler Caeiro!
Este tipo de escrita que por vezes se vê no Alberto Caeiro, na minha modesta opinião, não será bem poesia. Muito embora a fronteira que separa a poesia da prosa não seja determinável (e ainda bem).
Mas, neste poema (chamo-lhe assim porque será o que toda a gente chama...), ele diz algumas coisas importantes, como só ele sabe dizer.
O facto dos versos serem independentes da sua vontade, é um tema que daria pano para mangas. Eu não direi isso, mas quando eu escrevo vejo que no final está uma coisa muito diferente da ideia original. Será que isso acontece independentemente da vontade? Eu não sei, o que sei é que as palavras, à medida que vão surgindo, vão empurrando outras palavras para o papel, contrariando, por vezes, aquilo que tencionava escrever... é tudo muito estranho e nunca reflecti muito sobre o assunto. Afinal eu nunca me senti poeta e tenho outras preocupações bem mais realistas… como o trabalho, a família, etc.
Beijinhos
De repente lembrei-me desta frase:
"Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa"
Espero que tenhas um dia excelente :)
Excelente escolha.Foi um prazer ler. Alberto Caeiro é o meu heterónimo predilecto.
Beijos
O poeta do real com a sensibilidade do sonho!
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