domingo, janeiro 22, 2006

"O amor puro"



Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.
Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.
Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.

O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre.
Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não.
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.

Texto de Miguel Esteves Cardoso

Foto:Stanmarek

PS:Peço desculpa por não indicar de onde tirei este texto, mas como já foi há algum tempo, esqueci-me.

PS2:Segundo informações nos comentários, este texto estava no jornal "Expresso". Obrigada

6 comentários:

Anónimo disse...

Um puro amor todos nós queremos, mais o amor verdadeiro passou a ser uma fantasia, assim como principe encantado... não que eu não acredite em amor eterno e paixão avassaladora... mas ao mesmo tempo o medo do sofrimento ou do abandono faz com que as pessoas dão preferência a praticidade... mas no fundo bem lá no fundo elas esperam pela chegada desse amor apaixonado e eterno...

Pink disse...

Eu subscrevo tudo o que o MEC escreve neste texto sobre o amor. É, contudo, verdade que cada vez menos pessoas pensam e sentem assim.

Um beijo

Caracolinha disse...

O que eu adoro o MEC !!!!!!

Este texto é absolutamente divinal ... linda escolha querida wind .... que bom que cá vim le-lo ... !!!!

Já vi que hoje vamos as duas a correr votar .... no mesmo candidato !!!! :))

Espectáculo de música ... adoro Sting ... é dos casos que provam que a idade só faz bem a algumas pessoas !!!!

Beijinhos minha querida ... e muito obrigada pela tua assiduiadde e carinho !!!! :)

A .Carlos disse...

Olá Wind,
O amôr puro, num texto do MEC.
Ainda há "Amores", pelos quais vale a pena lutar e ainda há pessoas que amam e que são amadas "à antiga".
..."Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.
..."
Eu quero vivêr esse amor nesta Vida
Bjs e um lindo fim de semana
:)

Menina Marota disse...

Coincidência... deixei este texto no meu Blog, no final do ano... porque desde a primeira hora que o li, num Editorial de Jornal, que me fascinou...

Vim aqui deixar-te um grande abraço e dizer-te que estou voltando aos poucos, ainda não refeita da lesão que tive, mas o que interessa é que estou de volta...

Com tempo e oportunamente, virei ler-te.

Um abraço ;)

Su disse...

gostei de reler
jocas maradas