domingo, fevereiro 27, 2005

As vidas que eu sonhei



Fico soturno a olhar para o mar
e a pensar num rei a traduzir Shakespeare
numa varanda embriagada pelo azul.
Deixei de ter tempo para espiritualidades,
para o engodo das tremendas interrogações,
para a altivez das perguntas sem resposta.
Fiquei temporariamente domesticado
para uma outra escrita, por um discurso
que não consente divagação ou fuga.
Normalizei-me, e contudo gosto de ver
a mão hesitante e trémula
à beira da consumação do poema
quando a maré assalta a muralha
e traz, misturados com a espuma,
os destroços das vidas que eu sonhei,
das vidas que, se calhar, eu já vivi.

José Jorge Letria

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