quinta-feira, junho 15, 2006
A Viagem, enfim
Isto de ter sempre o mesmo sonho todas as noites torna-se aborrecido.
Era assim: saía de casa, ia até ao carro e dizia à família «vamos lá fazer essa viagem». Primeiro entravam a mulher e as duas crianças, depois os pais, ele instalava-se ao volante e pronto, não havia lugar para os sogros! Era sempre a mesma coisa. Por mais que empurrassem, não conseguiam metê-los lá dentro.
Acordava a suar, empurrando ainda qualquer coisa que não estava lá.
A mulher aconselhou-lhe uns calmantes, para ver se o sonho se ia.
Mas nada. Lá vinha sempre, todas as noites. É verdade que empurrava menos, talvez os calmantes, mas continuava naquele desespero de não conseguir enfiar os sogros no carro alucinante.
Os sogros disseram-lhe que não se interessavam em ir, não faziam questão, já estavam velhos para viagens.
Os pais prontificaram-se a ceder os lugares deles.
Toda a família colaborava, mas o sonho continuava.
Chegou a fazer experiências, a meter a família completa no velho Citroën arrastadeira. E conseguia, lá se metiam todos, mais ou menos apertados mas entravam. Mas no sonho não.
A coisa tornava-se desesperante.
- Porque é que não vais ao Mora? Ele é psicanalista, explica-te, tira-te isso – insistia a mulher, já arreliada, e preocupada também, com aquelas viagens nocturnas e frustradas em que ele se envolvia sem culpa.
O Mora era amigo de infância, nem sequer permitia que ele pagasse, era extraordinário! Às vezes até ia lá jantar. E respondeu à mulher:
- Tens razão, Xuxa, vou mesmo, que isto assim não pode ser. Tens sempre razão menina.
Contou tudo. O Mora mandou-lhe contar mais, o passado continua sempre oculto, ao que disse. Deitado, contou-lhe o que ele precisava era de derivar, sabem, encontrar qualquer coisa além do carro e da viagem que não fazia em sonhos. Derivar. Substituir o carro. Agradeceu e convidou o Mora para jantar no sábado. O Mora não podia e deu-lhe uma palmada nas costas.
Chegou a casa aliviado e esclareceu a Xuxa:
- Vou derivar, menina.
- Derivar?
Sim, substituir o carro e tudo o mais, excepto tu, as crianças, os velhos e a casa.
(...)
À noite não sonhou. No dia seguinte a Xuxa disse-lhe que até parecia dez anos antes.
Tudo voltou à normalidade, os sogros deixaram de se preocupar com a viagem, as crianças entusiasmaram-se com os estoiros da moto. E o carro na garagem.
E, de repente, tornou a sonhar. O sonho.
Assim: saiu de casa, foi até ao carro e disse à família «vamos lá fazer essa viagem». A mulher e as crianças entraram, depois os pais, e ele instalou-se ao volante. E não havia lugar para os sogros! Começaram a empurrar para os meter lá dentro, e nada. Então virou-se para a garagem. Estava um pouco diferente mas a moto continuava lá dentro. Deixou tudo, montou a moto, pôs o chapéu de palha e avançou pela estrada. Uma estrada larga, muito aberta a tudo. Pareceu-lhe já a ter visto alguma vez. Olhou para trás e lá ao longe, à porta da casa, continuavam a empurrar-lhe os sogros. Acenou uma despedida, acelerou e continuou, olhando árvores e nuvens. Ainda não voltou.
Mário Henrique Leiria,Contos do Gin-Tonic
Imagem daqui
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7 comentários:
Linda história! :o)
Beijinhos
não me canso de ler e reler Mário Henrique Leiria, Contos do Gin-Tonic
que bela partilha hoje Wind, como me fez bem passar por aqui
a saudade de o ler bate muitas vezes
e partilho contigo:
À CATA DO VENTO
O cata-vento
tem obrigações legais
deve
catar o vento
portanto
quando o vento passa
diz-lhe logo atento
espera aí
preciso de te catar
mas o vento
sempre a passar
tem outras coisas
em que pensar
não está para ser
catado no ar
e vai passando
desatento
ao cata-vento
sem se importar
obrigado legalmente
a catar o vento
então
o cata-vento
senta-se no telhado
aporrinhado
e sem vento
para legalizar
o seu direito
de ser elemento
respeitado
pelos elementos
sentado no telhado
queixa-se
isto não é vida
Mário-Henrique Leiria
beijos muitos para ti e um abraço de carinho
lena
bem lembrado. gostei muito de ler. beijos
Porra! que sonhos...
Queria ir amanha fazer um Tour de Moto mas já me meteste Medo!!
Bejocas bom fim de semana.
Nao sonhes tanto he...he..
Muito bem escolhido este excerto de um livro que é todo ele uma delícia...
Muito bom, Wind!
beijinho
Wind,
Foi bom lembrar. Ainda há pouco tempo li o conto, mas sabes que gosto imenso do MHL. Por isso, óptima escolha.
Beijinho
ola linda
vou mesmo ter q ler esse gin tonic
é o 2º co.9nto q leio e acho delicioso:)
beijinhos
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