sexta-feira, abril 16, 2010

A Portugal



Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não.

Jorge de Sena

Imagem retirada do Google

4 comentários:

Amélia disse...

Este sentir da austera, apagada e vil «tristeza» que nos vem desde Camões e se prolonga até Cesário,Pessanha,Pessoa(Nevoeiro)e, deste modo tão dolorosamente ácido em Sena...«è a Hora!» - mas essa Hora não chega...

Paula Raposo disse...

Gosto muito deste poema do Jorge de Sena. A desilusão.
Beijos.

polittikus disse...

Adoro este poema e a tromba com que ficam alguns meninos de mentes pequenas sempre que o leêm...

Fatyly disse...

Sempre gostei deste poema e cada vez que o leio dá-me ainda mais força para continuar a lutar vencendo um dia de cada vez para que algo mude em Portugal sobre o cinzentismo e baixar de braços.

Beijocas