quinta-feira, setembro 01, 2011
quarta-feira, agosto 31, 2011
Sessenta dias

A volúpia
patética
de querer possuir-te
como o Sol
possui a Terra
nas planícies douradas
dos campos de trigo
do teu sexo
é a primavera
sem a profecia medos e retórica
das frias e neutras
madrugadas
essas evolutas envolventes
do pão de cada dia
parido nos cinco dedos
da tua mão.
Miguel Barbosa
Imagem retirada do Google
segunda-feira, agosto 29, 2011
Pescadores de pérolas

Com o sol te levantas
para colher as últimas pérolas
de orvalho
Terás de ser leve
aproxima-te
com a respiração suspensa
Quando voltares a respirar
o sol e a lua dormirão juntos
Manuel Silva-Terra
Foto:Eli
sexta-feira, agosto 26, 2011
quarta-feira, agosto 24, 2011
“Na casa do Macedo”

Na casa do camarada macedo
as estrelas já não pedem licença
(ganharam à-vontade de entrar);
os gambuzinos expulsaram os sapos da noite,
tomaram uma minúscula colina.
de repente o céu entornou uma estrela
sobre a casa.
a poeira cósmica faz sombra
na casa dele.
hoje mesmo, agorinha, os gambuzinos recuaram
e se recolheram – perto da represa.
fizeram as pazes com os sapos.
um dia, atrás do tempo,
o camarada macedo chegou nesta colina
e cumprimentou um lagarto (dono de uma nocheira);
esse lagarto é que autorizou o camarada macedo
a habitar o local.
nesta casa circulam abelhas mansas,
quissondes inofensivas.
até estrelas.
o camarada macedo ainda agora me disse:
«esse lagarto faz parte da família.»
[o camarada macedo também deve fazer parte da família
do lagarto.]
louvada seja a huíla.
Ondjaki (Angola)
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segunda-feira, agosto 22, 2011
sexta-feira, agosto 19, 2011
Nevoeiro

A cidade caía
casa a casa
do céu sobre as colinas,
construída de cima para baixo
por chuvas e neblinas,
encontrava
a outra cidade que subia
do chão com o luar
das janelas acesas
e no ar
o choque as destruía
silenciosamente,
de modo que se via
apenas a cidade inexistente.
Carlos de Oliveira
Imagem retirada do Google
quarta-feira, agosto 17, 2011
Orquestra, flor e Corpo

Orquestra, flor e Corpo:
doravante direi
Como do corpo a música se extrai,
Como sem corpo a flor não tem perfume,
Como de corpo a corpo o som se repercute.
Orquestra, sim: orquestra. E flor. E noite.
doravante dizendo orquídea negra
É logo o violoncelo nomeado;
E logo, logo, os instrumentos de arco
Arremessando vão a flecha ao alvo;
E é logo o alvo peito!
E é logo o amor,
E é logo a noite
Murmurando "Até logo!" à outra noite...
De corpo a corpo a noite se transmite.
Orquestra, sim: orquestra. E flor. e vaga.
E a noite é sempre o corpo anoitecido,
E o corpo é sempre a noite que se aguarda.
De corpo a corpo o som se repercute,
de vale em vale,
de monte em monte,
de címbalo, de cítara, et coetera,
ao tímpano sensível que o recebe.
Sem concha do ouvido,
o mar não tem rumor.
sem asa do nariz,
não voa a maresia.
E o mundo só é mundo enquanto houver o corpo,
de música e de flor universal medida.
David Mourão-Ferreira
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segunda-feira, agosto 15, 2011
Contigo

Acordo na manhã de oiro
entre o teu rosto e o mar.
As mãos afagam a luz,
prolongam o dia breve.
Entre o teu rosto e o mar
ninguém deseja ser neve.
Ninguém deseja o veneno
da noite despovoada.
Acorda-me a tua voz,
nupcial, branca, delgada.
Eugénio de Andrade
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sexta-feira, agosto 12, 2011
Crónica do náufrago adormecido nos braços de uma sereia

Escutam-se nos seus cabelos as ondas
do mar como se os abismos trouxessem o eco
dos peixes beijando-se em camas de algas
e os pescadores fossem deuses a invadir búzios
reinos de silêncios quebrando o encanto
da água exposta na luz dos espelhos
com o sexo à flor da pele palpitando
por entre os olhos da natureza a chamar
sempre ao longe como se pudesse convencer
um corpo a ficar eternamente abraçado
a outro corpo no lugar onde é possível
construir a casa habitar o tempo e sorrir
aos pássaros que passam na rota do sol
sim é possível escutar as ondas batendo
na rocha macia dos seus cabelos soltos ao vento
José António Gonçalves
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quinta-feira, agosto 11, 2011
Acrobacias

Sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
– superiores ou inferiores –
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.
Ana Paula Inácio
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quarta-feira, agosto 10, 2011
Bom e expressivo

Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito.
Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,
tal como o outro pedia
se fizesse à eloquência,
e se houver um vossa excelência
que grite: – Não é poesia!,
diz-lhe que não, que não é,
que é topada, lixa três,
serração, vidro moído,
papel que se rasga ou pe-
dra que rola na pedra . . .
Mas também da rima “em cheio”
poderás tirar partido,
que a regra é não haver regra,
a não ser a de cada um,
com sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo . . .
Alexandre O'Neill
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segunda-feira, agosto 08, 2011
A idade do ouro

Uma curva no tempo, como num caminho,
desvia o homem da direcção antiga. De súbito,
uma paisagem diferente: casas de madeira,
a cobertura negra da ponte, o verde dos
campos. Aí, senta-se numa pedra; não sabe
onde está; nem ouve que o chamam,
do fundo, para que regresse.
Ele sabe que pode avançar,
se os olhos não fixarem
a imagem conhecida. Imóvel,
uma transformação faz com que
as coisas estranhas se tornem perceptíveis
e familiares. Assim, regressa ao rigor
que os deuses lhe roubaram
com o grito inicial.
Porém, outros homens avançam
por essa paisagem, deitando abaixo
os muros. Têm foices, enxadas, rostos
embranquecidos pela vigília. Riem,
uns; e cantam, quando a terra
se abre em sulcos que sobem
os montes, descem colinas,
e se perdem na planície.
Um dia,
talvez se encontrem.
Nuno Júdice
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sábado, agosto 06, 2011
Impertinência

sei de tantos descaminhos
desolhares desistências
sei como é estar sozinho
sem nenhuma indulgência
sem nunca pedir clemência
sei de mim — um ser marinho
perdido a meio caminho
do deserto na iminência
de esquecer o mar — vizinho
de abismo e insolvência
mas não será desse espinho
que hei de morrer— paciência
a tal vil redemoinho
ofereço a impertinência
de quem conhece a ciência
do sobreviver— sem vinho
herói quixote ou moinho
sigo adiante — e de ausência
cinjo-me enquanto escrevinho
meus versos de inexistência
Márcia Maia
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quinta-feira, agosto 04, 2011
Frutos

Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.
Eugénio de Andrade
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terça-feira, agosto 02, 2011
Arqueologia

Aqui, o molde dos que se limitaram a
um contorno do divino – desfaz-se com os
ventos e as marés. Libertou-se da alquimia
efémera das mãos; e comunga o segredo
dos movimentos cíclicos, das mudanças de acaso,
das decisões inscritas num rumo de astro.
Tiro a figura que parecia perdida. Um
olhar breve com o bater de asas da borboleta
na incineração da tarde . . . Procuro o seu dom
de abismo, um fundo negro de poço que me fixa
sem o reflexo da superfície: e encontro o seu vazio
inquieto num silêncio de espelho.
Embora se diga que uma reprodução não terá
nunca o fulgor do original, esta imagem dá-me um
sabor de coisas mortas: a luz nascente, o ouro
de um horizonte marítimo, o fumo húmido da respiração
matinal. Deixo-me estar com elas; e limito-me
a sentir a sua lenta corrupção nas raízes da alma.
Nuno Júdice
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domingo, julho 31, 2011
sexta-feira, julho 29, 2011
Quando a palavra é mais do que um corpo de sílabas

Quando a palavra é mais do que um corpo de sílabas
é porque o seu movimento tem o aroma do repouso
no extremo limite do obscuro
e o seu suor é deslumbrante
Nas suas hastes oblíquas cintila o translúcido sangue
ou ascende uma onda branca com a frescura de um naufrágio
Às vezes os dedos estremecem numa ternura de melodia
e o canto quase se evapora na sua líquida ossatura
Quando as sílabas fulguram como as artérias de um muro
abrem-se as janelas do mar e lêem-se os ramos do azul
Se o caminho se cala mas sem esquecer o branco
é porque as ancas nuas da água sob uma abóbada de pássaros
vão de praia em praia modelando as conchas clandestinas
Para a torrente sem leito a palavra estende uma tapeçaria
de musgo
e todo o ritmo da água será uma sequência de portas de
passagens de alianças
Mesmo nos músculos do incêndio pode fermentar o orvalhar
e a profundidade da pedra ocultar uma nascente
Na orla do seu próprio movimento
um gesto germinou sobre um solo calcinado
e desenhou uma rosa de nervuras verdes
nas voluptuosas virilhas de uma pedra vermelha
António Ramos Rosa
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quarta-feira, julho 27, 2011
Do tempo ao coração

E volto a murmurar Do cântico de amor
gerado na Suméria novas europutas
Do muito que me dás ao muito que não dou
mas sempre conservo entre as coisas mais puras
De uma genebra a mais num bar de Amesterdão
a não perder o pé numa praia da Grécia
De tantas mãos que nos passam pelas mãos
a tão poucas que são as que nunca se esquecem
De ter visto o começo e o fim da Via Ápia
De ter atravessado o muro de Berlim
De outros muros que não aparecem no mapa
de outros que só aparecem aqui
ao barro deste céu que te modela os ombros
ao sopro deste céu que te solta o cabelo
ao riso deste deste céu que vem ao nosso encontro
quando sabe que nós não precisamos dele
Da pertinaz presença E da longevidade
do corvo do chacal do louco do eunuco
ao rouxinol que morre em plena madrugada
à rosa que adormece em caules de um minuto
Do que foi noutro tempo a saúde no campo
à lepra que nos rói a paisagem bucólica
Do tempo ao coração minado pelo cancro
Dos rins ao infinito incubado na cólera
Do tempo ao coração mas com pausa na pele
como «Roma by night» entre dois aviões
como passar o Verão numa vogal aberta
como dizer que não que já não somos dois
Dos rins ao infinito A este que não outro
Ao que rola dos rins Ao que vai rebentar-te
na câmara blindada e nocturna do útero
E nos transfere o fim para um pouco mais tarde
Da curva de entretanto à entrada do poço
De soletrar em mim a ler nas tuas mãos
como é rápido e lento e recto e sinuoso
o percurso que vai do tempo ao coração.
David Mourão-Ferreira
Imagem retirada do Google
segunda-feira, julho 25, 2011
Corpo e terra

Vejo o corpo grande, na solidão ignorada,
na sua alvura larga, toalha viva e água,
na banheira cantando como é larga a sua mulher!
Sem destino oiço o sol e as janelas abertas,
oiço um corpo extenso, branco, volumoso,
abraçando a madeira, abraço a carne, a terra viva.
Entrar em ti, mulher ó lâmpada de seda,
abrir-me na paisagem de um só tronco com boca,
encrespar as planícies da tua pele ondulada,
ó como o mar é claro nesta onda deitada!
Ó como eu sou um homem no meio-dia claro!
Os seus seios louros (ó cor só de sonhá-la)
entre o branco e o negro, ó rósea sedução,
deitado à tua sombra respiro mamilos plenos
a obscura densa suave oscilação
Estou preso a estas linhas de espaço e de ternura
Tremendo na montanha fina da carne plena
Murmúrio tão intenso e a água sempre bela!
A casa branca, gloriosa e simples.
Aberto o vale diante da janela,
a mesa com os frutos e a claridade da água
na jarra ao centro, as árvores no azul!
António Ramos Rosa
Imagem retirada do Google
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