segunda-feira, janeiro 31, 2005

O Drama Heteronímico:




No dia 8 de março de 1914, o denominado Fernando Pessoa explode em três poetas diferentes: um mestre bucólico ( Alberto Caeiro ), um neoclássico estóico ( Ricardo Reis ), um poeta futurista ( Álvaro de Campos ). E eu, e eu?

"E tudo me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve."

(...) A heteronímia nascera como aspiração ao universal, como esperança de Unidade:

"Sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados, / Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, / Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos / Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo"

Ela desemboca, não na totalidade, mas no esfacelamento.

(...) Alberto Caeiro, "mestre" e "origem", dá à luz dois filhos (discípulos, "irmãos" entre si), Ricardo Reis e Álvaro de Campos, o ser moral e o ser vicioso, pólo masculino e pólo feminino.

(...) Caeiro é antes de tudo, o Pai: "Meu mestre, meu mestre perdido tão cedo! Revejo-o na sombra do que sou em mim, na memória que conservo do que sou de morto..." Esse pai é panteísta (...) Caeiro possui a sabedoria e a calma injejadas pelos outros heterônimos.

Ricardo Reis é o conciliado por esforço, o estóico, o "epicurista triste": "A obra de Ricardo Reis, profundamente triste é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer." Sua calma apolínea representa a dominação máscula do sofrimento, por força moral, por busca de "altura". Diante de seu mestre Caeiro, ele é a contradição homogênea.

Enquanto Álvaro de Campos é o outro radical, a contradição heterogênea, a subversão pura. Mesmo sexualmente ele é o outro, a mulher: "Eu a mulher legítima e triste do Conjunto". Moderno, engenheito, sensacionista, paradoxal, sadomasoquista, invertido, inconciliado (...)

Os versos de Caeiro são livres, têm a "naturalidade" de um discurso oral enunciado em plena natureza e em harmonia como esta. Os versos de Reis são contidos, de um "neoclassicismo científico". Os versos de Campos são livres, mas não como os de Caeiro. Prosa disposta em forma poética, esses versos são frequentemente mais do que livres, desencadeados. Seu discurso se deixa atravessar e esquartejar pelas pulsões inconscientes, que se manifestam como "anomalias" discursivas: caracteres tipográficos variados, assimetria brutal entre versos extremamente longos e outros compostos de uma única palavra, sobrecarga de sinais de pontuação.

(...) A farsa heteronímica se desenlaça em drama heterômico. (Pessoa, envelhecendo, exprime o desejo de desmascarar os heterônimos, assumindo-os sobre seu próprio nome:

"Já é tarde, e portanto absurdo, para o disfarce absoluto"(...)

"Começo a conhecer-me. Não existo."

Fernando Pessoa

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