terça-feira, dezembro 02, 2008
Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colasanti
Imagem retirada do Google
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7 comentários:
Em parte é assim mesmo. Ou a maioria de nós se acostuma a isso...um desanimado poema. Beijos.
Querida Wind,
Estou de volta e confesso que já tinha saudades deste teu espaço tão especial.
Beijocas
Um magnífico poema e sabes de uma coisa? afinal ainda não "cafifei" dos fuzíveis porque eu, vivendo um dia de cada vez, contrario sempre e sempre "A gente se acostuma".
Tiro o meu chapéu a Marina Colasanti e TODOS DEVEMOS PENSAR NISSO.
Beijos e adorei este momento de leitura.
Hoje venho em missão especial: Dar-te os parabéns e desejar que tudo seja bom em tua vida.
Vive com alegria este dia e todos que se lhe seguirem.
Vale a pena viver um dia de cada vez.
Tu mereces ser feliz!
Beijos
PARABÉNSSSSSSSSSSSSSS POR MAIS ESTE ANIVERSÁRIO e subscrevo as palavras de Lumife.
Beijos mil
Excelente texto!
Realmente a gente se acostuma a votar sempre no mesmo político e depois reclamamos que o país não muda. Tantos fracassos na nossa vida fizeram a gente se acostumar com fracassos mas, só consegue vencer quem não se acostuma com a derrota e batalha para realizar seus sonhos e para fazer o melhor. A pessoa que vence é aquela que não se acostuma com derrotas e tropeços, ela se acostuma com a vitória. Vamos nos acostumar a vencer e não a perder!
Beijão!
uma delicia este texto partilhado
jocas maradas.sempre
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