terça-feira, setembro 30, 2008

Em Louvor da Promiscuidade



Quem tem de amor,
físico amor, ideia
que os olhos não possuem qual amor façamos
e que ele não vive do que os outros façam
ante os curiosos olhos com que bebamos
o ritmo das ancas como as formas
enlaçadas por mãos e pernas, sexos e bocas,
de pudicícia desastrada e matrimónica
com prostituta ou esposa. ou vive
de imaginar paixões por um só corpo
que não são mais que tê-lo tido e o hábito
de continuar a tê-lo. amor-amor
é uma outra coisa, mas não isto
nem o prazer que é feito de um prazer alheio
feito só de prazer sem pensamento
- que no promiscuo amor o imaginar
é só imaginar-se o que varia em acto.

Jorge de Sena

Imagem retirada do Google

Acerca de gatos



Contigo chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não lhe tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do Público ao domingo.

Eugénio de Andrade visto no Palavras d'Ouro

segunda-feira, setembro 29, 2008

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra



Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar o ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas
seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem
consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida ...
Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto que me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!
À esquerda o casebre - sim, o casebre - à beira da estrada. À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima.
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da
cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que
me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel
emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero ...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.
Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim ...

Álvaro de Campos

domingo, setembro 28, 2008

Frases/Citações



"Porque há o direito ao grito.
então eu grito"
Clarice Lispector

Legendary Actor Paul Newman Dies at Age 83

Respiro o teu corpo



Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

Foto:Hataiiia Hataiiia

sábado, setembro 27, 2008

Nuvens



Encantei-me com as nuvens, como se fossem calmas
locuções de um pensamento aberto. No vazio de tudo
eram frontes do universo deslumbrantes.
Em silêncio via-as deslizar num gozo obscuro
e luminoso, tão suave na visão que se dilata.

Que clamor, que clamores mas em silêncio
na brancura unânime! Um sopro do desejo
que repousa no seio do movimento, que modela
as formas amorosas, os cavalos, os barcos
com as cabeças e as proas na luz que é toda sonho.

Unificado olho as nuvens no seu suave dinamismo.
Sou mais que um corpo, sou um corpo que se eleva
ao espaço inteiro, à luz ilimitada.
No gozo de ver num sono transparente
navego em centro aberto, o olhar e o sonho.

António Ramos Rosa

Imagem retirada do Google

sexta-feira, setembro 26, 2008

A cidade é um chão de palavras pisadas



A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.

José Carlos Ary dos Santos

Imagem retirada do Google

quinta-feira, setembro 25, 2008

O insecto



Das tuas ancas aos teus pés
quero fazer uma longa viagem.

Sou mais pequeno que um insecto.

Percorro estas colinas,
são da cor da aveia,
têm trilhos estreitos
que só eu conheço,
centimetros queimados,
pálidas perspectivas.

Há aqui um monte.
Nunca dele sairei.
Oh que musgo gigante!
E uma cratera, uma rosa
de fogo humedecido!

Pelas tuas pernas desço
tecendo uma espiral
ou adormecendo na viagem
e alcanço os teus joelhos
duma dureza redonda
como os ásperos cumes
dum claro continente.

Para teus pés resvalo
para as oito aberturas
dos teus dedos agudos,
lentos, peninsulares,
e deles para o vazio
do lençol branco
caio, procurando cego
e faminto teu contorno
de vaso escaldante!

Pablo Neruda

Imagem retirada do Google

quarta-feira, setembro 24, 2008

Poema XVIII



Impetuoso, o teu corpo é como um rio
onde o meu se perde.
Se escuto, só oiço o teu rumor.
De mim, nem o sinal mais breve.

Imagem dos gestos que tracei,
irrompe puro e completo.
Por isso, rio foi o nome que lhe dei.
E nele o céu fica mais perto.

Eugénio de Andrade

Foto:Michael Anderson

terça-feira, setembro 23, 2008

***



Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

Clarice Lispector

segunda-feira, setembro 22, 2008

Eva Cassidy - autumn leaves



Porque é Outono.

Grande Edgar



Já deve ter acontecido com você.

— Não está se lembrando de mim?

Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele está ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando sua resposta. Lembra ou não lembra?

Neste ponto, você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir.

Um, curto, grosso e sincero.

— Não.

Você não está se lembrando dele e não tem por que esconder isso. O "Não" seco pode até insinuar uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos entre pessoas educadas. Você deveria ter vergonha. Passe bem. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem. Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.

— Não me diga. Você é o... o...

"Não me diga", no caso, quer dizer "Me diga, me diga". Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com sua agonia. Ou você pode dizer algo como:

— Desculpe, deve ser a velhice, mas...

Este também é um apelo à piedade. Significa "não tortura um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!". É uma maneira simpática de você dizer que não tem a menor idéia de quem ele é, mas que isso não se deve a insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua.

E há um terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.

— Claro que estou me lembrando de você!

Você não quer magoá-lo, é isso! Há provas estatísticas de que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:

— Há quanto tempo!

Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.

— Então me diga quem sou.

Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, e falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:

— Pois é.

Ou:

— Bota tempo nisso.

Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem será esse cara meu Deus? Enquanto resgata caixotes com fichas antigas no meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como jabs verbais.

— Como cê tem passado?

— Bem, bem.

— Parece mentira.

— Puxa.

(Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)

Ele esta falando:

—Pensei que você não fosse me reconhecer...

—O que é isso?!

—Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.

—E eu ia esquecer de você? Logo você?

—As pessoas mudam. Sei lá.

— Que idéia. (é o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. "Que bom encontrar você!" e paf, chuta uma perna. "Que saudade!" e paf, chuta a outra. Quem é esse cara?)

— É incrível como a gente perde contato.

— É mesmo.

Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.

— Cê tem visto alguém da velha turma?

— Só o Pontes.

— Velho Pontes! (Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes...)

— Lembra do Croarê?

— Claro!

— Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.

— Velho Croarê. (Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croarê e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)

— Rezende...

— Quem?

Não é ele. Pelo menos isto está esclarecido.

— Não tinha um Rezende na turma?

— Não me lembro.

— Devo esta confundindo.

Silêncio. Você sente que está prestes a ser desmascarado.

Ele fala:

— Sabe que a Ritinha casou?

— Não!

— Casou.

— Com quem?

— Acho que você não conheceu. O Bituca. (Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador . Você está tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?)

— Claro que conheci! Velho Bituca...

— Pois casaram.

É a sua chance. É a saída. Você passou ao ataque.

— E não avisou nada?

— Bem...

— Não. Espera um pouquinho. Todas essas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, O Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?

— É que a gente perdeu contato e...

— Mas meu nome tá na lista meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.

— É...

— E você acha que eu ainda não vou reconhecer você. Vocês é que se esqueceram de mim.

— Desculpe, Edgar. É que...

— Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam. ( Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele está na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de "Já?!".)

— Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?

— Certo, Edgar. E desculpe, hein?

— O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.

— Isso.

— Reunir a velha turma.

— Certo.

— E olha, quando falar com a Ritinha e o Manuca...

— Bituca.

— E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?

— Tchau, Edgar!

Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer "Grande Edgar". Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar "Você está me reconhecendo?" não dirá nem não. Sairá correndo.

Luis Fernando Verissimo

Foto:Triggerfish One

domingo, setembro 21, 2008

A pesca



O anil
o anzol
o azul

o silêncio
o tempo
o peixe

a agulha
vertical
mergulha

a água
a linha
a espuma

o tempo
o peixe
o silêncio

a garganta
a âncora
o peixe

a boca
o arranco
o rasgão

aberta a água
aberta a chaga
aberto o anzol

aquelíneo
agil-claro
estabanado

o peixe
a areia
o sol

Affonso Romano de Sant'Anna

Cartoon:Sergei Cartoons

***



1. PENSOU QUE ERA GIN TÓNICO

"Afinal, a sede é só o desejo de beber", apontou o escritor, e tomou o golo de cicuta.

2. PENSOU QUE ERA UM MOINHO

Algo estranho acontecia, todas as noites, durante três meses: gemidos na biblioteca, o barulho das estantes a abanarem e, quando lá chegava e acendia a luz, os livros remexidos.
Sentei-me para pensar, estalei os dedos, criei suspeitas, treinei um andar rápido e silencioso. Uma noite, ouvi o barulho e acendi a luz antes que ele acabasse. Como desconfiava: o Quixote, em cima da Bovary. E os outros a aplaudirem. Até a Anne Frank!
Separei-os, de castigo. Agora durmo tranquilo – ao meu lado, só a Bíblia.

3. PENSOU QUE ERA OUTRO PROGRAMA

JORNALISTA: O que deseja de Portugal?
SÓCRATES: Que Atenas não me expulse.
JORNALISTA: E uma confidência?
SÓCRATES: A sede é só o desejo de beber.

4. PENSOU QUE ERAM PEQUENAS

Na casa de um amigo, mesmo problema de barulho, mais a contínua descoberta matinal da semi-destruição de um álbum fotográfico. O método-surpresa, uma outra vez, venceu: era um Lilliputiano com os calores da Primavera.

5. PENSARAM QUE ERA UM BALOIÇO

Um parque de diversões. Meninos sobem à forca.

Jorge Vaz Nande visto na Minguante

sábado, setembro 20, 2008

Poemas para a amiga (Fragmento 5)



Tanto mais eu te comtemplo
tanto mais eu me absorvo
e me extasio

Como te explicar
o que em teu corpo eu sinto,
o que em teus olhos vejo,
quando nua nos meus braços
no meus olhos nua,
de novo eu te procuro
e no teu corpo vou-me achar?

Como te explicar
se em teu corpo eu me eternizo
e de onde e como
sendo eu pequeno e frágil
pelo amor me dualizo?

Tanto mais eu te possuo
tanto mais te tornas bela,
tanto mais me torno eu puro.

E à força de tanto contemplar-te
e de querer-te tanto,
já pressinto que em mim mesmo
eu não me tenho,
mas de meu ser, ora vazio,
pouco a pouco fui mudando
para o teu ser de graça cheio.

Affonso Romano de Sant'Anna

Foto:Stanmarek

sexta-feira, setembro 19, 2008

De porta



em porta
-Quem? O infinito?
Diz-lhe que entre.
Faz bem ao infinito
estar entre gente.

-Uma esmola? Coxeia?
Ao que ele chegou!
Podes dar-lhe a bengala
que era do avô

-Dinheiro? Isso não!
Já sei,pobrezinho,
que em vez de pão
ia comprar vinho...

-Teima? Que topete!
Quem se julga ele
se um tigre acabou
nesta sala em tapete?

-Para ir ver a mãe?
Essa é muito forte!
Ele tem não tem mãe
e não é do Norte...

-Vítima de quê?
O dito está dito.
Se não tinha estofo
quem o mandou ser
infinito?

Alexandre O'Neill

Imagem retirada do Google

Adeus, Lisboa



Vou-me até à Outra Banda
no barquinho da carreira.
Faz que anda mas não anda;
parece de brincadeira.
Planta-se o homem no leme.
Tudo ginga, range e treme.
Bufa o vapor na caldeira.
Um menino solta um grito;
assustou-se com o apito
do barquinho da carreira.
Todo ancho, tremelica
como um boneco de corda.
Nem sei se vai ou se fica.
Só se vê que tremelica
e oscila de borda a borda.

Chapas de sol, coruscantes
como lâminas de espadas,
fendem as águas rolantes
esparrinhando flamejantes
lantejoulas nacaradas.
Sob o dourado chuveiro,
o barquinho terno e mole,
vai-se afastando, ronceiro,
na peugada do Sol.

A cada volta das pás
moendo as águas vizinhas,
nos remoinhos que faz,
nos salpicos que me traz
e me enchem de camarinhas,
há fagulhas rutilantes,
esquírolas de marcassites,
polimentos de pirites,
clivagens de diamantes,

Numa hipnose coletiva,
como um friso de embruxados,
ao longe os olhos cravados
em transe de expectativa,
todos juntos, na amurada,
numa sonolência de ópio,
vemos, na tarde pasmada,
Lisboa televisada
num vasto cinemascópio.
O sol e a água conspiram
num conluio de beleza,
de elixires que se evadiram
de feiticeira represa.
Fulva, no céu incendido,
em compostura de pose,
a cidade é colorido
cenário de apoteose.
Há lencinhos agitados
nos olhos de todos nós,
engulhos de namorados,
embargamentos na voz.
Nesta quermesse do ar,
neste festival de tons,
quem se atreve a acreditar
que os homens não sejam bons?

Adeus, adeus, ribeirinha
cidade dos calafates,
rosicler de água-marinha,
pedra de muitos quilates.
Iça as velas, marinheiro,
com destino a Calecu.
Oh que ventinho rasteiro!
Que mar tão cheio e tão nu!
Ó da gávea! Põe-te alerta!
Tem tento nos areais.
Cá vou eu à descoberta
das índias Orientais.
Não tenho medo de nada,
receio de coisa nenhuma.

A vida é leve e arrendada
como esta réstea de espuma.
Toda a gente é séria e é boa!
Não existem homens maus!
Adeus, Tejo! Adeus Lisboa!
Adeus, Ribeira das Naus!
Adeus! Adeus! Adeus! Adeus!

António Gedeão

Foto retirada do Google

quinta-feira, setembro 18, 2008

Libelo



De que mais precisa um homem senão de um pedaço de mar – e um barco [com o

nome da amiga, e uma linha e um anzol pra pescar ?


E enquanto pescando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão
de suas mãos, uma pro caniço, outra pro queixo, que é para ele poder se
perder no infinito, e uma garrafa de cachaça pra puxar tristeza, e um pouco
de pensamento pra pensar até se perder no infinito...

..............................

De que mais precisa um homem senão de um pedaço de terra -- um pedaço [bem
verde de terra -- e uma casa, não grande, branquinha, com uma horta e um
modesto pomar; e um jardim – que um jardim é importante – carregado de [flor
de cheirar ?

E enquanto morando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão
de suas mãos para mexer a terra e arranhar uns acordes de violão quando a
noite se faz de luar, e uma garrafa de uísque pra puxar mistério, que casa
sem mistério não valor morar...

.................................

De que mais precisa um homem senão de um amigo pra ele gostar, um [amigo bem
seco, bem simples, desses que nem precisa falar -- basta olhar -- um
desses que desmereça um pouco da amizade, de um amigo pra paz e pra [briga,
um amigo de paz e de bar ?

E enquanto passando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão
de suas mãos para apertar as mãos do amigo depois das ausências, e pra
bater nas costas do amigo, e pra discutir com o amigo e pra servir bebida à
vontade ao amigo ?

...................................

De que mais precisa um homem senão de uma mulher pra ele amar, uma [mulher
com dois seios e um ventre, e uma certa expressão singular ? E enquanto
pensando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de [um
carinho de mulher quando a tristeza o derruba, ou o destino o carrega em
sua onda sem rumo ?

Sim, de que mais precisa um homem senão de suas mãos e da mulher -- as
únicas coisas livres que lhe restam para lutar pelo mar, pela terra, pelo
amigo ..."

Vinícius de Moraes

Foto:Stanmarek

quarta-feira, setembro 17, 2008

Ode à poesia



Perto de cinqüenta anos
caminhando
contigo, Poesia.
A princípio
me emaranhavas os pés
e eu caía de bruços
sobre a terra escura
ou enterrava os olhos
na poça
para ver as estrelas.
Mais tarde te apertaste
a mim com os dois braços da amante
e subiste
pelo meu sangue
como uma trepadeira.
E logo
te transformaste em taça.
Maravilhoso
foi
ir derramando-te sem que te consumisses,
ir entregando tua água inesgotável,
ir vendo que uma gota
caia sobre um coração queimado
que de suas cinzas revivia.
Mas
ainda não me bastou.
Andei tanto contigo
que te perdi o respeito.
Deixei de ver-te como
náiade vaporosa,
te pus a trabalhar de lavadeira,
a vender pão nas padarias,
a tecer com as simples tecedoras,
a malhar ferros na metalurgia.
E seguiste comigo
andando pelo mundo,
contudo já não eras
a florida
estátua de minha infância.
Falavas
agora
com voz de ferro.
Tuas mãos
foram duras como pedras.
Teu coração
foi um abundante
manancial de sinos,
produziste pão a mãos cheias,
me ajudaste
a não cair de bruços,
me deste companhia,
não uma mulher,
não um homem,
mas milhares, milhões.
Juntos, Poesia,
fomos
ao combate, à greve,
ao desfile, aos portos,
à mina
e me ri quando saíste
com a fronte tisnada de carvão
ou coroada de serragem cheirosa
das serrarias.
Já não dormíamos nos caminhos.
Esperavam-nos grupos
de operários com camisas
recém-lavadas e bandeiras rubras.

E tu, Poesia,
antes tão desventuradamente tímida,
foste
na frente
e todos
se acostumaram ao teu traje
de estrela cotidiana,
porque mesmo se algum relâmpago delatou tua família,
cumpriste tua tarefa,
teu passo entre os passos dos homens.
Eu te pedi que fosses
utilitária e útil,
como metal ou farinha,
disposta a ser arada,
ferramenta,
pão e vinho,
disposta, Poesia,
a lutar corpo-a-corpo
e cair ensangüentada.

E agora,
Poesia,
obrigado, esposa,
irmã ou mãe
ou noiva,
obrigado, onda marinha,
jasmim e bandeira,
motor de música,
longa pétala de ouro,
campana submarina,
celeiro
inextinguível,
obrigado
terra de cada um
de meus dias,
vapor celeste e sangue
de meus anos,
porque me acompanhaste
desde a mais diáfana altura
até a simples mesa
dos pobres,
porque puseste em minha alma
sabor ferruginoso
e fogo frio,
porque me levantaste
até a altura insigne
dos homens comuns,
Poesia,
porque contigo,
enquanto me fui gastando,
tu continuaste
desabrochando tua frescura firme,
teu ímpeto cristalino,
como se o tempo
que pouco a pouco me converte em terra
fosse deixar correndo eternamente
as águas de meu canto.

Pablo Neruda

Imagem retirada do Google

terça-feira, setembro 16, 2008

Boca



Boca
livre trânsito
de vocábulos e aves
fruições e frutos.
Boca
sede de gozo e poder
pombos lhe pousam
entre os dentes ávidos
pêssegos se imolam
cindindo-lhe os lábios.
Boca
sítio de martírio
se a contragosto
de fome se fecha
ou em pânico se cala
atrás de uma mordaça.

Astrid Cabral

Foto retirada do Google

Meu querido



Se um dia te sentires deprimido,
Infeliz e sofrido sorri e pensa...

Ainda há momentos de felicidade que conheço.

Quando os bosques, mares e flores encantam
Quando o canto das aves fascinam o dia
E as estrelas dão resplendor às noites de lua.

Ainda há momentos de felicidade que conheço.

Quando uma Mãe dá um grito e se ouve o vagido de uma criança.
Quando a velhice passa de braço dado com a juventude.
Quando os homens abandonam o igoísmo e se dão as mãos.

Frederico Garcia Lorca

Foto:Gary Whalen

segunda-feira, setembro 15, 2008

blogagem colectiva-Justiça para Flávia


Aqui sua mãe Odele expõe o caso melhor que eu.

Mas no dia 2 de Agosto, Odele participou num programa da TV Record onde fica tudo mais esclarecido:



Pela minha parte lamento que uma criança tenha aos 10 anos perdido a oportunidade de ser igual às outras, por culpa de um acidente que não se deveria ter dado.

Desejo toda a força para Odele que é uma mãe fora de série!

domingo, setembro 14, 2008

O que é um PEIDO para quem está todo CAGADO?



A expressão do título é conhecida de todos, mas o texto que a originou é menos.
É uma obra de Luis Fernando Veríssimo sobre a obra veríssima que ele
fez numa viagem para Miami.

Aeroporto Santos Dumont, 15:30.

Senti um pequeno mal-estar causado por uma cólica intestinal, mas
nada que uma urinada ou uma barrigada não aliviasse.
Mas, atrasado para chegar ao ônibus que me levaria para o Galeão, de
onde partiria o vôo para Miami, resolvi segurar as pontas.

Afinal de contas são só uns 15 minutos de busão.

'Chegando lá, tenho tempo de sobra para dar aquela mijadinha esperta,
tranqüilo, o avião só sairía às 16:30'.

Entrando no ônibus, sem sanitários. Senti a primeira
contração e tomei consciência de que minha gravidez fecal chegara ao
nono mês e que faria um parto de cócoras assim que entrasse no
banheiro do aeroporto

Virei para o meu amigo que me acompanhava e, sutil falei:

'Cara, mal posso esperar para chegar na merda do aeroporto porque
preciso largar um barro.'

'Nesse momento, senti um urubu beliscando minha cueca, mas botei a
força de vontade para trabalhar e segurei a onda.'

O ônibus nem tinha começado a andar quando, para meu desespero, uma
voz disse pelo alto falante: 'Senhoras e senhores, nossa viagem entre
os dois aeroportos levará em torno de 1hora, devido a obras na pista.'

Aí o urubu ficou maluco querendo sair a qualquer custo. Fiz um
esforço hercúleo para segurar o trem merda que estava para chegar na
estação anus a qualquer momento.

Suava em bicas. Meu amigo percebeu e, como bom amigo que era,
aproveitou para tirar um sarro.

O alívio provisório veio em forma de bolhas estomacais, indicando que
pelo menos por enquanto as coisas tinham se acomodado.

Tentava me distrair vendo TV, mas só conseguia pensar em um banheiro,
não com uma privada, mas com um vaso sanitário tão branco e tão limpo
que alguém poderia botar seu almoço nele. E o papel higiênico então:
branco e macio, com textura e perfume e, ops, senti um volume
almofadado entre meu traseiro e o assento do ônibus e percebi,
consternado, que havia cagado.

Um cocô sólido e comprido daqueles que dão orgulho de pai ao seu autor.

Daqueles que dá vontade de ligar pros amigos e parentes e convidá-los
a apreciar na privada.

Tão perfeita obra, dava pra expor em uma bienal.

Mas sem dúvida, a situação tava tensa. Olhei para o meu amigo,
procurando um pouco de piedade, e confessei sério:

'Cara, caguei!'

Quando meu amigo parou de rir, uns cinco minutos depois,
aconselhou-me a relaxar, pois agora estava tudo sob controle.

'Que se dane, me limpo no aeroporto', pensei.

'Pior que isso não fico'.

Mal o ônibus entrou em movimento, a cólica recomeçou forte. Arregalei
os olhos, segurei-me na cadeira mas não pude evitar, e sem muita
cerimônia ou anunciação, veio a segunda leva de merda.

Desta vez, como uma pasta morna. Foi merda para tudo que é lado,
borrando, esquentando e melando a bunda, cueca, barra da camisa,
pernas, panturrilha, calças, meias e pés.

E mais uma cólica anunciando mais merda, agora líqüida, das que
queimam o fiofó do freguês ao sair rumo a liberdade.
E depois um peido tipo bufa, que eu nem tentei segurar. Afinal de
contas, o que era um peidinho para quem já estava todo cagado...

Já o peido seguinte, foi do tipo que pesa. E me caguei pela quarta
vez. Lembrei de um amigo que certa vez estava com tanta caganeira que
resolveu botar modess na cueca, mas colocou as linhas adesivas viradas
para cima e quando foi tirá-lo levou metade dos pêlos do rabo junto.

Mas era tarde demais para tal artifício absorvente.
Tinha menstruado tanta merda que nem uma bomba de cisterna poderia me
ajudar a limpar a sujeirada.

Finalmente cheguei ao aeroporto e saindo apressado com passos
curtinhos, supliquei ao meu amigo que apanhasse minha mala no
bagageiro do ônibus e a levasse ao sanitário do aeroporto para que eu
pudesse trocar de roupas.

Corri ao banheiro e entrando de boxe em boxe, constatei falta de papel
higiênico em todos os cinco.

Olhei para cima e blasfemei: 'Agora chega, né?'

Entrei no último, sem papel mesmo, e tirei a roupa toda para analisar
minha situação (que concluí como sendo o fundo do poço) e esperar pela
minha salvação, com roupas limpinhas e cheirosinhas e com ela uma
lufada de dignidade no meu dia.

Meu amigo entrou no banheiro com pressa, tinha feito o 'check-in' e
ia correndo tentar segurar o vôo.
Jogou por cima do boxe o cartão de embarque e uma maleta de mão e
saiu antes de qualquer protesto de minha parte 'Ele tinha despachado
a mala com roupas'.
Na mala de mão só tinha um pulôver de gola 'V'.

A temperatura em Miami era de aproximadamente 35 graus.

Desesperado comecei a analisar quais de minhas roupas seriam, de
algum modo, aproveitáveis.
Minha cueca, joguei no lixo. A camisa era história.
As calças estavam deploráveis e assim como
minhas meias mudaram de cor tingidas pela merda. Meus sapatos
estavam nota 3, numa escala de 1a 10.
Teria que improvisar.
A invenção é mãe da necessidade, então transformei uma simples
privada em uma magnífica máquina de lavar.
Virei a calça do lado avesso, segurei-a pela barra, e mergulhei a
parte atingida na água. Comecei a dar descarga até que o grosso da
merda se desprendeu. Estava pronto para embarcar.

Saí do banheiro e atravessei o aeroporto em direção ao portão de
embarque trajando sapatos sem meias, as calças do lado avesso e
molhadas da cintura ao joelho (não exatamente limpas) e o pulôver
gola 'V', sem camisa.

Mas caminhava com a dignidade de um lorde.

Embarquei no avião, onde todos os passageiros estavam esperando o
'RAPAZ QUE ESTAVA NO BANHEIRO' e atravessei todo o corredor até o meu
assento, ao lado do meu amigo que sorria.

A aeromoça aproximou-se e perguntou se precisava de algo.

Eu cheguei a pensar em pedir 120 toalhinhas perfumadas para disfarçar
o cheiro de fossa transbordante e uma gilete para cortar os
pulsos, mas decidi não pedir:

'Nada, obrigado.'

Eu só queria esquecer este dia de merda. Um dia de merda...

Luis Fernando Veríssimo (verídico)

Recebido por email

sábado, setembro 13, 2008

Agora, apodrecer



Agora, apodrecer.
Nas ruas, no suor das mãos amigas dos amigos, na pele dos espelhos...
desespero sorrido, carne de sonho público, montras enfeitadas de olhos...

...mas apodrecer.

Bolor a fingir de lua, árvores esquecidas do princípio do mundo...
"como estás, estás bem?", o telefone não toca! devorador de astros...

... mas apodrecer.

Sim, apodrecer
de pé e mecânico,
a rolar pelo mundo
nesta bola de vidro,
já sem olhos para aguçar peitos
e o sol a nascer todos os dias
no emprego burocrático de dar razão aos relógios,
cada vez mais necessários para as certidões da morte exata,

Sim, apodrecer ...

"...as mãos, a cólera, o frio, as pálpebras, o cabelo
a morte, as bandeiras, as lágrimas, a república, o sexo...

... mas apodrecer!

Sujar estrelas.

José Gomes Ferreira

Imagem retirada do Google

sexta-feira, setembro 12, 2008

Quero saber



Quero saber se você vem comigo
a não andar e não falar,
quero saber se ao fim alcançaremos
a incomunicação; por fim
ir com alguém a ver o ar puro,
a luz listrada do mar de cada dia
ou um objeto terrestre
e não ter nada que trocar
por fim, não introduzir mercadorias
como o faziam os colonizadores
trocando baralhinhos por silêncio.
Pago eu aqui por teu silêncio.
De acordo, eu te dou o meu
com uma condição: não nos compreender

Pablo Neruda

Foto:Zacarias Pereira da Mata

Livro de Horas



Aqui diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,

e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas
O dos facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.

E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!

Miguel Torga

Imagem retirada do Google

quinta-feira, setembro 11, 2008

A vazia sandália de S.Francisco



A gratidão da macieira e a amnésia do gato
nunca pautaram o curso dos meus dias.
Fiquem onde estão!
foi a minha ordem para a macieira e para o gato,
anda bem exteriores ao meu fraco por eles.

Salvei-os(e salvei-me!)de uma fábula
cuja moral necessariamente devia ser eu,o parlante
amigo de macieiras e conhecidos de gatos.

Dá um certo desconforto malbaratar assim amigos
em dois reinos da natureza.
Mas também dá liberdade.

Há uma gente que desponta do outro lado do vale.
Está a correr para cá.
São os meus semelhantes.
Com eles vou desentender-me(mais que certo!),
mas a ideia que deles faço
é ainda um laço.

Repousem em paz as macieiras e os gatos.

Alexandre O'Neill

Foto:Mario Spalla

11 de Setembro

América-11/09/01-Torres Gémeas



Chile-11/09/73-Morte de Salvador Allende



Fotos retiradas do Google

quarta-feira, setembro 10, 2008

Andava a lua nos céus



Andava a lua nos céus
Com o seu bando de estrelas

Na minha alcova
Ardiam velas
Em candelabros de bronze

Pelo chão em desalinho
Os veludos pareciam
Ondas de sangue e ondas de vinho

Ele, olhava-me cismando;
E eu,
Plácidamente, fumava,
Vendo a lua branca e nua
Que pelos céus caminhava.

Aproximou-se; e em delírio
Procurou avidamente
E avidamente beijou
A minha boca de cravo
Que a beijar se recusou.

Arrastou-me para ele,
E encostado ao meu ombro
Falou-me de um pagem loiro
Que morrera de saudade
À beira-mar, a cantar...

Olhei o céu!

Agora, a lua, fugia,
Entre nuvens que tornavam
A linda noite sombria.

Deram-se as bocas num beijo,
Um beijo nervoso e lento...
O homem cede ao desejo
Como a nuvem cede ao vento

Vinha longe a madrugada.

Por fim,
Largando esse corpo
Que adormecera cansado
E que eu beijara, loucamente,
Sem sentir,
Bebia vinho, perdidamente
Bebia vinho..., até cair.

António Botto

Foto retirada do Google

Brandi Carlile- The Story



Porque sim.

***



Código

Não sabia ler, mas nunca o confessara a ninguém. Entrava na mercearia muito altiva e comprava tudo como as outras pessoas. Conhecia os títulos de cor e adivinhava o conteúdo pelas cores. Um dia, mudaram as embalagens. Não sabia que produto comprar, mas não se queixava. Comprava o mesmo que os outros e depois vinha trocar.

Ana Mendes

O desejo

Ela chega outra vez com seus sorrisos, seus fantasmas, as frases desconcertantes, o cabelo preso porque tem algo importante a dizer. Acende um cigarro porque vai parar de fumar e me diz coisas cruéis. Depois me beija e quer conversar, conversar, conversar. Me fala sobre seu dia, sobre a situação mundial e sobre como não liga pra nada disso. Depois caminha descalça no quintal sob a lua cheia e canta algo inesperadamente antigo, me deixando calado diante de seu caos criativo, seus poemas curtos, seus quadros indecifráveis. Ela é um mistério do qual deveria me manter longe, longe, longe, não fosse esta maldita curiosidade.

Avery Veríssimo

Sorri, amor – pediu ela. Já arrependido do pacto de suicídio, ele foi incapaz de satisfazer esse seu último desejo.

Depois de acariciar demoradamente a lamparina mágica, a sensual fada satisfez seus desejos três vezes.

A bofetada deixou-lhe a marca dos dedos na face. Ao pensar em lhe pedir desculpas, desejou sentir novamente aquela mão em sua cara.

Ele viera de outro planeta com uma missão. Mas agora que conhecera o sabor de uma mulher, ser mais um maldito terráqueo era seu único desejo.

Carlos Seabra

Visto na Minguante

terça-feira, setembro 09, 2008

O Analista de Bagé



Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vem de Bagé, assim como algumas das menos afetadas são de Pelotas. Mas não adianta. Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem educada) mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar.

Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.

— Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.

— O senhor quer que eu deite logo no divã?

— Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da fronteira, pra não perder tempo nem dinheiro.

— Certo, certo. Eu...

— Aceita um mate?

— Um quê? Ah, não. Obrigado.

— Pos desembucha.

— Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?

— Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.

— Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe

— Outro.

— Outro?

— Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.

— E o senhor acha...

— Eu acho uma pôca vergonha.

— Mas...

— Vai te metê na zona e deixa a velha em paz, tchê!

~//~

Contam que outra vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de Bagé. Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo.

— Quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira... Mas acabou concordando.

— Se abanquem, se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê! . Qual é o causo?

— Bem — disse o home — é que nós tivemos um desentendimento...

— Mas tu também é um bagual. Tu não sabe que em mulher e cavalo novo não se mete a espora?

— Eu não meti a espora. Não é, meu bem?

— Não fala comigo!

— Mas essa aí tá mais nervosa que gato em dia de faxina.

— Ela tem um problema de carência afetiva...

— Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho, carência afetiva é falta de homem.

— Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento porque ela tem procurado experiências extraconjugais e...

— Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista? Tão folgada que qualquer um bota a mão?

— Nós somos pessoas modernas. Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?

— Ela tá procurando o verdadeiro tu nos outros?

— O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.

— Mas isto tá ficando mais enrolado que lingüiça de venda. Te deita no pelego.

— Eu?

— Ela. Tu espera na salinha.

Luís Fernando Veríssimo

Foto:Divã de Freud visto na wikipédia

segunda-feira, setembro 08, 2008

***



DESEJOS ATLÉTICOS

"Desejo que esta carta te vá encontrar de saúde..."
Foi até onde Almerindo conseguiu ler porque um fulminante ataque cardíaco atirou-o para as urgências hospitalares.
Supersticiosa e sem papas na escrita, Isolina aderiu à correspondência on-line, que habitualmente termina assim:
"Se leste este e-mail até ao fim, parabéns. Conseguiste ser mais rápido que o próximo enfarte. Desejos de imensas e velozes corridas."

DESEJO RECONHECIDO

Conheceram-se numa propícia manhã de Sol, caindo nos braços um do outro de imediato, tremendo de desejo. "Desejo tanto possuir-te!" exclamou ele. "E eu a ti! E eu a ti ainda mais!" atalhou ela de rompante. Porque não desejavam iniciar a posse com uma discussão, foram ao notário: que ficasse exarado em certidão quem possuía quem e pela ordem desejada.

Alberto Oliveira visto na Minguante

domingo, setembro 07, 2008

Curtinhas



De quem é a culpa?
Do chão escorregadio?
Ou do piso liso do sapato?
Da natureza quebradiça dos ossos?
──────────────────────────────
Mal chegastes!
E estais saindo....
Afinal, o que é isto?
Uma cheguida.
─────────────────────────────
Um burguês, inchando de ter,
Teve tudo e tudo lhe teve.
Esqueceu que a morte é apenas ZZZZIIIIPPPT.
E é certa que vem.
──────────────────────────────
Januária e Joana juntas na janela, jamais.
Brigaram, brigona, brava.
Assuntos assim, sempre serão sucesso,
Pois choram a ubiqüidade ultrapassada.
──────────────────────────────
Só existe uma alternativa
Para o vazio estabelecido,
Pela inexorável despedida.
Preencher o vazio.
──────────────────────────────
Não sei se:
O rabo está na cabeça,
Ou vice-versa.
O chão no céu,
Ou o céu no chão.
A água é fogo,
Ou o fogo é água.
O gás é líquido,
Ou o sólido é pensamento

José do Vale Pinheiro Feitosa

Imagem retirada do Google

sábado, setembro 06, 2008

Por Mares Nunca D'antes Navegados



Decididamente,
escola não era o lugar de Camões...
Que me perdoem os mestres
com suas erudições,
mas, epopéia, era sair cedo da cama,
só para encontrar Vasco da Gama.
Cheia de sono,
nem o lia:
mal abria Os Lusíadas,
ao abandono de divagar
eu me entregava.
E como viajava:
Coimbra, Ceuta, Goa,
Índia, Moçambique, Lisboa...
Esta sim era a vida que eu sonhava...
E que vidinha boa!
Não a de estudos,
sisudos,
miúdos.
A certa altura,
logo depois da formatura,
quando cessou tudo o que a Musa antiga cantou
que outro valor mais alto se alevantou,
de Camões me perdi.
E só há pouco entendi
quanta aprendizagem havia
nas v(ad)iagens que eu, turista,
empreendia.
Então num movimento saudosista
— bem português —,
agora cheia de lucidez e nostalgia,
suspiro,
ao ver que de mim se distancia
por toda a parte, sem engenho, a arte.
E a conclusão final que eu tiro,
pá,
é de que mesmo sem eu ler poesia,
para o seu Reino, cheio de magia,
Camões, fidalgo, me levava lá...

Leila Míccolis

Imagem retirada do Google

Caprichos



Sozinho no universo
a procura de um paraíso,
recolho-me ao meu cantinho escuro
e como num descompasso desregrado
não atino com as consequências
do exagerado sonho meu.
Sofro nas entrelinhas
de pequenos caprichos,
mas na evolução natural
o meu mundo é perfeito,
perfeitamente completo
na insana busca da felicidade.

Germano Rocha

Foto:Gianni Candido

sexta-feira, setembro 05, 2008

Sei os teus seios



Sei os teus seios.
Sei-os de cor.

Para a frente, para cima,
Despontam, alegres, os teus seios.

Vitoriosos já,
Mas não ainda triunfais.

Quem comparou os seios que são teus
(Banal imagem) a colinas!

Com donaire avançam os teus seios,
Ó minha embarcação!

Porque não há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p'la manhã?

Quantas vezes
Interrogastes, ao espelho, os seios?

Tão tolos os teus seios! Toda a noite
Com inveja um do outro, toda a santa
Noite!

Quantos seios ficaram por amar?

Seios pasmados, seios lorpas, seios
Como barrigas de glutões!

Seios decrépitos e no entanto belos
Como o que já viveu e fez viver!

Seios inacessíveis e tão altos
Como um orgulho que há-de rebentar
Em desesperadas, quarentonas lágrimas...

Seios fortes como os da Liberdade
-Delacroix-guiando o Povo.

Seios que vão à escola p'ra de lá saírem
Direitinhos p'ra casa...

Seios que deram o bom leite da vida
A vorazes filhos alheios!

Diz-se rijo dum seio que, vencido,
Acaba por vencer...

O amor excessivo dum poeta:
"E hei-de mandar fazer um almanaque
da pele encadernado do teu seio"

Retirar-me para uns seios que me esperam
Há tantos anos, fielmente, na província!

Arrulho de pequenos seios
No peitoril de uma janela
Aberta sobre a vida.

Botas, botirrafas
Pisando tudo, até os seios
Em que o amor se exalta e robustece!

Seios adivinhados, entrevistos,
Jamais possuídos, sempre desejados!

"Oculta, pois, oculta esses objectos
Altares onde fazem sacrifícios
Quantos os vêem com olhos indiscretos"

Raimundo Lúlio, a mulher casada
Que cortejastes, que perseguistes
Até entrares, a cavalo, p'la igreja
Onde fora rezar,
Mudou-te a vida quando te mostrou
("É isto que amas?")
De repente a podridão do seio.

Raparigas dos limões a oferecerem
Fruta mais atrevida: inesperados seios...

Uma roda de velhos seios despeitados,
Rabujando,
A pretexto de chá...

Engolfo-me num seio até perder
Memória de quem sou...

Quantos seios devorou a guerra, quantos,
Depressa ou devagar, roubou à vida,
À alegria, ao amor e às gulosas
Bocas dos miúdos!

Pouso a cabeça no teu seio
E nenhum desejo me estremece a carne.

Vejo os teus seios, absortos
Sobre um pequeno ser

Alexandre O'Neill

Foto:Hataiiia Hataiiia

Bucólica e Não



Há sempre poetas para fazer versos à terra,
às plantas, animais, num cheiro de bucólico,
mistura de verduras podres, resinas escorrendo,
flores perfumadas, terra humedecida, e o adocicado
e acre também estrume: é sexo o que cheiram?
Amor o que respiram? As ervas que no vento
se abaixam e se entesam, e o arvoredo erecto,
de ramos balançando mas retesos,
é de si mesmos sem baixar os olhos
ao longo do seu corpo e sem tocar-se
com as mãos- que lhes recordam?
E aqueles nós peludos de musgentos
em troncos. Ou no chão buracos de formigas,
e de si mesmos, fêmeas, que lhes lembram?
É orvalho em flores ou folhas ou nos troncos,
rios e regatos murmurantes- que serão?
Acaso podem ser opacos e leitosos,
Jorrando intermitentes num agudo jacto?
que terra o amor mostra que não seja
o amor que não se abriu ou não saltou,
o amor que não foi feito ou não se deu?

Jorge de Sena

Foto:Razaq Vance

quinta-feira, setembro 04, 2008

You've Got A Friend---carole King,Celine,Gloria,Shania



Porque é linda.

Tu Pensas que os Cardeais



Tu pensas
que os cardeais
não se masturbam,
que não vêem
as telenovelas,
que vêem, quando muito, os filmes de Bergman
e o Evangelho segundo São Mateus de Pasolini.
Não, eles nunca lêem os livros pornográficos
e nunca pensaram em ter amantes.
Eles não conhecem o turbilhão das visões
das figuras eróticas,
eles lêem os exercícios espirituais
de Santo Inácio
e têm o odor da santidade
e irão para o céu porque nunca pecaram,
nunca acariciaram um pénis,
nunca o desejaram túmido e ardente
na sua boca casta.

Ah os cardeais como são exemplares
mesmo quando os espelhos os perseguem
com os membros e órgãos de mulheres
na fulguração da nudez liquida e candente!

Todavia eu conheço a obstinada chama
do desejo,
a sua glauca ondulação,
os seus olhos deslumbrados pela oceânica
vertigem
de um corpo embriagado pela sua simetria
e pela volúvel coerência
dos seus astros dispersos.

Não, eu não creio na inocência imaculada
dos solenes cardeais.
Eu sei que a sua carne é a mesma argila
incandescente e turva
de que o meu corpo frágil é composto.
Eles conhecem o sofrimento de ser duplos,
o vazio do desejo,
a violência nua das imagens monstruosas,
a adolescência do fogo nos labirintos negros.

Mas eu sei que os cardeais não gritam,
nem levantam a voz,
nem atravessam a fronteira do pudor
e adormecem ao rumor das orações.
É esta imagem que eu quero conservar
na religiosa monotonia do meu sono.

António Ramos Rosa

Foto:REUTERS/Jeff J Mitchell

quarta-feira, setembro 03, 2008

Kelly Osbourne ft. Ozzy Osbourne - Changes



Porque gosto.

Praia do Paraíso



Era a primeira
vez que nus os nossos corpos
Apesar da penumbra à vontade se olhavam
Surpresos de saber que tinham tantos olhos
Que podiam ser luz de tantos candelabros
Era a primeira vez cerrados os estores
Só o rumor do mar permanecera em casa
E sabias a sal, e cheiravas a limos
Que tivesses ouvido o canto das cigarras
Havia mais que céu no céu do teu sorriso
Madrugada de tudo em tudo que sonhavas
Em teus braços tocar era tocar os ramos
Que estremecem ao sol desde que o mundo é mundo
É preciso afinal chegar aos cinquenta anos
Para se ver que aos vinte é que se teve tudo.

David Mourão-Ferreira

Foto:jeh182_2nd

terça-feira, setembro 02, 2008

Comentário da Fatyly ao post anterior



- Levando para o campo da ditadura:com esse material todo, ela poderia esperar sentada pelo pior, mas quantas e quantas nunca receberam NADA e ainda hoje estão convencidas que se perderam no mundo!

- Levando para o campo do amor: acontece usarmos todo o material para uma fuga, quando se deixam sentimentos tão mal tratados.

- Levando para a actualidade: olha, olha o meu ômi voltou tão rico e cheio de prendas em "ouro" e tadinho trabalhou que se fartou.
Trimmm, Trimmm

O meu marido
saiu de casa no dia
que voltou tão rico.
Levava as mãos atadas
calças, camisola e cuecas
todas suadas
Como não tive mais notícias,
aguardo que volte com
com o mesmo tino
e com uma bonita guia
"termo de identidade e
continência"
ou será incontinência?
Atchim! Atchim
Oh Alexandre tu desculpa
mas hoje estou assim!

Fatyly

Imagem retirada do Google

A bicicleta



O meu marido
saiu de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior.

Alexandre O'Neill

Foto retirada do Google

segunda-feira, setembro 01, 2008

Tão linda e serena e bela



Tão lenta e serena e bela e majestosa
[vai passando a vaca
Que, se fora na manhã dos tempos, de rosas a coroaria
A vaca natural e simples como a primeira canção
A vaca, se cantasse,
Que cantaria?
Nada de óperas, que ela não é dessas, não!
Cantaria o gosto dos arroios bebidos de madrugada,
Tão diferente do gosto de pedra do meio-dia!
Cantaria o cheiro dos trevos machucados.
Ou, quando muito,
A longa, misteriosa vibração dos alambrados...
Mas nada de superaviões, tratores, êmbolos
E outros truques mecânicos.

Mário Quintana

Não há vagas



O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

o poema, senhores,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar

Imagem retirada do Google