segunda-feira, maio 31, 2010
A bomba
A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio
A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
mente e sorri sem dente
A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação
A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
faz week-end na Semana Santa
A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos
interplanetários
A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose,
de verborréia
A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer
A bomba
continua a envenená-las no curso da vida
A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera
A bomba
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro,
cobalto e ferro além da comparsaria
A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
não admite que ninguém acorde sem motivo grave
A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
saboriea a morte com marshmallow
A bomba
arrota impostura e prosopéia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
é podre
A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado
A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
A bomba
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel
A bomba
é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos
de paz
A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger
velhos e criancinhas
A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
é câncer
A bomba
vai à Lua, assovia e volta
A bomba
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação
em cadeia
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba
o instante inefável
A bomba
fede
A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.
Carlos Drummond de Andrade
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domingo, maio 30, 2010
sábado, maio 29, 2010
Discurso do filho da puta
O pequeno filho da puta
é sempre
um pequeno filho da puta;
mas não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho da puta.
no entanto, há
filhos-da-puta que nascem
grandes e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho da puta.
de resto,
os filhos da puta
não se medem aos
palmos,diz ainda
o pequeno filho da puta.
o pequeno
filho da puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno
filho da puta.
no entanto,
o pequeno filho da puta
tem orgulho
em ser
o pequeno filho da puta.
todos os grandes
filhos da puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno
filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
dentro do
pequeno filho da puta
estão em ideia
todos os grandes filhos da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
o pequeno filho da puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem
e semelhança,
diz o pequeno filho da puta.
é o pequeno filho da puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que
ele precisa
para ser o grande filho da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
de resto,
o pequeno filho da puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho da puta:
o pequeno filho da puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja,
o pequeno filho da puta.
II
o grande filho da puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho da puta,
e não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.
no entanto,
há filhos da puta
que já nascem grandes
e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho da puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos
palmos, diz ainda
o grande filho-da-puta.
o grande filho da puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho da puta.
por isso
o grande filho da puta
tem orgulho em ser
o grande filho da puta.
todos
os pequenos filhos da puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.
dentro do
grande filho da puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos da puta,
diz o
grande filho da puta.
tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos da puta,
diz
o grande filho da puta.
o grande filho da puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho da puta.
é o grande filho da puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa para ser
o pequeno filho da puta,
diz o
grande filho da puta.
de resto,
o grande filho da puta
vê com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho da puta:
o grande filho da puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja,
o grande filho da puta.
Alberto Pimenta
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sexta-feira, maio 28, 2010
A lua no cinema
A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!
Paulo Leminski
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quinta-feira, maio 27, 2010
Dizia uma vez Aquilino...
Dizia uma vez Aquilino que em Portugal
os filósofos se exilavam ainda em seu país
(v.g. Spinoza). O curioso porém
é que também ninguém foi santo lá:
os nascidos em Portugal foram todos sê-lo noutra parte
(St. António, S. João de Deus, etc.)
e outros santos portugueses, se o foram,
terá sido, porque, estrangeiros que eram e em Portugal
vivendo, não tiveram outro remédio
(v.g. Rainha Santa) senão ser santos,
à falta de melhor. Oh país danado.
Porque os heróis também nunca tiveram melhor sorte
(Albuquerque e outros que o digam) a menos que
tivessem participado de revoluções feitas
*em vez de* (v.g. o Condestável que fez
fortuna e a casa de Bragança e acabou só Santo quase).
Jorge de Sena
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quarta-feira, maio 26, 2010
Mapa
Lampiões pendurados na noite
cortam as alamedas que se movem sobre um palco
movediço de sombras que se engastam
na moldura gasta de um retrato.
No meio do mundo a cidade afunda
dentro do vazio de um sono não habitado
por voz ou ressonância de gente
ou pelo ranger monótono de algum estrado
violando o silêncio e seus narcóticos
a cidade some sob meus olhos
que a buscam em vão no mapa.
Ainda hoje ouço o estalo de seus galhos.
Rodrigo Petrónio
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terça-feira, maio 25, 2010
Moral da história
Deixamos passar o outono, o inverno,
a primavera, o verão,
e fazemos de conta que lhes sobrevivemos
como se tudo não passasse
de inofensiva e reversível
sucessão.
Passeamos de mãos dadas,
temos filhos e casamos,
pedimos a reforma,
partilhamos o gelado na praia
junto à rebentação,
apertamos o casaco na gola
quando as folhas se deitam,
pisamos papoilas em caminhos
de aldeias abandonadas,
olhamos a água no tanque
quando levamos o cão à rua
de madrugada,
e dizemos: é isto a vida, é isto
o real
(e assim nos enganamos)
como meninos
livres para brincar junto do poço
enquanto a mãe não está a olhar
ou fala ao telefone,
ou prepara o almoço.
Rui Lage
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segunda-feira, maio 24, 2010
Porque a manhã...
Porque a manhã era festiva
e não regressa
-livres papoilas despontavam no jardim-
sentei-me à porta
e, longamente, olhei o mar
enquanto o mundo
rodava mais depressa.
Não me será
perdoado
olhar assim.
Manuel Filipe in"Eis Uma Casa", pág.48, Edição do Autor
Foto:Julio Segura
domingo, maio 23, 2010
Amizade
Um amigo íntimo - de si mesmo.
O amigo que se torna inimigo fica incompreensível; o inimigo que se torna amigo é um cofre aberto.
A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas.
É preciso regar as flores sobre o jazigo de amizades extintas.
Como as plantas, a amizade não deve ser muito nem pouco regada.
Certas amizades comprometem a idéia de amizade.
Carlos Drummond de Andrade
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sábado, maio 22, 2010
sexta-feira, maio 21, 2010
Mulher
Chamam-te linda, chamam-te formosa,
Chamam-te bela, chamam-te gentil...
A rosa é linda, é bela, é graciosa,
Porém a tua graça é mais subtil.
A onda que na praia, sinuosa,
A areia enfeita com encantos mil,
Não tem a graça, a curva luminosa
Das linhas do teu corpo, amor e ardil.
Chamam-te linda, encantadora ou bela;
Da tua graça é pálida aguarela
Todo o nome que o mundo à graça der.
Pergunto a Deus o nome que hei-de dar-te,
E Deus responde em mim, por toda parte:
Não chames bela – Chama-lhe Mulher!
Rui de Noronha (Moçambique)
Desenho de TCA
quinta-feira, maio 20, 2010
O afilhado
O meu afilhado epiléptico veio ver-me,
Veio verme.
Verme não é. E, se fosse, isso que tinha?
os anelídeos têm os seus anéis elásticos,
Num começo de élan superior, bem soldado,
A blocos de controle e direcção,
Enquanto que ele a perde em centros altamente sinápticos
E fica pobre e triste entre os apáticos.
O meu afilhado epiléptico
Veio ver-me,
Veio verme,
Veio ecléctico,
Entre os que sim e os que não,
Quase empastado e céptico
Fosse ele verme, o pobrinho, e até crustáceo!
Teria o sistema nervoso ao longo da barriga,
Táctico nas antenas de precisão, como a formiga.
Mas tem espinha dorsal e cabos de nervo de alto diâmetro,
Mas deviam ser rápidos e senhoris na opção,
Mas às vezes não são...
O meu pobre afilhado epiléptico,
Eterno aprendiz de sapateiro,
Aplicando serol a fibras de coiro para botas
E fazendo virolas
De meias solas
Rotas.
- E ganhas...? – lhe pergunto.
- Vinte paus, meu Padrinho,
« E não posso beber vinho.
« Nem um copinho,
« Meu Padrinho!»
O meu afilhado epiléptico veio ver-me,
E pensei no Pessanha:
«Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...»
Vinte paus é o que ganha
O meu afilhado epiléptico,
Com os dedos no unto.
Patético, hein?
Mas – mudemos de assunto.
Vitorino Nemésio
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quarta-feira, maio 19, 2010
Os sapos
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."
Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei" - "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- "A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quando é vário,
Canta no martelo."
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!"
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No porão profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...
Manuel Bandeira
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terça-feira, maio 18, 2010
Dor de alma
Meu pratinho de arroz doce
polvilhado de canela;
Era bom mas acabou-se
desde que a vida me trouxe
outros cuidados com ela.
Eu, infante, não sabia
as mágoas que a vida tem.
Ingenuamente sorria,
me aninhava e adormecia
no colo da minha mãe.
Soube depois que há no mundo
umas tantas criaturas
que vivem num charco imundo
arrancando arroz do fundo
de pestilentas planuras.
Um sol de arestas pastosas
cobre-os de cinza e de azebre
à flor das águas lodosas,
eclodindo em capciosas
intermitências de febre.
Já não tenho o teu engodo,
Ó mãe, nem desejo tê-lo.
Prefiro o charco e o lodo.
Quero o sofrimento todo,
Quero senti-lo, e vencê-lo.
António Gedeão
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segunda-feira, maio 17, 2010
A hora das gaivotas
Nas dunas efémeras
por onde se espraia o vento
escondem os óculos fumados
e outras inventadas protecções da cútis frágil
em trincheiras escavadas por defesa
como se a luz forte
lhes calcinasse o perfil.
Quando por fim
chega a hora das gaivotas
que se acercam cautelosas
em calculada ironia circunspecta
um riso escarninho parece persistir
na praia intensamente deserta.
Manuel Filipe in "Medusa", pág.37, Edição do Autor
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domingo, maio 16, 2010
sábado, maio 15, 2010
Nua madrugada
O leito em seu estado adormecido,
o lume que esmorece na lareira,
a cadeira no seu estado de sentada,
a laranja que definha na fruteira,
ou a dolência deste estado indefinido
de sonhar, com o passado à cabeceira...
(E enquanto morre a nua madrugada
renasce a imensa noite, à minha beira.)
Manuel Filipe in"Eis Uma Casa", pág.20, Edição do Autor
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sexta-feira, maio 14, 2010
Verão
O verão começa
quando se solta
o estrondear da cor
contida no seu bombo rutilante.
Depois,
nada detém este clamor
porque
o sol reverdece as algas
com a viva alegria que não sustém,
o vento faz-se anunciar
com breves risadas de desdém,
e por fim o mar,
em ondas suaves,
ri-se também.
Manuel Filipe in"Medusa", pág. 15, edição do Autor
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quinta-feira, maio 13, 2010
Merda e Ouro
Merda é veneno.
No entanto, não há nada
que seja mais bonito
que uma bela cagada.
Cagam ricos, cagam pobres,
cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compare
à bosta da pessoa amada.
Paulo Leminski
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quarta-feira, maio 12, 2010
Amigo
1.
Amigo, toma para ti o que quiseres,
passeia o teu olhar pelos meus recantos,
e se assim o desejas, dou-te a alma inteira,
com suas brancas avenidas e canções.
2.
Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este inútil e velho desejo de vencer.
Bebe do meu cântaro se tens sede.
Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este desejo de que todas as roseiras
me pertençam.
Amigo,
se tens fome come do meu pão.
3.
Tudo, amigo, o fiz para ti. Tudo isto
que sem olhares verás na minha casa vazia:
tudo isto que sobe pelo muros direitos
- como o meu coração - sempre buscando altura.
Sorriste - amigo. Que importa! Ninguém sabe
entregar nas mãos o que se esconde dentro,
mas eu dou-te a alma, ânfora de suaves néctares,
e toda eu ta dou... Menos aquela lembrança...
... Que na minha herdade vazia aquele amor perdido
é uma rosa branca que se abre em silêncio...
Pablo Neruda
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terça-feira, maio 11, 2010
Eu, descontraída, a fazer a barba
Eu nunca fui a S. Francisco.
Sonhei porém que um geiser
explodia numa girândola rósea-de-todas-as-cores
ao fundo de uma ladeira de S. Francisco.
Freud teria alguma palavra a dizer sobre este carnudo
assunto, mas disso sei eu mais do que ele.
Primeiro foi o som, um Buuuuuum!!! de explosão,
estava eu nessa altura muito descontraída
a fazer a barba.
Corremos os dois para a porta da barbearia.
Os carros andavam de saltos altos
em cima das lombas
trepando ofegantes
por aquela rua de barrigas empinadas.
Alguns automóveis iam gritando
como sirenes da Polícia
e outros iam pulando para a valeta
e resfolegavam uns contra os outros
ao fugirem do geiser de todas as cores,
jorrante num fundo de rua
de thriller rodado por noites betuminosas
na cidade americana de S. Francisco.
Estava eu espantada a ver tudo aquilo
no meu sonho de alto de ladeira,
à porta da barbearia onde fora
aparar barba e bigode.
Toalha branca ao pescoço,
num ambiente de vapores termais,
fitava o geiser furta-cores
a despedir luz em rajadas para cima
como bomba de lívidos neutrões.
O barbeiro, de navalha na mão, com a bata de nuvem
em carneirinhos e cúmulo-nimbos aconchegantes,
gemia: Ai! Ai!......................
Os olhos de cor melada, inodoros, derretidos em lágrimas
de chocolate cremoso.
Senti tanta atracção por ele que o abracei e disse:
Meu, para nos salvarmos,
temos de sair daqui numa rapidinha!
E ele respondeu, o gesto verde-esmeralda:
Nem tiro a bata, tenho ali o carro, vamos embora numa branca!
O calor de estufa subia pela ladeira
como salamandra aquática,
Triturus marmoratus, verbi gratia.
Sem intervalo entre vapor e suor,
uma espécie de concha a chupar entre pernas,
sufocávamos no sonho de cor morna e demasiadas palavras
gostosentas entesonadas dos vapores termais.
E assim fomos de carro ao contrário da direcção do geiser,
ele de mão na cabeça das mudanças,
a roçar para cá e para lá,
eu de toalha ao pescoço e ele de bata branca,
a navalha deixada no peitoril da janela da barbearia
para fazer ela as barbas sozinha
quando o geiser rebentasse dentro do útero da noite
a tensão partida enfim num ronronar ruivo de gato.
Maria Estela Guedes
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segunda-feira, maio 10, 2010
Eros Thanatos
1
Ó pureza apaixonadamente minha:
terra toda nas minhas mãos acesa
2
O que sei de ti foi só o vento
a passar nos mastros do verão.
3
Um corpo apenas, barco ou rosa
rumoroso de abelhas ou de espuma.
4
Entre lábios e lábios não sabia
se cantava ou nevava ou ardia.
5
Amo como as espadas brilham
no ardor indizível do dia
6
Seria a morte esta carícia
onde o desejo era só brisa?
Eugénio de Andrade
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domingo, maio 09, 2010
Quando eu morrer
Quando eu morrer
eu quero que o N'Gola Ritmos
vá tocar no meu enterro.
Como Sidney Bechet
como Armstrong
eu gostarei de saber
que vocês
tocaram no meu enterro.
Lá no céu também há "angelitos negros"
e eu gostarei de saber
que vocês
me tocaram no enterro.
Se não puder ser
deixem lá
tocarão noutro lado qualquer
com lágrimas nos olhos
como naquela noite
em casa do Araújo
lembrarão o companheiro
das noites de Luanda
das noites de boémia
das tardes de moamba.
Ah! Quando eu morrer
já sabem
quero que o meu caixão
vá no maxibombo da linha do Cemitério
quero que toquem
a Cidralha
ou convidem a marcha dos Invejados.
É assim que eu quero ir
acompanhado da vossa alegria
bebedeiras seguindo o enterro
as velhas carpideiras de panos escuros
quero um kombaritókué dos antigos
que vai ser muito falado.
Não convidem mulatas
que sempre estragam tudo
Se vierem
não lhes vou rejeitar.
Cantem apenas
alguns dos meus poemas
até enrouquecer.
Ah! quando eu morrer
eu quero o N´Gola Ritmos
tocando no meu enterro.
Ernesto Lara Filho (Angola)
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sábado, maio 08, 2010
"Sexto Sentido"
Esta demonstração - do laboratório da Pattie Maes no MIT, coordenado por Pranav Mistry - foi um destaque no TED.... É um dispositivo que se veste, com um projetor que abre caminho para uma profunda interação com o meio à sua volta.
Se houver dificuldade com o inglês, basta escolher legendas em Português logo abaixo da tela do video (subtitles).
PS:Recebido por email
PS2:Desligar o som do blog no lado direito.
sexta-feira, maio 07, 2010
Lisboa
Esta névoa sobre a cidade, o rio,
as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde comeca a luz de Lisboa,
rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.
Eugénio de Andrade
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quinta-feira, maio 06, 2010
Cabanas de Tavira
O mar faz-se caro:
precisamos de um barco
para chegar a ele
e merecê-lo
e ver
durante a viagem
a doce união da terra com a água
na outra margem:
casas baixas com seus pátios e quintais
onde se calhar se apanham conquilhas
E ao lado a avó alfarrobeira
(chamada em familia de "farrobêra")
numa cadeirinha baixa de tábua
escarapela o milho
Teresa Rita Lopes
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quarta-feira, maio 05, 2010
Diante de uma criança
Como fazer feliz meu filho?
Não há receitas para tal.
Todo o saber, todo o meu brilho
de vaidoso intelectual
vacila ante a interrogação
gravada em mim, impressa no ar.
Bola, bombons, patinação
talvez bastem para encantar?
Imprevistas, fartas mesadas,
louvores, prêmios, complacências,
milhões de coisas desejadas,
concedidas sem reticências?
Liberdade alheia a limites,
perdão de erros, sem julgamento,
e dizer-lhe que estamos quites,
conforme a lei do esquecimento?
Submeter-se à sua vontade
sem ponderar, sem discutir?
Dar-lhe tudo aquilo que há
de entontecer um grão-vizir?
E se depois de tanto mimo
que o atraia, ele se sente
pobre, sem paz e sem arrimo,
alma vazia, amargamente?
Não é feliz. Mas que fazer
para consolo desta criança?
Como em seu íntimo acender
uma fagulha de confiança?
Eis que acode meu coração
e oferece, como uma flor,
a doçura desta lição:
dar a meu filho meu amor.
Pois o amor resgata a pobreza,
vence o tédio, ilumina o dia
e instaura em nossa natureza
a imperecível alegria.
Carlos Drummond de Andrade
Imagem retirada do Google
terça-feira, maio 04, 2010
O irreconhecível (Soneto I)
Jamais poderei voltar a reconhecer o arbusto enorme que nós somos, nem as sagas tentaculares que nos rodeiam, se é que alguma vez reconheci algo para além da teia das dissemelhanças amorosas com que tento restaurar os fragmentos canibalmente vividos.
Tenho-me tornado afim de nenhum fim.
Somos afinal bípedes nos enunciados mais concisos.
Caminhamos no interior de uma baleia sabendo que esta interioridade nos protege do apocalipse que já há muito aconteceu – habituamo-nos ao strip-tease do demiurgo, ou demiurga, como a um talk-show inenarrável.
Falta-nos a antiga culpa, como um caramelo que se opõe à ordem pública. A culpa far-nos-ia mais privados e dóceis, mas não sei se mais felizes.
As desculpas não redimem para lá da relativa eficácia retórica.
A vergastada vergonha do tema...
Sinto-me tímido perante a honra.
Assim amo o tremor que me abana e me expõe ao acaso, às àcidas chuvas da tal sorte.
Irreconhecível é o amor porque é nele que o absoluto se disfarça.
A singularidade da amada não se deixa ver com uma lanterna por mais que exponha à luz do dia.
Sou o que tu és no mais íntimo. E no que tens de acessório comungo a inequivoca pluralidade que se opõe à indistinção ainda mais comum.
Beijos que se incrustam num punhal para uma meiga facada.
O pai decrépito faz aos filhos o exame dos enxames de prazer, como se não abdicasse das possibilidades que resignou de uma forma excessivamente voluntária.
Pedro Proença
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segunda-feira, maio 03, 2010
Contos pequeníssimos
Esta grandeza de não a ter
é mais pequena que a de não desejar tê-la
e se o preço de participar é grandeza
não contem comigo
não participo
não participo nem contra grandeza
nasci ar
em forma de gente
nasci luz
em forma de gente
não me compreendo
e respiro-me
e vejo-me textual
a forma de gente faz-me agir fora do que nasci ar
fora do que nasci luz
e nasci ar para forma de gente
e nasci luz para forma de gente
nasci antes de mim
antes de forma de gente
era génio antes de nascer
em forma de gente
a forma de gente não me deixa ser o génio que nasci.
Almada Negreiros
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domingo, maio 02, 2010
sábado, maio 01, 2010
(Suíte para os habitantes da noite) XIII-Ária para tenorino e flautim
o gato aparece à noite
com seu esquivo silêncio
de passos bem calculados
num jogo de paciência
as garras bem recolhidas
na concha de suas patas
O gato passeia a noite
com seu manto de togado
como se fosse um juiz
de presas resignadas
a sua sentença de sombras
seu apetite de gula
O gato varre essa noite
facho de suas vassouras
vermelhas de olhos ariscos
E alcança nessa limpeza
movimento mais presto
o guincho mais desouvido
Mais que perfeito no bote
(tal qual Mistoffelees de Eliot)
do pulo que nunca ensina
tombam baratas besouros
peixes de aquário catitas
ao paladar sibarita
Nada à noite falta ao gato:
nem a presteza no salto
nem a elegância completa
do seu traje de veludo
para o baile dos telhados
roçando as fêmeas no cio
O gato é ato em seu salto
e a noite luz do seu palco
ribalta luciferina
lunária ária da lua
na réstia de seus dois gozos
é felix feliz felino
Guardei a sétima estrofe
para o canto do mistério
das sete vidas do gato
e seu tapete aziago
nas noites de sexta-feira
há provas de seu estrago
Anibal Beça
Imagem retirada do Google
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