sexta-feira, julho 24, 2009

A lição de poesia


1.

Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2.

A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3.

A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis - naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
as águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.

João Cabral de Melo Neto

Imagem retirada do Google

3 comentários:

Paula Raposo disse...

Nem sempre é assim. Mas, gostei de ler. Beijinhos, bom fim de semana.

peciscas disse...

Olha o meu velho amigo Cabral de Mello Neto a falar de uma velha angústia do poeta : a da luta conra a folha branca.

Fatyly disse...

Não conhecia, mas todos os poetas falam dessa "angústia verdadeira" quando escrevem. Mas achei um final muito pobre sobretudo nos últimos dois versos, para mim falta algo:)

Beijocas