sexta-feira, julho 31, 2009
Queen - 'Friends Will Be Friends'
Não sei escrever, nunca tive jeito para isso.
Sou mais de falar e olhar olhos nos olhos.
Hoje aconteceu uma coisa bonita, uma prova que há momentos felizes.
Conheci finalmente, ao fim de 6 anos, a Fatyly.
Uma pessoa querida, bonita por dentro, sempre optimista, que me deu e dá muita força.
Uma Amiga com “A” grande.
É de pessoas assim que este Mundo precisa.
Não sei de facto escrever o que sinto pela Fatyly, mas sei que ela está no meu coração para sempre.
Obrigada Fatyly por existires:)
Príncipe
Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me.
Ana Hatherly
Imagem retirada do Google
quinta-feira, julho 30, 2009
Nocturno
Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava...
Era, no copo, além do gim, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.
Era no gira-discos, o Martirio
de São Sebastião, de Debussy....
Era, na jarra, de repente, um lirio!
Era a certeza de ficar sem ti.
Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança...
David Mourão-Ferreira
Imagem retirada do Google
quarta-feira, julho 29, 2009
A mulher nua
Humana fonte bela,
repuxo de delícia entre as coisas,
terna, suave água redonda,
mulher nua: um dia,
deixarei de te ver,
e terás de ficar
sem estes assombrados olhos meus,
que completavam tua beleza plena,
com a insaciável plenitude do seu olhar?
(Estios; verdes frondas,
águas entre as flores,
luas alegres sobre o corpo,
calor e amor, mulher nua!)
Limite exacto da vida,
perfeito continente,
harmonia formada, único fim,
definição real da beleza,
mulher nua: um dia,
quebrar-se-á a minha linha de homem,
terei que difundir-me
na natureza abstracta;
não serei nada para ti,
árvore universal de folhas perenes,
concreta eternidade!
Juan Ramón Jiménez, Tradução de José Bento
Foto:Oleg Kosyrew
terça-feira, julho 28, 2009
Poema da memória
Havia no meu tempo um rio chamado Tejo
que se estendia ao Sol na linha do horizonte.
Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia
exactamente um espelho
porque, do que sabia,
só um espelho com isso se parecia.
De joelhos no banco, o busto inteiriçado,
só tinha olhos para o rio distante,
os olhos do animal embalsamado
mas vivo
na vítrea fixidez dos olhos penetrantes.
Diria o rio que havia no seu tempo
um recorte quadrado, ao longe, na linha do horizonte,
onde dois grandes olhos,
grandes e ávidos, fixos e pasmados,
o fitavam sem tréguas nem cansaço.
Eram dois olhos grandes,
olhos de bicho atento
que espera apenas por amor de esperar.
E por que não galgar sobre os telhados,
os telhados vermelhos
das casas baixas com varandas verdes
e nas varandas verdes, sardinheiras?
Ai se fosse o da história que voava
com asas grandes, grandes, flutuantes,
e poisava onde bem lhe apetecia,
e espreitava pelos vidros das janelas
das casas baixas com varandas verdes!
Ai que bom seria!
Espreitar não, que é feio,
mas ir até ao longe e tocar nele,
e nele ver os seus olhos repetidos,
grandes e húmidos, vorazes e inocentes.
Como seria bom!
Descaem-se-me as pálpebras e, com isso,
(tão simples isso)
não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada.
António Gedeão
Imagem retirada do Google
segunda-feira, julho 27, 2009
Esta noite sonhei com Mário Lino
Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa.
Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o que vê:
- É sempre assim, esta auto-estrada?
- Assim, como?
- Deserta, magnífica, sem trânsito?
- É, é sempre assim.
- Todos os dias?
- Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.
- Mas, se não há trânsito, porque a fizeram?
- Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto.
- E têm mais auto-estradas destas?
- Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. É a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. – respondi, rindo-me.
- E, já agora, porque só é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões?
- Porque assim não pagam portagem.
- E porque são quase todos espanhóis?
- Vêm trazer-nos comida.
- Mas vocês não têm agricultura?
- Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável.
- Mas para os espanhóis é?
- Pelos vistos...
Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:
- Mas porque não investem antes no comboio?
- Investimos, mas não resultou.
- Não resultou, como?
- Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.
- Mas porquê?
- Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de modernidade foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos.
- E gastaram nisso uma fortuna?
- Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos...
- Estás a brincar comigo!
- Não, estou a falar a sério!
- E o que fizeram a esses incompetentes?
- Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.
- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?
- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km.
Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.
- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?
- Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o Prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.
- Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa?
- Isso mesmo.
- E como entra em Lisboa?
- Por uma nova ponte que vão fazer.
- Uma ponte ferroviária?
- E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.
- Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!
- Pois é.
- E, então?
- Então, nada. São os especialistas que decidiram assim.
Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.
- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta...
- Não, não vai ter.
- Não vai? Então, vai ser uma ruína!
- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína – aliás, já admitida pelo Governo – porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.
- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?
- Não! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!
- E vocês não despedem o Governo?
- Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo...
- Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?
- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.
- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?
- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.
- Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter?
- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.
Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:
- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?
- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa.
- Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?
- É isso mesmo. Dizem que este está saturado.
- Não me pareceu nada...
- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.
- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?
- Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido.
- E tu acreditas nisso?
- Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo?
- Um lago enorme! Extraordinário!
- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.
- Ena! Deve produzir energia para meio país!
- Praticamente zero.
- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!
- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.
- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar - ou nem isso?
- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais.
- Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada?
- Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor.
Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:
- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?
- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.
Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:
- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!
Miguel Sousa Tavares
8:00 Segunda-feira, 29 de Junho de 2009
Foto retirada do Google
domingo, julho 26, 2009
***
"O tempo é o melhor autor - sempre encontra um final perfeito."
Charles Chaplin
Imagem retirada do Google
sábado, julho 25, 2009
Never underestimate an old gal
Fabuloso!:)
Uma senhora de 87 anos a dançar Salsa com filho!:)
PS:Desligar o som no lado direito do blog.
sexta-feira, julho 24, 2009
A lição de poesia
1.
Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.
Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.
2.
A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.
Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.
Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.
3.
A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.
A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis - naturezas vivas.
E as vinte palavras recolhidas
as águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.
Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
João Cabral de Melo Neto
Imagem retirada do Google
quinta-feira, julho 23, 2009
Vovô Andrade
Ele aparecera um belo dia na casa de pensão de Dona Eugênia, acompanhado de três baús e um pequeno cofre de ferro. Pedira o aposento mais barato, e regateara o preço da comida, porque, dizia ele, estava habituado a tomar uma única refeição por dia, e parca, muito parca.
Ninguém sabia de onde vinha aquele velho, nem ele o dizia, conquanto não fosse precisamente um taciturno. Gostava de dar à língua, mas quando algum abelhudo o interrogava sobre a sua vida, ele não respondia, dando a entender apenas, por meias palavras, que passara por sérios dissabores, que tinha sofrido muito e mudara de terra para que ninguém lhe lembrasse o passado.
Sabia-se apenas que se chamava Andrade, era português, e emigrara muito criança para uma das nossas províncias onde viveu perto de sessenta anos.
Não consentia que entrassem no seu quarto que ele próprio varria e espanava, deixando-se ficar horas e horas sozinho, fechado à chave, abrindo e remexendo o cofre e os baús.
Um dos hóspedes, o Braguinha, guarda-livros de uma casa importante, afirmou ouvir no aposento do velho o tilintar de moedas de ouro.
- Aquilo é uma espécie de tio Gaspar, dos Sinos de Corneville - afirmava o dito Braguinha com uma convicção que se comunicou aos outros hóspedes.
*
Mas podia lá ser! O velho Andrade tinha a roupa no fio, o chapéu surrado, os sapatos a rir, e era com um suspiro doloroso e profundo que pagava, no fim do mês, a sua módica pensão.
*
A dona da casa, que era viúva, e tinha três filhos, três bonitos rapazes, o mais velho dos quais contava apenas treze anos, também se convenceu de que o seu novo hóspede era um avarento sórdido; intimá-lo-ia, talvez, a procurar cômodo noutra parte, se ele não se tivesse afeiçoado desde logo aos três meninos, mostrando-lhes uma simpatia fora do comum, contando-lhes histórias que os divertiam. Quem meus filhos beija minha boca adoça.
- Adoro as crianças - dizia o velho a Dona Eugênia. - Que quer? Não tenho mais ninguém sobre a terra: sou completamente só.
- Só? Pois nem um parente?...
- Nem um aderente, minha senhora! A morte levou-me quantos eu amava, e esqueceu-se de mim neste mundo de atribulações e misérias.
*
Havia um negociante, o Barbosa, sujeito de meia idade, compadre da Dona Eugênia, que a visitava miúdo e a assistia com os seus conselhos de homem prático. As más línguas diziam que esse amigo do defunto era alguma coisa mais que um simples conselheiro, porém sobre esse ponto não tenho nenhuma indicação exata, nem ele importa à minha narrativa.
A verdade é que, com a morte do marido, Dona Eugênia se achou numa situação muito precária, e foi o compadre quem lhe forneceu o capital necessário para o estabelecimento da casa de pensão, que prosperava.
Um dia em que Dona Eugênia lhe disse que a presença do misterioso velhote a aborrecia, e ela já o teria posto a andar, se ele se não mostrasse tão amigo dos rapazes, o Barbosa retorquiu:
- Pô-lo a andar? Que lembrança! Pelo contrário: conserve-o. Este hóspede foi a fortuna que lhe entrou em casa!
- A fortuna?
- A fortuna, sim! É um velho rico e avarento, que não tem herdeiros... Pô-lo fora! Que idéia! Trate-o com todo o carinho, e faça com que seus filhos o respeitem e o amem.
Naquela casa o Barbosa tinha sempre razão. Poucos dias depois, Dona Eugênia oferecia ao velho Andrade, pelo mesmo preço, um aposento maior, mais espaçoso, mais arejado, com boa mobília, colchão de arame e duas janelas dizendo para o jardim.
Fez mais: obrigou-o, com bons modos, a tomar duas refeições por dia, como os demais hóspedes, e pela manhã mandava-lhe chocolate ou café com leite e biscoitos.
O velho derramava lágrimas de reconhecimento, admirando-se, dizia ele, de tanta bondade para com um pobre diabo inútil, que não tinha onde cair morto.
Dona Eugênia conseguiu, com a habilidade de um diplomata, saber o dia em que fazia anos o velho, e nesse dia o pobre homem foi presenteado pelos menos com roupa e calçado. Agora não lhe faltava nada.
O Braguinha, vendo que o velho simpatizava com ele, e na esperança de ser contemplado por sua morte, começou também a mimoseá-lo com guloseimas, charutos finos, livros interessantes, jornais ilustrados, etc.
Entretanto, o velho não modificou os seus hábitos de solidão. Ninguém lhe entrava no quarto onde continuava diariamente, durante horas e horas - a abrir e fechar o cofre e os baús.
Um dia, quando ele ia pagar a Dona Eugênia a sua pensão, esta disse-lhe:
- Não se ofenda com ~ que lhe vou pedir: guarde o seu dinheiro; não tem que pagar coisa alguma; a sua mensalidade não me faz ficar mais rica nem mais pobre; quero que o senhor seja considerado nesta casa como pessoa da família.
*
A situação durou assim muito tempo. O velho Andrade passava uma vida de lorde, tratado a vela de libra.
Agora manifestava desejos, apetecia coisas, e bastava a mais leve insinuação para ser logo presenteado tanto pela viúva como pelo Braguinha.
Este foi afastado a conselho do prudente Barbosa. Era um concorrente perigoso. Tantas 'fizeram que o guarda-livros foi obrigado a mudar-se, não deixando, contudo, de visitar o velho todas as vezes que o podia fazer, porque a viúva seqüestrava o seu precioso hóspede.
*
Já estava o Andrade havia dois anos na casa de pensão, quando uma noite, achando-se a sós com Dona Eugênia, disse-lhe:
- Quero fazer-lhe urna comunicação, minha santa protetora. Estou velho ~ posso morrer de um momento para outro...
- Não diga isso; o senhor tem para dar e levar!
- Há lá no meu quarto um cofre de ferro cuja chave está sempre comigo. Esse cofre é um absurdo, uma fantasia, porque nada tenho senão quatro patacas e umas bugigangas sem valor. Pois bem; previno-a de que lá dentro está o meu testamento... - O seu testamento! dirá a senhora; mas você não tem o que deixar! - Pois tenho. sim, senhora - tendo naqueles baús muitos objetos, de nenhum valor, é verdade, mas que, se eu fechasse os olhos sem ter feito as minhas disposições testamentárias, seriam arrecadados pelo consulado português e vendidos em hasta pública. É isso que desejo evitar, dando destino ao que é meu.
Essa revelação fez com que redobrassem os carinhos que cercavam o velho. Levavam-no aos teatros, às festas, aos passeios; enchiam-no de marmeladas e vinhos finos. Os meninos habituaram-se a chamar-lhe "vovô Andrade".
E o hóspede tornou-se caro. Só não lhe davam médico e botica, porque tinha uma saúde de ferro, e nunca precisou disso.
E sempre a mesma reserva, sempre o mesmo mistério sobre o seu passado; não havia meio de lhe arrancar uma confidência!
*
Dona Eugênia começou a impacientar-se:
- Este velho é capaz de nos enterrar a todos!
- Tenha paciência; ature-o, que há-de receber capital e juros acumulados - dizia o Barbosa. - Naquela idade o homenzinho não pode ir muito longe.
E não foi.
Justamente no dia em que se completavam cinco anos que era hóspede da casa de pensão, vovô Andrade caiu fulminado por uma apoplexia. Para festejar o quinto aniversário das suas relações, Dona Eugênia obsequiara-o com um opíparo jantar, abundantemente regado e ele comeu e bebeu demais.
Os meninos que já estavam crescidos (o mais velho ia fazer dezoito anos) choraram sinceramente. A viúva, insofrida, quis abrir logo o cofre, e tê-lo-ia feito se o discreto Barbosa lho não obstasse.
- Não mexa em cousa alguma. Vou chamar quem de direito.
Veio a autoridade consular, que abriu o cofre. Este continha, efetivamente, um invólucro subscritado com estas palavras: "Meu testamento", e cerca de trezentos mil réis em notas do Tesouro e moedas de prata e ouro, as tais que tilintavam aos ouvidos do Braguinha.
Dois baús estavam cheios de ferros velhos, trapos, coisas inúteis, e o outro continha objetos que representavam algum valor: a roupa e os demais presentes com que o vovô Andrade tinha sido durante cinco anos obsequiado na casa de pensão.
O testamento dizia:
"Achando-me septuagenário e reduzido à miséria, sem um parente, sem um amigo, depois de uma vida inteira de trabalhos e infortúnios, tinha que optar entre a mendicidade e o suicídio.
Não optei por uma nem por outra coisa: mudei de terra, fingi-me rico e avarento, bastante para isso dois velhos baús e um cofre de ferro, último vestígio de melhores tempos.
Graças a esse ardil, encontrei tudo quanto me faltava, e mais alguma coisa.
Uns dirão que fui tratante; dirão outros que fui filósofo. Para mim é o mesmo.
Dentro do cofre encontrarão a quantia necessária para o meu enterro".
*
Quem se lavou em água de rosas foi o Braguinha.
Artur Azevedo
Imagem retirada do Google
quarta-feira, julho 22, 2009
Viver na Beira-Mar
Nunca o mar foi tão ávido
quanto a minha boca. Era eu
quem o bebia. Quando o mar
no horizonte desaparecia e a areia férvida
não tinha fim sob as passadas,
e o caos se harmonizava enfim
com a ordem, eu
havia convulsamente
e tão serena bebido o mar.
Fiama Hasse Pais Brandão
Foto retirada do Google
terça-feira, julho 21, 2009
Não é para contar uma estória que tu escreves
Não é para contar uma estória que tu escreves
e eu pinto
nem para nos apontarem a dedo que limamos
o bico aos pregos no avesso do mundo, nem a terra
é o centro deste. O universo não usa
adereços de cena
nem liga a espelhos. Tem mais que fazer
que nos copiar e tão-pouco ao fado pois ele é
velho, não tem dentes, e tresanda
ao ranço de uma açorda
salgada e sem coentros.
Júlio Pomar
Imagem retirada do Google
segunda-feira, julho 20, 2009
A inegualável
Ai, como eu te queria toda de violetas
E flébil de setim...
Teus dedos longos, de marfim,
Que os sombreassem joias pretas...
E tão febril e delicada
Que não podesses dar um passo -
Sonhando estrelas, transtornada,
Com estampas de côr no regaço...
Queria-te nua e friorenta,
Aconchegando-te em zibelinas -
Sonolenta,
Ruiva de éteres e morfinas...
Ah! que as tuas nostalgias fôssem guisos de prata -
Teus frenesis, lantejoulas;
E os ócios em que estiolas,
Luar que se desbarata...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Teus beijos, queria-os de tule,
Transparecendo carmim -
Os teus espasmos, de sêda...
- Água fria e clara numa noite azul,
Água, devia ser o teu amor por mim...
Mário de Sá-Carneiro
Imagem retirada do Google
domingo, julho 19, 2009
Inspired Bicycles - Danny MacAskill April 2009
Espantoso! Do melhor que tenho visto!:)
PS:Desligar o som do blog no lado direito.
sábado, julho 18, 2009
Haiku XLVI
Podem não ser pão
- a papoila a espiga o malmequer -
mas alegram os teus olhos.
Manuel Filipe, in "O Sol nos Olhos", pág.21, Apenas Livros
Imagem retirada do Google
sexta-feira, julho 17, 2009
***
"Cigarros são a forma perfeita de prazer: elegantes e insatisfatórios."
Oscar Wilde
Imagem retirada do Google
quinta-feira, julho 16, 2009
Amor
A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.
Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.
É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.
E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.
Miguel Torga
Foto:George Portz
quarta-feira, julho 15, 2009
Se um dia...
Se um dia me sentar
Num tamborete
Numa almofada
Num tapete
O corpo sobre a terra quente
Vermelha
Sem telha que me cubra
Nada mais que a lua
Enorme
Uma lua fugindo para sul
E eu
A dormir um sono
Na terra ainda quente do sol-posto
A lua derramando odores
E eu
Enrolada em tecidos cor da fruta
Doce
Sumo a escorrer-me pelos braços
Peganhento
A deslizar-me pelos seios
Pelo ventre
Se eu um dia me sentar
Como descrevo
Posso deixar-me ir
E deixar dito que
Morri no paraíso
Maria de Fátima
Imagem retirada do Google
terça-feira, julho 14, 2009
Árvores
São plátanos palmeiras castanheiros
jacarandás amendoeiras e até as
oliveiras que
quando a noite cai na infância formam uma
cortina escura na estrada frente à casa
árvores apagando os dias que a memória
avidamente esconde
no corpo do seu gémeo Penetra inutilmente
na terra essa raiz do branco plátano
adolescente
e o campo do tempo onde as palmeiras eram
pilares do corpo nu símbolo de
si mesmo, à luz
do dia fixo, já se estende
na húmida manhã dos castanheiros
Esquecimento que tudo enfim possuis
e geras
a ofuscante luz igual à da
memória, do tempo como ela
filho, construtor da ausência,
em vão te invoco Tu
que mudas a roxa amendoeira
em brancas flores do jacarandá
entrega a minha vida às árvores
que foram na manhã e no crepúsculo
no meio-dia e na noite, palavra
clara que traz o dia em si fechado
Gastão Cruz
Foto retirada do Google
segunda-feira, julho 13, 2009
***
"Como as plantas a amizade não deve ser muito nem pouco regada."
Carlos Drummond de Andrade
Imagem retirada do Google
domingo, julho 12, 2009
Saudade
Pairam ascendentes seduções
Nas formas cor de purpura
Da mística brisa distante.
Suaves recordações
Invisíveis fontes puras
Acordam na memória viajante.
Saudade,
Aquele calor sensível
Que se esconde no forro íntimo do sentimento
Aquela onda suave
Que refresca os horizontes da verdade
Aquele arrepio simples
Que se estende pelos sentidos da memória
Aquela fita silenciosa
Que se projecta no interior do peito
Aquele ardor nostálgico
Que se instala na serenidade do horizonte
Aquele murmúrio terno
Que ilumina a canção do olhar
Aquela seiva melancólica
Que alimenta os rios intermináveis do corpo
Há muito que não vejo
Aquele olhar radiante
Sorvendo a sensualidade do ar.
Jorge Viegas
Imagem retirada do Google
sábado, julho 11, 2009
Rosas não falam
Apesar de testemunhar
as histórias tantas que povoam o mundo
as rosas guardam nossos segredos
como se fossem delas mesmo.
Mas não é por acaso que isso acontece
todas as rosas, um dia foram mulheres.
Diz a lenda que era o mais belo povoado
quem nele chegava, dificilmente saía.
Ali viviam, em completa harmonia
as mais belas mulheres, cúmplices
daquela natureza em magia:
ninguém era escolhido ou escolhia.
Até que um dia, a morena de encantos mil
sentiu pela primeira vez no coração, o vazio
de perder seu homem, seu parceiro tão amado
não soube perdoar e fugiu.
Revolveu céus e terras para contar a sua dor
perdeu a paz e tirou a paz do seu amor
espalhando no mundo, antes tão sereno
o ciúme que exalava, tão cruel veneno.
Os deuses empertigados, todos apavorados
criaram a lei, a mais cruel talvez
de transformar todas as mulheres em rosas
que perfumam, encantam, inebriam...
Mas cumprem com rigor a lei do senhorio
que cobriu de silêncio toda a antiga harmonia
com o decreto irrevogável que dizia:
- Rosas não falam...
Tere Penhabe
Foto:Eli
sexta-feira, julho 10, 2009
Quanto mais amada mais desisto
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
Natália Correia
Foto retirada vdo Google
quinta-feira, julho 09, 2009
Os índios da meia praia-Dulce Pontes & Júlio Pereira
Aldeia da Meia Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga
Da melhor que sei e faço
De Montegordo vieram
Alguns por seu próprio pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha à ré
Quando os teus olhos tropeçam
No voo de uma gaivota
Em vez de peixe vê peças de oiro
Caindo na lota
Quem aqui vier morar
Nao traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana
Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te nudo
Chupam-te até ao tutano
Levam-te o couro cabeludo
Quem dera que a gente tenha
De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De esganar a burguesia
Adeus disse a Montegordo
Nada o prende ao mal passado
Mas nada o prende ao presente
Se só ele é o enganado
Oito mil horas contadas
Laboraram a preceito
Até que veio o primeiro
Documento autenticado
Eram mulheres e crianças
Cada um com o seu tijolo
Isto aqui era uma orquestra
quem diz o contrário é tolo
E se a má língua não cessa
Eu daqui vivo não saia
Pois nada apaga a nobreza
Dos índios da Meia-Praia
Foi sempre tua figura
Tubarão de mil aparas
Deixas tudo à dependura
Quando na presa reparas
Das eleições acabadas
Do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas
Mas não por vontade própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua história
E o povo saiu à rua
Mandadores de alta finança
Fazem tudo andar para trás
Dizem que o mundo só anda
Tendo à frente um capataz
Eram mulheres e crianças
Cada um com o seu tijolo
Isto aqui era uma orquestra
Que diz o contrário é tolo
E toca de papelada
No vaivém dos ministérios
Mas hão-de fugir aos berros
Inda a banda vai na estrada
Autor:Zeca Afonso
Fabulosa interpretação:Dulce Pontes
PS:Desligar o som do blog no lado direito
quarta-feira, julho 08, 2009
X e W
O Xisto era o carioca mais feio que ainda se viu.
Não tinha defeitos físicos, não o deformavam aleijões nem protuberâncias: era naturalmente feio, de uma fealdade legítima, resultante do conjunto infeliz de todas as partes do corpo, e não de quaisquer incidentes ou particularidades.
Tinha os olhos esbugalhados, o nariz chato, o cabelo espeta-goiaba, a boca rasgada quase até as orelhas, que eram enormes.
Quando abria as mandíbulas para falar, mostrava as gengivas em que se incrustavam alguns fragmentos negros da dentadura de outrora.
Vestia-se mal. Não havia roupa que lhe assentasse, - e não andava sem bambolear ridiculamente os quadris desengonçados.
As mulheres bonitas fugiam dele como o diabo da cruz, e era isto o que mais o desconsolava. As feias, levadas não pelo amor mas por uma espécie de solidariedade, não o repeliam; mas o pobre Xisto não as podia aturar. Era feio, muito feio, mas tinha o sentimento do belo, e sonhava com mulheres divinas, excepcionalmente formosas.
* * *
Defronte da casa dele morava uma viúva de trinta anos, lindíssima, de quem se dizia mal. Havia na vizinhança quem afirmasse que ela sofria da mesma doença de Messalina e Catarina II; mas isso bem podia ser calúnia.
Xisto, coitado, adorava em silêncio a encantadora vizinha, sem que tão desairosa reputação fizesse mossa nos seus sentimentos. Não podia vê-la à janela sem frêmitos de amor; considerava-se, porém, como Ruy Blas, insignificante minhoca apaixonada por uma estrela, e não ousava dizer nem a si próprio que a amava.
* * *
Imagine-se que sensação, que sobressalto, quando certa manhã, chegando à janela, e olhando para a viúva, o Xisto foi recebido com um sorriso inefável.
Ele sorriu também, contraindo os lábios para não mostrar os dentes e as gengivas, e este esforço muscular produziu uma careta medonha.
A viúva não se mostrou horrorizada. Retirou-se da janela, e, colocando-se no meio da sala, de modo que não pudesse ser vista senão pelo vizinho, mostrou-lhe um papel que tinha na mão.
Ele estupefato, saiu também da janela, e bateu no peito, perguntando, por mímica, se era para si aquele bilhete. A viúva respondeu afirmativamente, e, voltando para a janela, fez do papel uma bola, e atirou-a à rua, tendo o cuidado de, com um volver d'olhos, recomendar ao Xisto que a apanhasse.
O moço desceu à rua, olhou para todos os lados, e verificando que ninguém o via, apanhou a bola, voltou para casa, e leu sofregamente o seguinte:
"Hoje, à meia-noite, espero-o em minha casa. A porta estará apenas encostada. Tenha a maior cautela para que ninguém o veja entrar."
O que durante esse dia se passou na alma e no cérebro do Xisto, daria para um longo capítulo de romance.
O pobre diabo perdia-se em suposições e conjecturas, sem acreditar que se tratasse de uma aventura amorosa. Entretanto, barbeou-se, aparou o cabelo, meteu-se num banho perfumado, vestiu roupa nova, e esperou, febricitante, a meia-noite, contando os minutos, que lhe pareciam séculos.
* * *
Quando, à primeira badalada da meia-noite, ele empurrou a porta e entrou no corredor da viúva, esta, que o esperava, disse-lhe à meia voz:
- Entre para o meu quarto.. - devagarinho para não despertar os criados...
Pie obedeceu trêmulo e ofegante.
- Disseram-me ontem que o senhor chama-se Xisto; é verdade?
- Sim, senhora.
- Escreve o seu nome com X?
- Naturalmente.
- Bom.
* * *
Na manhã seguinte, o Xisto abriu a janela na esperança de ver a sua amante, mas nem nesse dia, nem nos imediatos lhe pôs a vista em cima.
Afinal, depois de uma semana inteira, conseguiu vê-la; mas a viúva olhou para ele com indiferença, como se o não conhecesse; nem sequer o cumprimentou.
O mísero ficou magoado, e muito convencido de que, sem saber como, susceptibilizara a viúva; entretanto, não teve anseios nem saudades, porque da singular entrevista lhe ficara uma impressão muito desagradável, e a vizinha perdera consideravelmente na sua estima. Ele tinha estado, não com uma mulher, mas com um autômato, uma boneca mecânica, tão fria, tão inconsciente lhe parecera.
A visível repugnância com que ela se esquivara a um beijo na despedida e a insistência com que lhe pedira se fosse embora, depois de uma entrevista que não durara mais de quinze minutos, abateram cinqüenta por cento do seu entusiasmo.
E nunca mais o Xisto se encontrou a sós com aquela mulher, aquela esfinge, que fora sua, absolutamente sua durante um quarto de hora!
* * *
Um ano depois, ele teve a explicação de tudo, e quem lha deu foi o Wladimir, seu amigo intimo e colega de repartição, que lhe contou o seguinte:
"Achando-me num bonde de Botafogo, sentado junto a uma senhora desconhecida, esta, ouvindo pronunciar o meu nome por um amigo que se apeara, imediatamente me perguntou:
- O senhor chama-se Wladimir?
- Sim, senhora.
- Escreve o seu nome com W?
- Sim.
- É um bonito nome!
- Acha?
- Diz muito bem com a pessoa.
- Favores seus.
- É solteiro?
- Sim, senhora.
- Aceita uma chávena de chá em nossa casa?
- Com mil vontades.
- Nesse caso, espero-o hoje à meia-noite.
E disse-me onde morava.
Vi então que se tratava do teu autômato.
Fiz-lhe ver que a meia-noite era uma hora muito esquisita para tomar chá em casa de uma senhora, ao que ela respondeu com um delicioso sorriso:
- Pois tomará outra coisa.
Fui pontual.
Reproduziu-se a mesma cena que se passou contigo, tal qual ma contaste. Mas diante do seu automatismo não tive a tua passividade: revoltei-me, fingi-me deveras zangado, e ameacei-a com um escândalo inaudito, àquela hora, se me não explicasse a razão por que te dera a ti uma entrevista, e outra a mim, sem nos amar, sem sequer nos conhecer. A explicação foi difícil, mas arranquei-lha!
- E então? perguntou o Xisto, mostrando as gengivas. Que te disse aquela cínica?
- Não é cínica, é doida.
- Deveras?
- Sim, é um caso patológico. Imagina que ela organizou um índice alfabético de todos os seus amantes, e estava aflita porque lhe faltavam o X e o W. O X foste tu; o W fui eu!
- Ora esta!
- Ainda lhe faltam o K e o Y, mas creio que não os arranjará, a menos que recorra ao estrangeiro.
- Só assim poderia eu, com a cara que tenho..
- Ela encontrou em ti o X que procurava. Se fosses um monstro, seria a mesma coisa. Vê tu aonde pode conduzir a mania de colecionar!
Artur Azevedo
Imagem retirada do Google
terça-feira, julho 07, 2009
segunda-feira, julho 06, 2009
***
Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prémio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem de minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do Zodíaco.
Gabriel García Márquez,(Memórias de Minhas Putas Tristes - Pg. 74),visto aqui
Imagem retirada do Google
domingo, julho 05, 2009
7IM
1. Muitos amores começam pelo fim.
O meu começou pelo e-mail...
2. Aquele teria sido o sono mais longo de sua vida... não tivesse acordado dentro de um caixão a sete palmos da terra!
3. Todas as noites, antes de dormir, dava corda ao despertador.
Uma noite esqueceu-se do hábito.
Nunca mais acordou.
4. Só vivia para acumular dinheiro. De fato, um grande porco capitalista!
Seu fim, porém, foi triste.
Por conta de suas moedas, reduziram-no a cacos.
5. Atingira o fundo do poço. Desde então recusa as mãos estendidas em seu socorro.
O medo de uma nova queda lhe suplanta a vontade de se levantar.
6. Do medo do fogo, nasceu sua atração pela água; do desprezo pela vida, o interesse pela morte. Atração e interesse que explicam perfeitamente seu afogamento suicida.
7. O lugar era ermo; o buraco, fundo e escorregadio.
Sobrevivera à queda, mas era certo que ali morreria.
“Ao menos, não será de fome”, consolou-se, depois de constatar a companhia dos ratos.
Wilson Gorj, visto na Minguante
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sábado, julho 04, 2009
Amo-te como um planeta em rotação difusa
Amo-te como um planeta em rotação difusa
E quero parar como o servo colado ao chão.
Frágil cerâmica de poros soprados no teu hálito
Vasilha que ergues em tua mão de oleiro
Cálice que não pudeste afastar de ti.
Daniel Faria
Foto retirada do Google
sexta-feira, julho 03, 2009
Poema da buganvília
Algum dia o poema será a buganvília
pendente deste muro da Calçada da Graça.
Produz uma semente que faz esquecer os jornais, o emprego e a família,
e além disso tudo atapeta o passeio alegrando quem passa.
Mas antes desse dia há-de secar a buganvília
e o varredor há-de levar as flores secas para o monturo.
Depois cairá o muro.
E como o tempo passa
mesmo contra a vontade,
também há-de acabar a Calçada da Graça
e o resto da cidade.
Então, quando nada restar, nem o pó de um sorriso
que é o mais leve de tudo que se pode supor,
será esse o momento de o poema ser flor,
mas já não é preciso.
António Gedeão
Imagem retirada do Google
quinta-feira, julho 02, 2009
A felicidade
Aquele que abraça uma mulher é Adão. A mulher é Eva.
Tudo acontece pela primeira vez.
Vi uma coisa branca no céu. Dizem-me que é a lua, mas que posso eu fazer com
uma palavra e uma mitologia.
As árvores metem-me um pouco de medo. São tão belas.
Os tranquilos animais aproximam-se para que eu lhes diga o seu nome.
Os livros da biblioteca não têm letras. Quando os abro irrompem.
Ao folhear o atlas projecto a forma de Samatra.
Aquele que acende um fósforo no escuro está a inventar o fogo.
No espelho há um outro que espreita.
Aquele que olha o mar vê Inglaterra.
Aquele que profere um verso de Liliencron já entrou na batalha.
Sonhei Cartago e as legiões que devastaram Cartago.
Sonhei a espada e a balança.
Louvado seja o amor em que não há possuidor nem possuída, mas em que ambos
se entregam.
Louvado seja o pesadelo, que nos revela que podemos criar o inferno.
Aquele que desce um rio desce o Ganges.
Aquele que contempla uma ampulheta vê a dissolução de um império.
Aquele que brinca com um punhal pressagia a morte de César.
Aquele que dorme é todos os homens.
No deserto vi a jovem Esfinge, que acabam de construir.
Não há nada tão antigo sob o sol.
Tudo acontece pela primeira vez, mas de maneira eterna.
Aquele que lê as minhas palavras está a inventá las.
Jorge Luís Borges, visto no Palavras D'Ouro
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quarta-feira, julho 01, 2009
Haiku LXXXV
Nevoeiro na praia-
lento expirar da espuma
de navios invisíveis.
Manuel Filipe, in"O Sol nos Olhos", pág.36, Apenas Livros Lda
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