sábado, novembro 13, 2004

Álcool




GUILHOTINAS, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas de auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo -
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo p'ra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de oiro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?

Nem ópio nem morfína. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante -
Manhã tão forte que me anoiteceu.


Mário de Sá-Carneiro

Foto:Rui Vale de Sousa

1 comentário:

lique disse...

O extrordinário poeta e o homem de tão trágico destino! Beijinhos, amiga.