segunda-feira, agosto 31, 2009
A força do hálito
A força do hálito é como o que tem que ser.
E o que tem que ser tem muita força.
Vai (ou vem) um sujeito, abre a boca e eis que a gente,
que no fundo é sempre a mesma,
desmonta a tenda e vai halitar-se para outro lado,
que no fundo é sempre o mesmo.
Sovacos pompeando vinagres e bafios,
não são nada --bah...-- em comparação
com certos hálitos que até parece que sobem do coração.
"Ai onde transpira agora
o bom sovaco de outrora!"
Virilhas colaborando com parentesis ou cedilhas
são autênticas (e sem hálito) maravirilhas.
Quando muito alguns pingos nos refegos, nas braguilhas,
amoniacal bafor que suporta sem dor
aquele que está ao rés de tal teor.
Mas o mau hálito é pior que a palavra
sobretudo se não for da tua lavra.
Da malvada, da cárie ou, meudeus, do infinito,
o mau hálito é sempre, na narina,
como o baudelaireano, desesperado grito
da "charogne" que apodrecer não queria.
Alexandre O'Neill
Cartoon retirado do Google
domingo, agosto 30, 2009
O pequeno sismo
Há um pequeno sismo em qualquer parte
ao dizeres o meu nome.
Elevas-me à altura da tua boca
lentamente
para não me desfolhares.
Tremo como se tivera
quinze anos e toda a terra
fosse leve.
Ó indizível primavera.
Eugénio de Andrade
Imagem retirada do Google
sábado, agosto 29, 2009
Canto Esponjoso
Bela
esta manhã sem carência de mito,
E mel sorvido sem blasfémia.
Bela
esta manhã ou outra possível,
esta vida ou outra invenção,
sem, na sombra, fantasmas.
Humidade de areia adere ao pé.
Engulo o mar, que me engole.
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz
azul completa
sobre formas constituídas.
Bela
a passagem do corpo, sua fusão
no corpo geral do mundo.
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.
Carlos Drummond de Andrade
Foto retirada do Google
sexta-feira, agosto 28, 2009
Libertação
Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.
Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.
Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.
Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.
Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Longe daqui, onde queiras,
a vida será maior.
Nem as esperanças do céu
me conseguem demover
Este amor é teu e meu:
só na terra o queremos ter.
David Mourão-Ferreira
Imagem retirada do Google
quarta-feira, agosto 26, 2009
A rosa
Estou aqui estou aqui não pretendi fugir nunca
o meu peito é sólido
o meu nome é sólido
o meu céu é sólido
o meu ar é sólido
as minhas dúvidas são sólidas
Acabei de jantar no Restaurante Chinês e olhei para as minhas mãos
estão inquietas como ontem
tremem como ontem
e ontem foi tudo
inquieto e trémulo como as minhas mãos
Não há nenhuma flor que resista à beleza da poesia de Paul Éluard
não é meu filho? repetia aquela mãe que eu nunca tive
e eu afirmava afirmava sempre
que nada neste mundo tem a força de uma rosa
oh a minha mãe era bela
todas as mães são belas
e eu só posso chamar-lhes meu amor
Quando a minha mãe morreu a cidade não tinha sombras
em Abril tinha recomeçado tudo
até as próprias sombras
e eu vesti-me de branco para dar o último beijo a minha mãe
no dia em que me senti pela primeira vez um homem
porque ao ficar de novo órfão
disse: É preciso ler Paul Éluard! e não
lhe dei simplesmente a minha rosa.
Joaquim Pessoa, visto no Palavras D'Ouro.
Foto retirada do Google
terça-feira, agosto 25, 2009
Beijo
Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.
Jorge de Sena
Imagem retirada do Google
segunda-feira, agosto 24, 2009
Poema do alegre desespero
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,
ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.
Compreende-se.
E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,
e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.
Compreende-se.
Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.
Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.
E o nosso sofrimento para que serviu afinal?
António Gedeão
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domingo, agosto 23, 2009
Lírica XVII
Amada amada
porque suplicaste
que eu lançasse o meu esperma
contra o negro capim?
Avisaste-me é certo
que apenas te poderias dar
quando a lua furtiva se ocultasse
atrás das montanhas
Mas por um instante
imaginei loucamente
que fosse um acesso de romantismo.
João Melo
Foto retirada do Google
sábado, agosto 22, 2009
Nunca o verão se demorara
Nunca o Verão se demorara
assim nos lábios
e na água
- como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?
Eugénio de Andrade
Foto retirada do Google
sexta-feira, agosto 21, 2009
Poema do Silêncio
Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.
Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.
Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!
Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...
O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.
Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!
Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.
Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!
Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.
Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!
Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.
Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...
Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...
Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.
José Régio
Imagem retirada do Google
quinta-feira, agosto 20, 2009
A valsa
Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas...
- Eu vi!...
Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!
Quem dera
Que sintas
As dores
De arnores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas,..
- Eu vi!...
Calado,
Sozinho
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!
Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues
Não mintas...
- Eu vi!
Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas...
Eu vi!
Casimiro de Abreu
Imagem retirada do Google
quarta-feira, agosto 19, 2009
Sol no Muceque
Redonda lâmpada acesa
a amarela luz alastrando-se
por sobre o zinco das cubatas
Os fartos cabelos
das mulembeiras
raparigas cartando água
no chafariz
Meninos de barriga inchada
brincando com bola ou
tampas de garrafa.
João Melo
Pintura:Neves e Sousa
terça-feira, agosto 18, 2009
Tentei fugir da mancha mais escura
Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.
David Mourão-Ferreira
Imagem retirada do Google
segunda-feira, agosto 17, 2009
Tão grande dor
Palavras de um timorense à RTP
Timor fragilíssimo e distante
Do povo e da guerrilha
Evanescente nas brumas da montanha
Cantos danças ritos
E a pureza dos gestos ancestrais
Em frente ao pasmo atento das crianças
Assim contava o poeta Rui Cinatti
Sentado no chão
Naquela noite em que voltara da viagem
Timor
Dever que não foi cumprido e que por isso dói
Depois vieram notícias desgarradas
Raras e confusas
Violências mortes crueldade
E anos após ano
Ia crescendo sempre a atrocidade
E dia a dia --- espanto prodígio assombro ---
Cresceu a valentia
Do povo e da guerrilha
Evanescente nas brumas da montanha
Timor cercado por um bruto silêncio
Mais pesado e mais espesso do que o muro
De Berlim que foi sempre falado
Porque não era um muro mas um cerco
Que por segundo cerco era cercado
O cerco da surdez dos consumistas
Tão cheios de jornais e de notícias
Mas como se fosse o milagre pedido
Pelo rio da prece ao som das balas
As imagens do massacre foram salvas
As imagens romperam os cercos do silêncio
Irromperam nos écrans e os surdos viram
A evidência nua das imagens.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Foto retirada do Google
domingo, agosto 16, 2009
Ninguém meu amor
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.
Sebastião Alba
Imagem retirada do Google
sábado, agosto 15, 2009
sexta-feira, agosto 14, 2009
Necrológio dos desiludidos do amor
Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.
Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou no turvo inferno.
Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...
Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados completamente
(paixões de primeira e de segunda classe).
Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.
Carlos Drummond Andrade
Imagem Retirada do Google
quinta-feira, agosto 13, 2009
Quissico
1. Deixei o sol
na praia de Quissico
De bruços
sobre o Verão
eu deixei o Sol
na extensão do tempo
Molhando, quase líquido,
o dia afundava
nas fundas águas do Índico
A terra
se via estar nua
lembrando, distante,
seu parto de carne e lua
2. Não o pássaro: era o céu
que voava
O ombro da terra
amparava o dia
A luz
tombava ferida
pingando
como um pulso suicida
em minhas ocultas asas.
Mia Couto
Imagem retirada do Google
quarta-feira, agosto 12, 2009
Estrada
Luanda Dondo vão,
cento e tal quilômetros
mangas e cajus
marcos brancos
meninos nus
Branco algodão
crescendo
corpos negros
na cacimba
O Lucala corre
confiante
indiferente à ponte que ignora
Verdes matas
Sangram vermelhas acácias
imbondeiros festejam
o minuto da flor anual
Na estrada
o rebanho alinha
pelo verde
verde capim
Adivinhados
caqui lacraus
de capacete giz
Meninos
se embalam
em mães velhas
de varizes:
Rios azuis
da longa estrada
E é Fevereiro
sardões ao sol
Cassoalala
Eia Mucoso
tão vazio outrora
tão cheio agora
Adivinhados
permanecem
lacraus caqui
capacetes giz
Não param as colheitas
Que razão seriam
fevereiro
acácias sangrando vermelho
verdes sisais
cantando o parto
da única flor?
Não param as colheitas!
Luandino Vieira
Foto retirada do Google
terça-feira, agosto 11, 2009
Tarde a pino
Um céu aberto
em que brilha uma enorme bola
pintada de amarelo
e donde caem
pequenos pássaros
de limpos tons quentes
que sonoros vão poisar
nas várias mulembas que
uma qualquer
mão certeira
estrategicamente aqui colocou
neste amplo terreiro.
João Melo
Imagem retirada do Google
segunda-feira, agosto 10, 2009
As belas meninas pardas
As belas meninas pardas
são belas como as demais.
Iguais por serem meninas,
pardas por serem iguais.
Olham com olhos no chão.
Falam com falas macias.
Não são alegres nem tristes.
São apenas como são
todos dos dias.
E as belas meninas pardas,
estudam muito, muitos anos.
Só estudam muito. Mais nada.
Que o resto, traz desenganos.
Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.
Nos passeios de domingo,
andam sempre bem trajadas.
Direitinhas. Aprumadas.
Não conhecem o sabor que tem uma gargalhada
(Parece mal rir na rua!...)
E nunca viram a lua,
debruçada sobre o rio,
às duas da madrugada.
Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.
E desejam, sobretudo, um casamento decente...
O mais, são histórias perdidas...
Pois que importam outras vidas?...
outras raças?... , outros mundo?...
que importam outras meninas,
felizes, ou desgraçadas?!...
As belas meninas pardas,
dão boas mães de família,
e merecem ser estimadas...
Alda Lara
Foto retirada do Google
domingo, agosto 09, 2009
We Will Survive: Igudesman & Joo + Kremer & Kremerata
Fantástico!:)
PS:Desligar o som do blog no lado direito.
sábado, agosto 08, 2009
Com fúria e raiva
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
Sophia de Mello Breyner Andresen
Foto retirada do Google
sexta-feira, agosto 07, 2009
Um capricho
Em Mar de Espanha havia um velho fazendeiro, viuvo que tinha uma filha muito tola, muito mal-educada, e, sobretudo. muito caprichosa. Chamava-se Zulmira.
Um bom rapaz, que era empregado no comércio da localidade, achava-a bonita, e como estivesse apaixonado por ela, não lhe descobria o menor defeito.
Perguntou-lhe uma vez se consentia que ele fosse pedi-la ao pai.
A moça exigiu dois dias para refletir.
Vencido o prazo, respondeu:
- Consinto, sob uma pequena condição.
- Qual?
- Que o seu nome seja impresso.
- Como?
- É um capricho.
- Ah!
- Enquanto não vir o seu nome em letra redonda, não quero que me peça.
- Mas isso é a coisa mais fácil...
- Não tanto como supõe. Note que não se trata da assinatura, mas do seu nome. É preciso que não seja coisa sua.
Epidauro, que assim se chamava o namorado, parecia ter compreendido. Zulmira acrescentou:
- Arranje-se!
E repetiu:
- É um capricho.
Epidauro aceitou, resignado, a singular condição, e foi para casa.
Aí chegado, deitou-se ao comprido na cama, e, contemplando as pontas dos sapatos, começou a imaginar por que meios e modos faria publicar o seu nome.
Depois de meia hora de cogitação, assentou em escrever uma correspondência anônima para certo periódico da Corte, dando-lhe graciosamente notícias de Mar de Espanha.
Mas o pobre namorado tinha que lutar com duas dificuldades: a primeira é que em Mar de Espanha nada sucedera digno de menção; a segunda estava em como encaixar o seu nome na correspondência.
Afinal conseguiu encher duas tiras de papel de notícias deste jaez!
"Consta-nos que o Rev.mo Padre Fulano, vigário desta freguesia, passa para a de tal parte."
"O Ilmo Sr. Dr. Beltrano, juiz de direito desta comarca, completou anteontem 43 anos de idade. S. Sª, que se acha muito bem conservado, reuniu em sua casa alguns amigos."
"Tem chovido bastante estes últimos dias", etc.
Entre essas modestas novidades, o correspondente espontâneo, depois de vencer um pequenino escrúpulo, escreveu:
"O nosso amigo Epidauro Pamplona tenciona estabelecer-se por conta própria."
Devidamente selada e lacrada, a correspondência seguiu, mas...
Mas não foi publicada.
* * *
O pobre rapaz resolveu tomar um expediente e o trem de ferro.
- À Corte! à Corte! dizia ele consigo; ali, por fás ou por nefas, há de ser impresso o meu nome!
E veio para a Corte.
Da estação central dirigiu-se imediatamente ao escritório de uma folha diária, e formulou graves queixas contra o serviço da estrada de ferro. Rematou dizendo:
- Pode dizer, Sr. redator, que sou eu o informante.
- Mas quem é o senhor? perguntou-lhe o redator, molhando uma pena; o seu nome?
- Epidauro Pamplona.
O jornalista escreveu; o queixoso teve um sorriso de esperança.
- Bem. Se for preciso, cá fica o seu nome.
Queria ver-se livre dele; no dia seguinte, nem mesmo a queixa veio a lume.
Epidauro não desesperou.
Outra folha abriu uma subscrição não sei para que vítimas; publicava todos os dias a relação dos contribuintes.
- Que bela ocasião! murmurou o obscuro Pamplona.
E foi levar cinco mil-réis à redação.
Com tão má letra, porém, assinou, e tão pouco cuidado tiveram na revisão das provas, que saiu:
Epifânio Peixoto 5$OOO
Epidauro teve vergonha de pedir errata, e assinou mais 2$OOO.
Saiu:
"Com a quantia de 2$, que um cavalheiro ontem assinou, perfaz a subscrição tal a quantia de tanto que hoje entregamos, etc.
Está fechada a subscrição."
* * *
Uma reflexão de Epidauro:
Oh! Se eu me chamasse José da Silva! Qualquer nome igual que se publicasse, embora não fosse o meu, poderia servir-me! Mas eu sou o único Epidauro Pamplona...
E era.
Daí, talvez, o capricho de Zulmira.
* * *
Uma folha caricata costumava responder às pessoas que lhe mandavam artigos declarando os respectivos nomes no Expediente.
Epidauro mandou uns versos, e que versos! A resposta dizia: "Sr. E. P. Não seja tolo."
* * *
Como último recurso, Epidauro apoderou-se de um queijo de Minas à porta de uma venda e deitou a fugir como quem não pretendia evitar os urbanos, que apareceram logo. O próprio gatuno foi o primeiro a apitar.
Levaram-no para uma estação de polícia. O oficial de serviço ficou muito admirado de que um moço tão bem trajado furtasse um queijo, como um reles larápio.
Estudantadas... refletiu o militar; e, voltando-se para o detido:
- O seu nome?
- Epidauro Pamplona! bradou com triunfo o namorado de Zulmira.
O oficial acendeu um cigarro e disse num tom paternal:
- Está bem, está bem. Sr. Plampona. Vejo que é um moço decente--- que cedeu a alguma rapaziada.
Ele quis protestar.
- Eu sei o que isso é! atalhou o oficial. De uma vez em que saí de súcia com uns camaradas meus pela Rua do Ouvidor, tiramos à sorte qual de nós havia de furtar uma lata de goiabada à porta de uma confeitaria. Já lá vão muitos anos.
E noutro tom:
- Vá-se embora, moço, e trate de evitar as más companhias.
- Mas...
- Descanse, o seu nome não será publicado.
Não havia réplica possível; demais, Epidauro era por natureza tímido.
O seu nome, escrito entre os dos vagabundos e ratoneiros, era uma arma poderosíssima que forjava contra os rigores de Zulmira; dir-Ihe-ia:
- Impuseste-me uma condição que bastante me custou a cumprir. Vê o que fez de mim o teu capricho!
* * *
Quando Epidauro saiu da estação, estava resolvido a tudo!
A matar um homem, se preciso fosse, contanto que lhe publicassem as dezesseis letras do nome!
* * *
Lembrou-se de prestar exame na Instrução Pública.
O resultado seria publicado no dia seguinte.
E, com efeito, foi: "Houve um reprovado."
Era ele!
Tudo falhava.
* * *
Procurou muitos outros meios, o pobre Pamplona, para fazer imprimir o seu nome; mas tantas contrariedades o acompanharam nesse desejo que jamais conseguiu realizá-lo.
Escusado é dizer que nunca se atreveu a matar ninguém.
A última tentativa não foi a menos original.
Epidauro lia sempre nos jornais:
"Durante a semana finda, S.M. ,,o Imperador foi cumprimentado pelas seguintes pessoas, etc.
Lembrou-se também de ir cumprimentar Sua Majestade.
- Chego ao paço, pensou ele, dirijo-me ao Imperador, e digo-lhe: - Um humilde súdito vem cumprimentar Vossa Majestade, - e saio.
Mandou fazer casaca; mas, no dia em que devia ir a Cristóvão, teve febre e caiu de cama.
* * *
Voltemos a Mar de Espanha:
Zulmira está sentada ao pé do pai. Acaba de contar-lhe a que impôs a Epidauro. O velho fazendeiro ri-se a bandeiras despregadas.
Entra um pajem.
Traz o Jornal do Comércio, que tinha ido buscar à agência de correio.
A moça percorre a folha, e vê, afinal, publicado o nome de Epidauro Pamplona.
- Coitado! murmura tristemente, e passa o jornal ao velho.
- É no obituário:
"Epidauro Pamplona, 23 anos, solteiro, mineiro. - Febre perniciosa."
O fazendeiro, que é estúpido por excelência, acrescenta:
- Coitado! foi a primeira vez que viu publicado o seu nome.
Artur Azevedo
Imagem retirada do Google
quinta-feira, agosto 06, 2009
Não se casem raparigas
Copla 1
Já viram um homem em pêlo
Sair de repente da casa de banho
Escorrendo por todos os pêlos
Com o bigode cheio de pena
Já viram um homem muito feio
A comer esparguete
Garfo em punho e ar de bruto
Com molho de tomate no colete
Quando são bonitos são idiotas
Quando são velhos são horríveis
Quando são pequenos são maus
Já viram um homem gordo à beça
Extrair as pernas do ó-ó
Massajar a barriga e coçar as guedelhas
Olhando pensativo para os pés
Refrão 1
Não se casem raparigas não se casem
Façam antes cinema
Fiquem virgens em casa do papá
Sejam serventes no carvoeiro
Criem macacos criem gatos
Levantem a pata na Ópera
Vendam caixas de chocolate
Professem ou não professem
Dancem em pêlo para os gagás
Sejam matadoras na avenida do Bois
Mas não se casem raparigas
Não se casem
Copla 2
Já viram um homem à rasca
Chegar tarde para o jantar
Com baton no colarinho
E tremeliques nas gâmbias
Já viram no cabaret
Um senhor não muito fresco
Roçar-se com insistência
Numa florzinha de inocência
Quando são burros aborrecem
Quando são fortes fazem sports
Quando são ricos guardam o milho
Quando são duros torturam
Já viram ao vosso braço pendurado
Um magrizela de olhos de rato
Frisar os três pêlos do bigode
E empertigar-se com um ar de bode
Refrão 2
Não se casem raparigas não se casem
Vistam os vossos vestidos de gala
Vão dançar ao Olímpia
Mudem de amante quatro vezes por mês
Peguem na massa e guardem-na
Escondam-na fresca debaixo do colchão
Aos cinquenta anos pode servir
Para sacar belos rapazes
Nada na cabeça tudo nos braços
Ah que bela vida será
Se não se casarem raparigas
Se não se casarem
Boris Vian
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quarta-feira, agosto 05, 2009
Coração habitado
Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.
Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.
Alguns pensam que são as mãos de deus
— eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.
Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.
Eugénio de Andrade
Foto retirada do Google
terça-feira, agosto 04, 2009
Haiku XLIV
A velha árvore ainda forte-
raízes profundas, nodosas,
mas à volta nada cresce.
Manuel Filipe, in"O sol nos Olhos", pág.20, Apenas Livros
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segunda-feira, agosto 03, 2009
Pedro Abrunhosa e os professores
A contínua hostilização aos professores feita por este, e outros governos, vai acabar por levar cada vez mais pais a recorrer ao privado, mais caro e nem sempre tão bem equipado, mas com uma estabilidade garantida ao nível da conflitualidade laboral.
O problema é que esta tendência neo-liberal escamoteada da privatização do bem público, leva a uma abdicação por parte do estado do seu papel moderador entre, precisamente, essa conflitualidade laboral latente, transversal à actividade humana, a desmotivação de uma classe fundamental na construção de princípios e valores, e a formação pura e dura, desafectada de interesses particulares, de gerações articuladas no equilíbrio entre o saber e o ter.
O trabalho dos professores, desde há muito, vem sendo desacreditado pelas sucessivas tutelas, numa incompreensível espiral de má gestão que levará um dia a que os docentes sejam apenas administradores de horários e reprodutores de programas impostos cegamente.
(…)
O que eu gostaria de dizer é que o meu avô, pai do meu pai, era um modesto, mas, segundo rezam as estórias que cruzam gerações, muito bom professor e, sobretudo, um ser humano dotado de rara paciência e bonomia. Leccionava na província, nos anos 30 e 40, tarefa que não deveria ser fácil à altura: Salazar nunca considerou a educação uma prioridade e, muito menos, uma mais-valia, fora do eixo Estoril-Lisboa, pelo que, para pessoas como o meu avô, dar aulas deveria ser algo entre o místico e o militante.
Pois nessa altura, em que os poucos alunos caminhavam uma, duas horas, descalços, chovesse ou nevasse, para assistir às aulas na vila mais próxima, em que o material escolar era uma lousa e uma pedaço de giz eternamente gasto, o meu avô retirava-se com toda a turma para o monte onde, entre o tojo e rosmaninho, lhes ensinava a posição dos astros, o movimento da terra, a forma variada das folhas, flores e árvores, a sagacidade da raposa ou a rapidez do lagarto. Tudo isto entrecortado por Camões, Eça e Aquilino.
Hoje, chamaríamos a isto ‘aula de campo’. E se as houvesse ainda, não sei a que alínea na avaliação docente corresponderia esta inusitada actividade. O meu avô nunca foi avaliado como deveria. Senão deveria pertencer ao escalão 18 da função pública, o máximo, claro, como aquele senhor Armando Vara que se reformou da CGD e não consta que tivesse tido anos de ‘trabalho de campo’. E o problema é que esta falta de seriedade do estado-novo no reconhecimento daqueles que sustentaram Portugal, é uma história que se repete interminavelmente até que alguém ponha cobro nas urnas a tais abusos de autoridade.
Perante José Sócrates somos todos um número: as polícias as multas que passam, os magistrados os processos que aviam, os professores as notas que dão e os alunos que passam. Os critérios de qualidade foram ultrapassados pelas estatísticas que interessa exibir em missas onde o primeiro-ministro debita e o poviléu absorve.
(…)
Pedro Abrunhosa
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PS:Recebido por email
domingo, agosto 02, 2009
Namorados do mirante
Eles eram mais antigos que o silêncio
A perscrutar-se intimamente os sonhos
Tal como duas súbitas estátuas
Em que apenas o olhar restasse humano.
Qualquer toque, por certo, desfaria
Os seus corpos sem tempo em pura cinza.
Remontavam às origens — a realidade
Neles se fez, de substância, imagem.
Dela a face era fria, a que o desejo
Como um hictus, houvesse adormecido
Dele apenas restava o eterno grito
Da espécie — tudo mais tinha morrido.
Caíam lentamente na voragem
Como duas estrelas que gravitam
Juntas para, depois, num grande abraço
Rolarem pelo espaço e se perderem
Transformadas na magma incandescente
Que milénios mais tarde explode em amor
E da matéria reproduz o tempo
Nas galáxias da vida no infinito.
Eles eram mais antigos que o silêncio...
Vinicius de Moraes
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sábado, agosto 01, 2009
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