segunda-feira, março 30, 2009
As cerejas
- Que fazes tu aí parado? Estás a comer com os olhos aquelas magníficas cerejas?
- Estou simplesmente a namorá-las, ou antes, a resolver-me... Os cobres são tão curtos!.
- Gostas realmente de cerejas?
- Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso país! Mas minha mulher dá o cavaquinho por elas, e não se me dava de lhe levar aquelas, que têm boa cara.
- Pois compra-as, que diabo! Não são as cerejas que nos arruinam.
- Tens razão.
Esse ligeiro diálogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano.
O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde.
Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e já estava num ponto de parada, esperando o elétrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo de uma mulher que ele não podia ver sem sentir imediatamente o imperioso desejo de acompanhá-la, para reatar o fio de uma conversação agradável que se interrompia de meses a meses.
Acompanhou-a.
Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza:
- Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje comigo.
- Não admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estás morto por isso. Vou esperar-te em casa.
Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira coisa que fez foi tirar-lhe das mãos o embrulho que ele trouxera da loja de frutas e desamarrá-lo.
- Que é isso? Cerejas? Como és amável! Não te esqueceste da minha sobremesa predileta!
O Antunes pensou consigo: - guardado está o bocado para quem o come - e pediu mentalmente perdão a dona Leopoldina, sua legítima esposa.
Isto passava-se à tardinha, e era noite fechada quando as cerejas foram alegremente comidas.
A hora em que o Antunes entrou no lar doméstico, já D. Leopoldina estava deitada, mas não dormia ainda.
- Com efeito, Antunes! Já lhe tenho pedido um milhão de vezes que não jante fora sem me prevenir! Esperei-o até às 7 horas!
- Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pão de Açúcar.
- Ao Pão de Açúcar?
- Sim, o Pão de Açúcar é um restaurante da Exposição. Come-se ali muito bem, e o lugar é aprazível.
- Demais, eu estava doida por que você chegasse; nunca o esperei com tanta impaciência!
- Por quê?
- Por causa das cerejas.
- Que cerejas?
- As tais que você comprou na Avenida para me trazer; você bem podia tê-las mandado pelo "rápido" com o aviso de que não vinha jantar. Onde estão elas?
- As cerejas?
- Sim, as cerejas!
- Mas como soubeste que eu...?
- Muito simplesmente. Saí para ir ao dentista, e quando voltava para casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A senhora vai ter hoje magníficas cerejas ao jantar; vi seu marido comprá-las na Avenida. Ele disse-me que a senhora dá o cavaquinho por elas." Onde as puseste? Na sala de jantar?
Já o Antunes tinha arranjado a mentira:
- Oh! diabo! E se não me falas não me lembrava! Deixei no bonde o embrulho das cerejas!.
- Eu logo vi!...
D. Leopoldina voltou-se para o outro lado e não disse mais palavra.
No dia seguinte esteve amuada todo o dia, e só voltou às boas quando o Antunes, entrando em casa às horas de jantar, lhe entregou um embrulho de cerejas, dizendo:
- Estavam na estação.
Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha...
Artur Azevedo
Imagem retirada do Google
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
Pois é...o salafrário safou-se de boa mas Leopoldina não é parva...aliás geralmente as mulheres não são, perdoam mais, mas de burras nada têm:):):):):)
Eu atirava-lhe com as cerejas ou obrigava-o a comê-las lolll
Que magnífico texto!! Como eu gostava de saber escrever assim!! Uma delícia...beijinhos, Isabel.
Um pequeno conto delicioso.
Tal como as cerejas...
Cara amiga, boa semana.
Beijo.
Como sempre uma história deliciosa do Artur Azevedo.
Neste caso, envolvendo um dos meus frutos preferidos.
Mas, se calhar, a D. Leopoldina merecia menos as cerejas do que a Pintinha...
Enviar um comentário