terça-feira, março 31, 2009

Promessa de amor



Construirei para ti uma casa terrestre,
feita de pão e luz e música,
onde caibas apenas tu
e não haja espaço para os intrusos

E quando, à noite nos amarmos,
como se amaram
o primeiro homem e a primeira mulher,
mandarei que repiquem os tambores

- para que saibam todos que voltaram ao mundo
o primeiro homem e a primeira mulher.

João Mello

Imagem retirada do Google

segunda-feira, março 30, 2009

As cerejas



- Que fazes tu aí parado? Estás a comer com os olhos aquelas magníficas cerejas?

- Estou simplesmente a namorá-las, ou antes, a resolver-me... Os cobres são tão curtos!.

- Gostas realmente de cerejas?

- Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso país! Mas minha mulher dá o cavaquinho por elas, e não se me dava de lhe levar aquelas, que têm boa cara.

- Pois compra-as, que diabo! Não são as cerejas que nos arruinam.

- Tens razão.

Esse ligeiro diálogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano.

O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde.

Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e já estava num ponto de parada, esperando o elétrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo de uma mulher que ele não podia ver sem sentir imediatamente o imperioso desejo de acompanhá-la, para reatar o fio de uma conversação agradável que se interrompia de meses a meses.

Acompanhou-a.

Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza:

- Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje comigo.

- Não admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estás morto por isso. Vou esperar-te em casa.

Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira coisa que fez foi tirar-lhe das mãos o embrulho que ele trouxera da loja de frutas e desamarrá-lo.

- Que é isso? Cerejas? Como és amável! Não te esqueceste da minha sobremesa predileta!

O Antunes pensou consigo: - guardado está o bocado para quem o come - e pediu mentalmente perdão a dona Leopoldina, sua legítima esposa.

Isto passava-se à tardinha, e era noite fechada quando as cerejas foram alegremente comidas.

A hora em que o Antunes entrou no lar doméstico, já D. Leopoldina estava deitada, mas não dormia ainda.

- Com efeito, Antunes! Já lhe tenho pedido um milhão de vezes que não jante fora sem me prevenir! Esperei-o até às 7 horas!

- Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pão de Açúcar.

- Ao Pão de Açúcar?

- Sim, o Pão de Açúcar é um restaurante da Exposição. Come-se ali muito bem, e o lugar é aprazível.

- Demais, eu estava doida por que você chegasse; nunca o esperei com tanta impaciência!

- Por quê?

- Por causa das cerejas.

- Que cerejas?

- As tais que você comprou na Avenida para me trazer; você bem podia tê-las mandado pelo "rápido" com o aviso de que não vinha jantar. Onde estão elas?

- As cerejas?

- Sim, as cerejas!

- Mas como soubeste que eu...?

- Muito simplesmente. Saí para ir ao dentista, e quando voltava para casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A senhora vai ter hoje magníficas cerejas ao jantar; vi seu marido comprá-las na Avenida. Ele disse-me que a senhora dá o cavaquinho por elas." Onde as puseste? Na sala de jantar?

Já o Antunes tinha arranjado a mentira:

- Oh! diabo! E se não me falas não me lembrava! Deixei no bonde o embrulho das cerejas!.

- Eu logo vi!...

D. Leopoldina voltou-se para o outro lado e não disse mais palavra.

No dia seguinte esteve amuada todo o dia, e só voltou às boas quando o Antunes, entrando em casa às horas de jantar, lhe entregou um embrulho de cerejas, dizendo:

- Estavam na estação.

Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha...

Artur Azevedo

Imagem retirada do Google

domingo, março 29, 2009

Bambi et un poussy



Lindos:)))

Provérbio



"Isto está pior outra vez, ao ordenado sobra cada vez mais mês."

Tomás Lourenço, in"Provérbios Pós-Modernos", pág.50, Âncora Editora

Imagem retirada do Google

sábado, março 28, 2009

Que nenhuma estrela queime o teu perfil



Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto retirada do Google

sexta-feira, março 27, 2009

A Sofreguidão de um Instante



Tudo renegarei menos o afecto,
e trago um ceptro e uma coroa,
o primeiro de ferro, a segunda de urze,
para ser o rei efémero
desse amor único e breve
que se dilui em partidas
e se fragmenta em perguntas
iguais às das amantes
que a claridade atordoa e converte.
Deixa-me reinar em ti
o tempo apenas de um relâmpago
a incendiar a erva seca dos cumes.
E se tiver que montar guarda,
que seja em redor do teu sono,
num êxtase de lábios sobre a relva,
num delírio de beijos sobre o ventre,
num assombro de dedos sob a roupa.
Eu estava morto e não sabia, sabes,
que há um tempo dentro deste tempo
para renascermos com os corais
e sermos eternos na sofreguidão de um instante.

José Jorge Letria

Imagem retirada do Google

quinta-feira, março 26, 2009

Poema das árvores



As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.

Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.

Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.

E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.

Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.

As árvores, não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
A crescer e a florir sem consciência.

Virtude vegetal viver a sós
E entretanto dar flores.

António Gedeão

Foto retirada do Google

quarta-feira, março 25, 2009

O trágico dilema



"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro."

Mario Quintana

terça-feira, março 24, 2009

Aquele Inverno



Há sempre um piano
um piano selvagem
que nos gela o coração
e nos trás a imagem
daquele inverno
naquele inferno

Há sempre a lembrança
de um olhar a sangrar
de um soldado perdido
em terras do Ultramar
por obrigação
aquela missão

Combater a selva sem saber porquê
e sentir o inferno a matar alguém
e quem regressou
guarda sensação
que lutou numa guerra sem razão...
sem razão... sem razão...

Há sempre a palavra
a palavra 'nação'
os chefes trazem e usam
pra esconder a razão
da sua vontade
aquela verdade

E para eles aquele inverno
será sempre o mesmo inferno
que ninguém poderá esquecer
ter que matar ou morrer
ao sabor do vento
naquele tormento

Perguntei ao céu: será sempre assim?
poderá o inverno nunca ter um fim?
não sei responder
só talvez lembrar
o que alguém que voltou a veio contar... recordar...
recordar...
Aquele Inverno

Delfins

PS:Desligar o som do blog no lado direito.

segunda-feira, março 23, 2009

As asneiras do Guedes

Não é precisamente um conto o que hoje vou escrever.

Voltou do seu passeio a São Paulo o Guedes - o Guedes sabem? - o maior asneirão que o sol cobre, aquele mesmo que respondeu aqui há tempos quando numa roda lhe perguntaram se tinha filhos:

- Tenho uma filha já adúltera.

- Adúltera?!

- Sim, senhor, adúltera; vai fazer 17 anos.

- Adulta quer o senhor dizer...

- Ou isso. E uma boa menina; só tem um defeito: é muito luxuriosa.

- Luxuriosa?!

- Sim, senhor, luxuriosa: gosta muito de luxar.

- Ah!

- Mas lá está minha mulher para lhe dar bons conselhos... sim, porque minha mulher é muito sensual.

- Sensual?!

- Sim, senhor, sensual: tem muito bom senso.

Pois é como lhes digo: tive o prazer de encontrar ontem esse precioso Guedes, cujas asneiras, colecionadas, dariam um volume de trezentas páginas, ou mais.

Eu estava num armarinho da rua do Ouvidor, onde entrava para cumprimentar a minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que andava, como sempre, fazendo compras, enchendo-se de caixinhas e pequeninos embrulhos, adquiridos aqui e ali:

O Guedes, mal que me viu, correu a dar-me um abraço, dizendo:

- Li no "O País" a notícia do seu aniversário...

E recuando dois passos, tomou uma atitude solene, deixou cair as pálpebras, e acrescentou:

- Faço votos para que você tenha um futuro tão brilhante como o que passou.

Agradeci comovido essa manifestação de apreço envolvida num disparate, e apresentei o Guedes à minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que mordia os lábios para não rir.

- Apresento-lhe, minha senhora, o mais extraordinário reformador da língua portuguesa: o Guedes, o grande Guedes, que acaba de chegar de São Paulo, onde esteve a passeio.

- Era tempo de fazer uma viagem! - explicou ele. - Foi a primeira vez que saí do Rio de Janeiro.

- Eu também não saí ainda desta cidade senão para ir uma vez a Petrópolis e duas a Niterói - disse D. Henriqueta.

- Vejo então que a senhora é cortesã... - acudiu o Guedes curvando os lábios no mais amável dos seus sorrisos.

- Cortesã?!

- Cortesã, sim... filha da Corte...

- Oh! Guedes! - observei baixinho. - Pois você não vê que está dizendo uma inconveniência?

- Tem razão... Atualmente não se deve falar em Corte...

E emendou:

- Vejo então que a senhora é capitalista federalista.

D. Henriqueta desta vez riu-se a perder. É provável que ao leitor não aconteça o mesmo. Paciência.

- Ó Guedes! Vamos lá! Diga-me! Que impressões trouxe de São Paulo?

- Muito boas! Aquilo é uma grande terra!

- Dizem que há lá muita sociabilidade.

- Como?

- Muita convivência...

- Isso há... As famílias visitam-se... Ou moços coabitam com as moças.

- Ora essa!

- Que entende você por "coabitar"?

- E... é...

- É uma indecência... uma inconveniência... uma coisa que não se diz!...

O Guedes inflamou-se:

- Está você muito enganado... "Coabitar" é...

E voltando-se para um dos caixeiros do armarinho:

- O senhor tem aí um dicionário que me empreste?

- Pois não?

E daí a dois minutos o Guedes tinha nas mãos os dois volumes do Aulete.

- Muito bem! - disse eu. - Procure "coabitar".

Depois de folhear em vão o dicionário durante um ror de tempo, o teimoso exclamou:

- Não dá! Não dá! Vejam...

- Perdão: você está procurando com u: deve ser com o!

- Tem razão, tem razão... Onde estava eu com a cabeça?

E o Guedes pôs-se de novo a folhear o Aulete.

- Não dá! Também não dá com o! Veja: de coa para coação! Não dá com u nem com o!

Valha-o Deus, Guedes, valha-o Deus! Você está procurando sem h? Dê cá o dicionário!

E com um sorriso de triunfo mostrei ao Guedes a significação da palavra.

- Olhe, leia: "Coabitar, habitar, viver conjuntamente".

- Mas isso...

- Agora veja o que o Aulete acrescenta entre parênteses:

"Diz-se particularmente de duas pessoas de diferente sexo".

- Perdão! - bradou o Guedes furioso. - Perdão! Eu não disse particularmente, mas alto e bom som, e só não me ouviu quem não me quis ouvir!

E batendo com a mão espalmada sobre o balcão:

- Eu não sou homem que diga as coisas particularmente!

Artur Azevedo

Imagem retirada do Google

domingo, março 22, 2009

As rosas



Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in"Cem Poemas De Sophia", pág.21, Editorial Caminho

Foto retirada do Google

sábado, março 21, 2009

Balada de Santa Maria Egipcíaca



Santa Maria Egipcíaca seguia
Em peregrinação à terra do Senhor.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir…

Santa Maria Egipcíaca chegou
À beira de um grande rio.
Era tão longe a outra margem!
E estava junto à ribanceira,
Num barco,
Um homem de olhar duro.

Santa Maria Egipcíaca rogou:
- Leva-me à outra parte do rio.
Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.

O homem duro fitou-a sem dó.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir…

- Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.
Leve-me à outra parte.

O homem duro escarneceu: - Não tens dinheiro,
Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me o teu corpo, e vou levar-te.
E fez um gesto. E a santa sorriu,
Na graça divina, ao gesto que ele fez.

Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
A santidade da sua nudez.

Manuel Bandeira, in"Antologia", pág.73,Relógio D'Água

Imagem retirada do Google

sexta-feira, março 20, 2009

Sem ti



É um fardo aos ombros
o corpo, sem ti.
Até o amarelo
dos girassóis se tornou cruel.
Não invento nada,
na arte de olhar
a luz é cúmplice da pele.

Eugénio de Andrade, in"O Outro Nome Da Terra", pág. 54, Edições Limiar

Imagem retirada do Google

quinta-feira, março 19, 2009

Poemas aos homens do nosso tempo



Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.

Hilda Hilst

Imagem retirada do Google

quarta-feira, março 18, 2009

A polémica



O Romualdo tinha perdido, havia já dois ou três meses, o seu lugar de redator numa folha diária; estava sem ganhar vintém, vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que, levado por uma quimera da juventude, se lembrara de abraçar uma carreira tão incerta e precária como a do jornalismo.

Felizmente era solteiro, e o dono da "pensão" onde ele morava fornecia-lhe casa e comida a crédito, em atenção aos belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatários.

Cansado de oferecer em pura perda os seus serviços literários a quanto jornal havia então no Rio de Janeiro, o Romualdo lembrou-se, um dia, de procurar ocupação no comércio, abandonando para sempre as suas veleidades de escritor público, os seus desejos de consideração e renome.

Para isso, foi ter com um negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido seu condiscípulo no Colégio Vitório, a quem jamais ocupara, embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse, quando raras vezes se encontravam na rua.

O negociante ouviu-o, e disse-lhe:

- Tratarei mais tarde de arranjar um emprego que te sirva; por enquanto preciso da tua pena. Sim, da tua pena. Apareceste ao pintar! Foste a sopa que me caiu no mel! Quando entraste por aquela porta, estava eu a matutar, sem saber a quem me dirigisse para prestar-me o serviço que te vou pedir. Confesso que não me tinha lembrado de ti... perdoa...

- Estou às tuas ordens.

- Preciso publicar amanhã, impreterivelmente, no Jornal do Comércio, um artigo contra o Saraiva.

- Que Saraiva?

- O da rua Direita.

- O João Fernandes Saraiva?

- Esse mesmo.

- E queres tu que seja eu quem escreva esse artigo?

- Sim. Ganharás uns cobres que não te farão mal algum.

A essa palavra "cobres", o Romualdo teve um estremeção de alegria; mas caiu em si:

- Desculpa, Caldas; bem sabes que o Saraiva é, como tu, meu amigo... como tu, foi meu companheiro de colégio...

- Quando conheceres a questão que vai ser o assunto desse artigo, não te recusarás a escrevê-lo, porque não admito que sejas mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: não quero insultá-lo, não quero dizer nada que o fira na sua honra, quero tratá-lo com luva de pelica. Sou eu o primeiro a lastimar que uma questão de dinheiro destruísse a nossa velha amizade. Escreves o artigo?

- Mas...

- Não há mas nem meio mas! O Saraiva nunca saberá que foi escrito por ti.

- Tenho escrúpulos...

- Deixa lá os teus escrúpulos, e ouve de que se trata. Presta-me toda a atenção.

E o Caldas expôs longamente ao Romualdo a queixa que tinha do Saraiva. Tratava-se de uma pequena questão comercial, de um capricho tolo que só poderia irritar, um contra o outro, dois amigos que não conhecessem o que a vida tem de áspero e difícil O artigo seria um desabafo menos do brio que da vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena hábil poderia, efetivamente, evitar uma injúria grave.

O Romualdo, que há muito tempo não pegava numa nota de cinco mil-réis, e apanhara, na véspera, uma descompostura de lavadeira, cedeu, afinal, às tentadoras instâncias do amigo, e no próprio escritório deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente.

- Muito bem! - exclamou o Caldas, depois de três leituras consecutivas.

- Se eu soubesse escrever, escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente a questão!

E, depois de um passeio â burra, meteu um envelope na mão de Romualdo, dizendo-lhe:

- Aparece-me daqui a dias: vou procurar o emprego que desejas. - A época é difícil, mas há de se arranjar.

O Romualdo saiu, e, ao dobrar a primeira esquina, abriu sofregamente o envelope: havia dentro uma nota de cem mil-réis! Exultou! Parecia-lhe ter tirado a sorte grande!

Na manhã seguinte, o ex-jornalista pediu ao dono da "pensão" que lhe emprestasse o Jornal do Comércio, e viu a sua prosa "Eu e o sr. João Fernandes Saraiva" assinada pelo Caldas; sentiu alguma coisa que se assemelhava ao remorso, o mal-estar que acomete o espírito e se reflete no corpo do homem todas as vezes que este pratica um ato inconfessável, e aquilo era uma quase traição. Entretanto almoçou com apetite.

À sobremesa entrou na sala de jantar um menino, que lhe trazia uma carta em cujo sobrescrito se lia a palavra "urgente".

Ele abriu-a e leu:

"Romualdo. - Preciso falar-lhe com a maior urgência. Peço-lhe que dê um pulo ao nosso escritório hoje mesmo, logo que possa. Recado do - João Fernandes Saraiva."

Este bilhete inquietou o ex-jornalista.

Com certeza, pensou ele, o Saraiva soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente alguém me viu entrar em casa do Caldas, demorar-me no escritório... desconfiou da coisa e foi dizer-lhe... Mas para que me chamará ele?

O seu desejo era não acudir ao chamado; alegar que estava doente, ou não alegar coisa alguma, e lá não ir; mas o menino de pé, junto à mesa do almoço, esperava a resposta... Era impossível fugir!

- Diga ao seu patrão que daqui a pouco lá estarei.

O menino foi-se.

O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o café, saiu, e dirigiu-se ao escritório do Saraiva, receoso de que este o recebesse com duas pedras na mão.


Foi o contrário. O amigo recebeu-o de braços abertos, dizendo-lhe:

- Obrigado por teres vindo! Estava com medo de que o pequeno não te encontrasse! Vem cá!

E levou-o para um compartimento reservado.

- Leste o jornal do Comércio de hoje?

- Não - mentiu prontamente o Romualdo. - Raramente leio o Jornal do Comércio.

- Aqui o tens; vê que descompostura me passou o Caldas!

O Romualdo fingiu que leu.

- Isso que aí está é uma borracheira, mas não é escrito por ele! - bradou o Saraiva. - Aquilo é uma besta que não sabe pegar na pena senão para assinar o nome!

- O artigo não está mau... Tem até estilo...

- Preciso responder!

- Eu, no teu caso, não respondia...

- Assim não penso. Preciso responder amanhã mesmo no próprio Jornal ao Comércio e, se te chamei, foi para pedir-te que escrevas a resposta.

- Eu?...

- Tu, sim! Eu podia escrever mas... que queres?... Estou fora de mim!...

- Bem sabes - gaguejou o Romualdo - que sou amigo do Caldas. Não me fica bem...

- Não te fica bem, por quê? Ele com certeza não é mais teu amigo que eu! Depois, não é intenção minha injuriá-lo; quero apenas dar-lhe o troco!

No íntimo o Romualdo estava satisfeito, por ver naquele segundo artigo um meio de atenuar, ou, se quiserem, de equilibrar o seu remorso.

Ainda mastigou umas escusas, mas o outro insistiu:

- Por amor de Deus não te recuses a este obséquio tão natural num homem que vive da pena! Tu estás desempregado, precisas ganhar alguma coisa...

O Romualdo cedeu a este último argumento, e, depois de convenientemente instruído pelo Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena e escreveu ali mesmo o artigo.

Reproduziu-se então a cena da véspera, com mudança apenas de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler o artigo, exclamou: - Bravo! Não podia sair melhor! - e, tirando da algibeira um maço de dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil-réis e entregou-a ao prosador.

- Oh! Isto é muito, Saraiva!

- Qual muito! Estás a tocar leques por bandurra: é justo que te pague bem!

- Obrigado, mas olha: recomendo-te que mandes copiar o artigo, porque no jornal pode haver alguém que conheça a minha letra.

- Copiá-lo-ei eu mesmo.

- Adeus.

- Adeus. Se o Caldas treplicar, aparece-me!

- Está dito.

No dia seguinte, o Caldas entrou muito cedo no quarto do Romualdo, com o jornal do Comércio na mão.

- O bruto replicou! Vais escrever-me a tréplica!

E batendo com as costas da mão no jornal:

- Isto não é dele... Aquilo é incapaz de traçar duas linhas sem quatro asneiras... mas ainda assim, quem escreveu por ele está longe deter o teu estilo, a tua graça... Anda! Escreve!...

E o Romualdo escreveu...

Durante um mês teve ele a habilidade de alimentar a polêmica, provocando a réplica, para que não estancasse tão cedo a fonte de receita que encontrara. Para isso fazia insinuações vagas, mas pérfidas, e depois, em conversa ora com um ora com outro, era o primeiro a aconselhar a retaliação e o esforço.

Tanto o Caldas como o Saraiva se mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo nunca em dias de sua vida se viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores lhe diziam: - Escreve! Escreve! Eu quero ser o último!

Por fim, vendo que a questão se eternizava, e de um momento para o outro a sua duplicidade podia ser descoberta, o Romualdo foi gradualmente adoçando o tom dos artigos, fazendo, por sua própria conta, concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra de forma.

E o público admirou essa polêmica, em que dois homens discutiam com estilos tão semelhantes que o próprio estilo pareceu harmonizá-los.

O Caldas cumpriu a sua promessa: o Romualdo pouco depois entrou para o comércio, onde ainda hoje se acha, completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo.

Artur Azevedo

terça-feira, março 17, 2009

Something



Homenagem a George Harrison com lendas da música.

PS:Desligar o som do blog no lado direito.

Assombros



Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.

Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.

Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.

Affonso Romano de Sant'Anna

Imagem retirada do Google

segunda-feira, março 16, 2009

Provérbio



"Com um QI tão pouco elevado, ainda acabas em deputado."

Tomás Lourenço, in"Provérbios Pós-Modernos", pág.28, Âncora Editora

Imagem daqui

domingo, março 15, 2009

Dificuldades do namoro



Por força da lei mineira,
se te levar ao cinema
levo também tua irmã,
teu irmãozinho, tua mãe.
Porém a mesada é curta
e se eu levar ao cinema
a tua família inteira
como passarei o mês
depois dessa brincadeira?
Prefiro dizer que a fita
na opinião da Cena Muda
não vale dois caracóis,
(Esse Wallace Reid, coitado,
anda muito decadente.)
Outro programa não tenho
nem poderia outro haver
por força da lei mineira
durante as horas noturnas.
Proponho então que fiquemos
nesta sala de jantar
até dez horas em ponto,
(hora de a luz apagar
e todos se recolherem
a seus quartos e orações)
lendo, sentindo, libando
o literário licor
dos sonetos de Camões.
Eis no que dá namorar
o estudante sem meios
nesta década de 20
a doce, guardada filha
de uma dona de pensão.

Carlos Drummond de Andrade

Imagem retirada do Google

sábado, março 14, 2009

Deixa-me rir-Jorge Palma - Coliseu





Deixa-me rir
Essa história não é tua
Falas da festa, do Sol e do prazer
Mas nunca aceitaste o convite
Tens medo de te dar
E não é teu o que queres vender

Deixa-me rir
Tu nunca lambeste uma lágrima
Desconheces os cambiantes do seu sabor
Nunca seguiste a sua pista
Do regaço à nascente
Não me venhas falar de amor

Pois é , pois é
Há quem viva escondido a vida inteira
Domingo sabe de cor
O que vai dizer Segunda-Feira

Deixa-me rir
Tu nunca auscultaste esse engenho
De que que falas com tanto apreço
Esse curioso alambique
Onde são destilados
Noite e dia o choro e o riso

Deixa-me rir
Ou então deixa-me entrar em ti
Ser o teu mestre só por um instante
Iluminar o teu refúgio
Aquecer-te essas mãos
Rasgar-te a máscara sufocante

Pois é, pois é
Há quem viva escondido a vida inteira
Domingo sabe de cor
O que vai dizer Segunda-Feira

Jorge Palma

PS:Desligar o som do lado direito do blog.

sexta-feira, março 13, 2009

***



O Amor é uma montanha russa.
Todos temos um pouco de medo,
mas vale a pena arriscar,
porque só a emoção vivida,
pode ser lembrada.

Tere Penhabe visto aqui

Foto retirada do Google

quinta-feira, março 12, 2009

Sonetos (1)



Chaves na mão, melena desgrenhada,
Batendo o pé na casa, a mãe ordena
Que o furtado colchão, fofo e de pena,
A filha o ponha ali ou a criada.

A filha, moça esbelta e aperaltada,
Lhe diz coa doce voz que o ar serena:
– «Sumiu-se-lhe um colchão? É forte pena;
Olhe não fique a casa arruinada...»

– «Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
Já a mãe não tem mãos?» E, dizendo isto,

Arremete-lhe à cara e ao penteado.
Eis senão quando (caso nunca visto!)
Sai-lhe o colchão de dentro do toucado!...

Nicolau Tolentino

Imagem retirada do Google

quarta-feira, março 11, 2009

A filosofia dos Mendes



Decididamente o Fulgêncio não nascera para cavalarias altas: não havia rapaz de trinta anos mais tímido nem mais pacato vivendo só, na sua casinha de solteiro, independente e feliz.

Aconteceu, porém, que um dia o Fulgêncio foi tão provocado pelos bonitos olhos de uma senhora, que se sentara ao seu lado num bondinho da Carris Urbanos, que se deixou arrastar numa aventura de amor.

Quando, depois da primeira entrevista, na casa dele, Bárbara - ela chamava-se Bárbara - lhe confessou que era casada com um sujeito chamado Mendes, o pobre rapaz, que a supunha solteira ou pelo menos viúva, ficou horrorizado de si mesmo. Ficou horrorizado, mas era tarde: gostava dela, e não teve forças para fugir-lhe.

As entrevistas amiudaram-se. Quando Bárbara não ia ter pessoalmente com o Fulgêncio escrevia-lhe cartas inflamadas, e nenhuma ficava sem resposta.

Essa imprudência teve mau resultado: um dia Bárbara Mendes entrou em casa do amante acompanhada de duas malas, uma trouxa e um baú.

- Que é isto?
- Alegra-te! Meu marido, que é muito abelhudo, encontrou debaixo do meu travesseiro a tua última carta e expulsou-me de casa.
- Hein?
- Foi melhor assim: agora sou tua, só tua, e por toda a vida!... Não estás contente?
- Muito...
- Estou te achando assim a modo que...
- É a surpresa... a comoção... a alegria...
- Como vamos ser felizes! Mas olha, peço-te que não te exponhas nestes primeiros tempos... O Mendes é ciumento e brutal e, mesmo antes de ter certeza de que eu o enganava, andava armado de revólver!

O Fulgêncio, que não tinha sangue de herói, viveu dali por diante em transes terríveis. Saía de casa o menos possível, e nas ruas só andava de tilburi, recomendando aos cocheiros que fossem depressa. Quando via ao longe um sujeito qualquer parecido com o Mendes, punha-se a tremer que nem varas verdes.

Um dia, tendo descido de um tílburi no Largo da Carioca, para comprar cigarros, encontrou na charutaria o Mendes, que comprava charutos. Ficou de repente muito pálido e trêmulo e quis fugir, mas o outro agarrou-o por um braço, dizendo-lhe com muita brandura:

- Faça favor... venha cá... não se assuste... não trema... não lhe quero mal... ouça-me... é para o seu bem...
O Fulgêncio caiu das nuvens. O marido continuou:

- Eu sei que o sr. tem medo de mim que se péla: receia que eu o mate, ou que lhe bata... Tranqüilize-se: não lhe farei o menor mal. Pelo contrário!

O pobre Fulgêncio não conseguiu articular um monossílabo.
As maxilas batiam uma na outra.

- Matá-lo? Bater-lhe? Seria uma ingratidão! O Sr. Prestou-me um relevante serviço: livrou-me de Bárbara! E não era meu amigo, sim, porque em geral são os amigos que têm a especialidade desses obséquios...
O Fulgêncio continuava a tremer.

- Não esteja assim nervoso! Depois que o Sr. me libertou daquela peste, sou outro homem, vivo mais satisfeito, como com mais apetite, tudo me sabe melhor e durmo que é um regalo... Aqui entre nós, se o amigo quiser uma indenização em dinheiro, uma espécie de luvas, não faça cerimônia; estou pronto a pagar - não há nada mais justo... Ande desassombradamente por toda a parte... não receie uma vingança que seria absurda... e se, algum dia, eu lhe puder servir para alguma coisa, disponha de mim. Não sou nenhum ingrato.

Daí por diante, o Fulgêncio nunca mais teve receio de estar na rua, mas em pouco tempo se convenceu de que não podia estar em casa, porque Bárbara era definitivamente insuportável. O Mendes foi o mais feliz dos três.

Artur Azevedo

Imagem retirada do Google

terça-feira, março 10, 2009

Santos e Pecadores-Fala-me de amor



Acabei por ter
Um fraco por ti
Que foi como veio
E eu não percebi

Pergunto como está
A velha certeza
Será que tu sabes
O que correu mal

É que hoje eu já sabia dizer

Ama- me, leva- me p'ra lá do meu horizonte
Falando de amor
Fala- me de amor

Segue-me, prende-me p'ra lá do meu horizonte
Falando de amor
Fala- me de amor

Quero-te dizer
Que ainda estou aqui
Todo o tempo à espera
De ti

Quero-te alcançar
E estou a pedir
P'ra ser como era
Quando te conheci

PS:Desligar o som do blog no lado direito.

segunda-feira, março 09, 2009

A bruxa



Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida ao meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?

E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse neste minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e clama.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.

Carlos Drummond de Andrade

Imagem retirada do Google

domingo, março 08, 2009

À minha noiva



Tu és flor; as tuas pétalas
orvalho lúbrico molha;
eu sou flor que se desfolha
no verde chão do jardim.'
Têm por moda agora os líricos
versos fazer neste estilo...
— Tu és isso, eu sou aquilo,
tu és assado, eu assim...
Às negaças deste gênero,
Carlotinha, não resisto:
vou dizer que tu és isto,
que aquilo sou vou dizer;
tu és um pé de camélia,
eu sou triste pé de alface,
tu és a aurora que nasce,
eu sou fogueira a morrer.
Tu és a vaga pacífica,
eu sou a onda encrespada,
tu és tudo, eu não sou nada,
nem por descuido doutor;
tu és de Deus uma lágrima,
eu sou de suor um pingo,
eu sou no amor o gardingo,
tu Hermengarda no amor.
Os fatos restabeleçam-se,
ó dona dos pés pequenos:
eu sou homem — nada menos,
tu és mulher — nada mais;
eu sou funcionário público,
tu minha esposa bem cedo,
eu sou Artur Azevedo,
tu és Carlota Morais.

Artur Azevedo

Foto retirada do Google

sábado, março 07, 2009

Sem título



Um dia não muito longe
assistiremos à colisão
dos planetas e o céu diamantado
acabará submerso em escombros.
Então colheremos flores rutilantes
e estrelas de néon.
Olha, eis o sinal, um fogo
acende-se no céu, chocam-se
Júpiter e Órion e no terrível
estampido onde acabou o homem?
Certo que basta um sopro neste mundo
em que vivemos para que ele acabe.
Ficará talvez um grito, o da
terra que não quer perecer.

Eugenio Montale

Imagem retirada do Google

sexta-feira, março 06, 2009

Fim de tarde



Fim de tarde encalorada
à beira mar fui passear
olhando as ondas fascinada
morrendo a meus pés de mansinho
sentei-me na areia molhada
perante aquele fascínio.

Num encantamento nem dei
pela chegada de alguém
sentou-se a meu lado também
sua mão terna pousou na minha
sem coragem nem me virei
p'ra não perder a companhia.

Uma onda verde nos tocou
tua mão apertou a minha
teus olhos fixaram os meus
um olhar de quem chorou
dum verde que me deixou
os meus colados aos teus!

Levantámo-nos de mansinho
dei-te a mão com carinho
na areia molhada andámos
nos pés o mar ondulado
como um velho pergaminho
suavemente beijavamo-nos!

Já o Sol no horizonte se deitara
e nós dois nessa praia deserta
percebi que não querias falar
que eras tão sofrido como eu
quem amastes não te soube amar
querias uma porta amiga e aberta
não fugi... deixei-me ficar.

Fatyly visto aqui

Imagem retirada do Google

quinta-feira, março 05, 2009

Cantiga dos ais



Espectacular o saudoso Mário Viegas.

PS:Desligar o som no lado direito do blog.

A conselho do marido



Estamos a bordo de um grande paquete da Messagéries Maritimes, em pleno Atlântico, entre os dois hemisférios. Dois passageiros, que embarcaram no Rio de Janeiro, um de quarenta e outro de vinte e cinco anos, conversam animadamente, sentados ambos nas suas cadeiras de bordo.

- Pois é como lhe digo, meu amiguinho!

- dizia o passageiro de quarenta anos - o homem, todas as vezes que é provocado pela mulher, seja a mulher quem for, deve mostrar que é homem! Do contrário, arrisca-se a uma vingança! O caso da mulher de Putifar reproduz-se todos os dias! - E se o marido for nosso amigo? - Se o marido for nosso amigo, maior perigo corremos fazendo como José do Egito.

- O que você está dizendo é simplesmente horrível!

- Talvez, mas o que é preferível: ser amante da mulher de um amigo sem que este o saiba, ou passar aos olhos dele por amante dela sem o ser, em risco de pagar com a vida um crime que não praticou?

- Acha então que temos o direito sobre a mulher do próximo...?

- Desde que a mulher do próximo nos provoque. Se o próximo é nosso amigo, paciência! Não se casasse com uma mulher assim! Olhe, eu estou perfeitamente tranqüilo a respeito da Mariquinhas! Trouxe-a comigo nesta viagem porque ela quis vir; se quisesse ficar no Rio de Janeiro teria ficado e eu estaria da mesma forma tranqüilo.

- Mas o grande caso é que se um dia algum dos seus amigos...

- Desse susto não bebo água. Já um deles pretendeu conquistá-la... chegou a persegui-la... Ela foi obrigada a dizer-mo para se ver livre dele... Dei um escândalo! Meti-lhe a bengala em plena Rua do Ouvidor!

Dizendo isto, o passageiro de quarenta anos fechou os olhos, e pouco depois deixava cair o livro que tinha na mão: dormia. Dormia, e aqueles sonos de bordo, antes do jantar, duravam pelo menos duas horas. O passageiro de vinte e cinco anos ergueu-se e desceu ao compartimento do paquete onde ficava o seu camarote. Bateu levemente à porta. Abriu-lhe uma linda mulher que se lançou nos seus braços. Era a Mariquinhas.

- Então? - perguntou ela - consultaste meu marido? - Consultei... - Que te disse ele? - Aconselhou-me a que não fizesse como José do Egito. Amigos, amigos, mulheres à parte. E o passageiro de vinte e cinco anos correu cautelosamente o ferrolho do camarote.

Arthur Azevedo

Imagem retirada do Google

quarta-feira, março 04, 2009

Soneto anticlerical



Se quereis, bom Monarca, ter soldados
Para compor lustrosos regimentos,
Mandai desentulhar esses conventos
Em favor da preguiça edificados:
Nos Bernardos lambões, e asselvajados
Achareis mil guerreiros corpulentos;
Nos Vicentes, nos Neris, e nos Bentos
Outros tantos, não menos esforçados:
Tudo extingui, senhor: fiquem somente
Os Franciscanos, Loios, e Torneiros,
Do Centimano aspérrima semente:
Existam estes lobos carniceiros,
Para não arruinar inteiramente
Putas, pívias, cações, e alcoviteiros.

Bocage

Imagem retirada do Google

terça-feira, março 03, 2009

Provérbio



"A chatice do cartão de crédito, é que aumenta sempre o débito."

Tomás Lourenço, in"Provérbios Pós-Modernos", pág.13,Âncora Editora

segunda-feira, março 02, 2009

As casas



As casas.
As casas e suas lembranças
passeando nos jardins ou debruçadas
no parapeito das janelas.

As casas com seus muros
oitão e quintais.
E suas gentes.

Casas com sorrisos de bom dia,
fuxicos nas calçadas e muita história
pendurada nos varais.

Casas com alegria, com parentes.
Tias, pais, irmãos, avós
e na esquina a padaria.
Mais à frente uma multidão.

Casas com nascente
poente e paz.
Casas do ocaso, bolo inglês
e um luar ao alcance das mãos.

Casas com as galinhas
e ao menos um galo das quatro da manhã.
Casas de alvorada, alvenaria.

Ah, casas.
Havia casas
que viviam conosco,
e mais nada.

Não as casas do amanhã.
Casas sem caso
Casas de ferro, xadrez.
As casas catamarã,
pequenas e que nos levam
ao décimo terceiro andar
em gaiolas com os passarinhos.
(E ainda há vez para esses bichinhos?)

Há casas que nos guardam
sozinhos, neuróticos.
Ao acaso.
Casas desacasaladas, descasadas.
Assexuadas ou hermafroditas.

Ah, casas malditas e desocupadas!
Estamos fartos
e noutro lugar!

Nessas casas, ao entrar,
só nos resta pedir de joelhos:

Dê-nos asas...
Dê-nos casas.

Lucas Tenório

Foto retirada do Google

domingo, março 01, 2009

Redes Sexuais



Moçambique-A SIDA bem explicada.

PS:Recebido por email

Trem de ferro



Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
(trem de ferro, trem de ferro)

Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
Da ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
Oô...
(café com pão é muito bom)

Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matar minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
(trem de ferro, trem de ferro)

Manuel Bandeira

Imagem retirada do Google