segunda-feira, agosto 02, 2010
Os melros
A tarde já está branca, e então os melros
voam de novo com os seus estalidos.
Gosto de vê-los, quase nunca falto,
a qualquer hora quando penso em mim.
Mas não me salta nunca cá de dentro
um ser de forma alada, tracejante,
ao gosto dos poetas competentes
e das mais gentes tidas nesse gosto.
Esta a surpresa repetida e calma
da liberdade no voar dos melros.
Que os melros são reais e são concretos
na sua zoologia – sem poetas.
Ainda que banal, não imagino
que se reparta o coração num pássaro
a saltitar disperso nas ramagens.
É meu dizer de mim que sempre tive
– mais homem que poeta, ambos vulgares,
vida e saber sem mais comparações.
Porque um poeta como eu, ingénuo,
não tem ideias nem pesquisas únicas,
é incapaz de conceber os pássaros,
limita-se a dizer que existem pássaros
quando o que vê são na verdade os pássaros.
Assim banal, disfarço a velha imagem
dos outros imitando um coração,
fingida a fantasia que há nos pássaros.
Agora com os melros, isso não!
Com estes melros não, porque são meus,
voam de novo à tarde com estalidos,
levam no bico um cibo do quintal,
e este quintal é meu – e destes melros.
Gosto de vê-los, quase nunca falto,
a qualquer hora quando penso em mim.
Mais homem que poeta, ambos vulgares,
o meu dizer dos melros já deixou
de ser um sentimento, é crueldade.
Passava bem sem eles no quintal,
mas tenho medo de os deixar de ver.
Quando será que um pássaro se alastra
para existir à tarde – com surpresa?
Agora tenho de pensar em mim.
Aos melros tanto faz, quando eu faltar.
Carlos Garcia de Castro
Imagem retirada do Google
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3 comentários:
Não conhecia e com uma realidade sensível e grandiosa. Gostei imenso!
Beijocas e um bom dia
Bonito texto.
O melro é que canta bem mas não me alegra.
Bjs
A Amélia Pais espicaçou-me a curiosidade. Excelente poema... a fazer lembrar "o melro" de Guerra Junqueiro ou "razón del mirlo" de Miguel Veyrat, enfim, um texto que merece estar num dado continuum
poético.
"Isto" não passa de uma mera opinião - claro! -, a minha.
V.
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