sábado, abril 30, 2011

Que música escutas tão atentamente



Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

Eugénio de Andrade

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quinta-feira, abril 28, 2011

Poema da menina do higroscópio



Quando o velho do higroscópio desaparecer no fundo da casota de
[madeira
E a menina do higroscópio do cesto assomar à portinha do lado,
hei-de ir contigo passear ao campo.
Andando, poisarei o meu braço no teu ombro
e com dedos de amor beliscarei
o lóbulo macio da tua orelha.

Quando a menina do cesto assomar à portinha do higroscópio
de laçarotes nas tranças,
a grande saia rodada, azul da Prússia,

com três barras vermelhas,
e o cesto a transbordar de flores e frutos,
hei-de ir contigo passear no campo.

Oculta na floresta, a casota florida do higroscópio,
tem o telhado erguido em ângulo agudo
para que a neve escorra,
e uma grinalda de malmequeres amarelos a bordar o beiral,
Enquanto a corda de tripa não puxar o velho para dentro da
casota
e com ele as asas de grilo da sua labita preta,
baterei com os pés no chão para aquecer, e esperarei
que a menina do cesto assome na portinha do lado.
Assim que ela assomar, estremunhada e surpresa,
ébria do sol, tonta do cheiro das flores,
hei-de ir contigo passear ao campo.

Iremos pelos atalhos
e sobre ti me deitarei na terra.
Encostado ao teu corpo
ouvirei as abelhas pairando sobre as flores como helicópteros

e o surdo escorrer dos grãos de pólen
buscando o óvulo, deflagrando nele
a primavera eterna.

Quando a menina do cesto assomar à portinha do higroscópio
e os pássaros de gesso debicarem as pontas dos seus tamancos,
Oh! como vai ser bom!
mesmo que tu não venhas nem existas,
hei-de ir passear ao campo.

António Gedeão

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quarta-feira, abril 27, 2011

Amor



Nas largas mutações perpétuas do universo
O amor é sempre o vinho enérgico, irritante...
Um lago de luar nervoso e palpitante...
Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Não há para o amor ridículos preâmbulos,
Nem mesmo as convenções as mais superiores;
E vamos pela vida assim como os noctâmbulos
à fresca exalação salúbrica das flores...

E somos uns completos, célebres artistas
Na obra racional do amor -- na heroicidade,
Com essa intrepidez dos sábios transformistas.

Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige
E amamos com vigor e com vitalidade,
A cor, os tons, a luz que a natureza exige!...

Cruz e Sousa

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terça-feira, abril 26, 2011

A lucidez do amante que adormece...



A lucidez do amante que adormece
sobre o seio da amada é a respiração da palavra
que movendo-se se deita sobre o seu ténue leito
que é uma nuvem que avança e no ar se dissipa

Mas o seio da palavra é o seu horizonte
que está para além de uma montanha branca
de silêncio e vagarosa luz
e quando se abre é plumagem de uma ave

que não tem corpo e é o que não há
num cintilar de nulo sortilégio
em que a lucidez encontra o seio e o horizonte

que vibram com a côncava harmonia
de não serem mais que a ténue integridade
de uma matéria que se tornou ritmo e puro espaço

António Ramos Rosa

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segunda-feira, abril 25, 2011

25 de Abril



Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen

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domingo, abril 24, 2011

Howie Day - Collide



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sábado, abril 23, 2011

Sobre flancos e barcos



Havia ainda outro jardim o da minha vida
exíguo é certo mas o do meu olhar
são talvez dois pássaros que se amam
um sobre o outro ou dois cães de pé
é sempre a mesma inquietação

este delírio branco ou o rumor
da chuva sobre flancos e barcos
o inverno vai chegar
sobre a palha ainda quente a mão
uma doçura de abelha muito jovem

era o sopro distante das manhãs sobre o mar
e eu disse sentindo os seus passos nos pátios do coração
é o silêncio é por fim o silêncio
vai desabar

Eugénio de Andrade

Foto:Eli

quinta-feira, abril 21, 2011

Cântico



Num impudor de estátua ou de vencida,
coxas abertas, sem defesa..., nua
Ante a minha vigília, a noite, e a lua,
Ela, agora, descansa, adormecida.

Dos seus mamilos roxos-azuis, em ferida,
Meu ohar desce aonde o sexo estua.
Choro... e porquê? Meu sonho, irreal, flutua
Sobre funduras e confins da vida.

Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos...,
Enquanto o luar a nimba, inerte, gasta
Da ternura feroz do meu amplexo.

Cantam-me as veias poemas nunca feitos...
E eu pouso a boca, religiosa e casta,
Sobre a flor esmagada do seu sexo.

José Régio

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terça-feira, abril 19, 2011

Só no vislumbre do ócio



Só no vislumbre do ócio ou quando o vagar desliza
lucidamente pela minha fronte
eu vejo a graciosa e flexível coerência do teu corpo
com os seus bosques e jardins e suas ilhas túmidas
E então escrevo como se as letras tivessem a frescura de
leves iniciais
e estendo cada verso como uma tapeçaria voluptuosa
para os teus pés de uma brancura redonda
Lúcidas constelações de ébria claridade
as palavras envolvem-te dilatando-se
como se o mar as movesse e elas fossem os adolescentes barcos
que trouxesem as oferendas e os tesouros submarinos
Há palavras que têm o fresco odor de laranjas
porque nascem do teu bafo primaveril
Em todas elas é o espaço do teu corpo que eu habito
e vou lavrando a monótona maresia do mundo como um
boi velho

António Ramos Rosa

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segunda-feira, abril 18, 2011

Sinais que no amor se adiantam



No teu olhar se esfuma e desvanece
A cidade onde o corpo por enquanto é preciso.
É quando a outra face do luar aparece
E o balir das ovelhas tem o som do meu riso.
Para tapar meu seio já nenhum astro tece
A roupa com que outrora saí do paraiso.
O pudor é da terra. Só por isso anoitece
E a nudez dos amantes é não darem por isso.
A semente do filho que em nós amadurece
Trouxe-a no bico a pomba que o seu reino prepara.
Por isso na cidade já ninguém nos conhece
Pois que ambos trazemos esse filho na cara.

Natália Correia

Foto:Eli

domingo, abril 17, 2011

Bon Jovi - It's My Life







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sábado, abril 16, 2011

Post Scriptum



Agora regresso à tua claridade.
Reconheço o teu corpo, arquitectura
de terra ardente e lua inviolada,
flutuando sem limite na espessura
da noite cheirando a madrugada.

Acordaste na aurora, a boca rumorosa
dum desejo confuso de açucenas;
rosa aberta na brisa ou nas areias,
alta e branca, branca apenas,
e mar ao fundo, o mar das minhas veias.

Estás de pé na orla dos meus versos
ainda quente dos beijos que te dei;
tão jovem, e mais que jovem, sem mágoa
- como no tempo em que tinha medo
que tropeçasses numa gota de água.

Eugénio de Andrade

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quinta-feira, abril 14, 2011

Ouço o galope surdo do cavalo do sangue



Ouço o galope surdo do cavalo do sangue
através do silêncio de uma montanha vazia
Estaria vivo ainda? O meu pulso é tão ténue
Sou alguém que perdeu o musgo fértil duma estrela
Sou ainda um felino com a boca fulminada
Quero converter-me numa serpente de sal
para adormecer no umbigo de uma mulher de quartzo
Sou alguém que quer criar a euritmia nupcial
com o sémen verde do seu sexo de argila
Inclino-me para a clareira vazia para purificar o meu
[delírio
para encontrar as armas vegetais as armas nuas
entre diademas de areia e constelações de líquenes
Sigo as imagens da água na sua monótona fluidez
num ardor de silêncios de ténues florescências
e as minhas palavras tremem como arcos de água
e o meu pulso treme como o pulso de um país
que de fragilidade em fragilidade vai singrando
rumo à linha alta do renovo
Sinto o bafo de uma boca amante
de um rosto de olhos claros de pastora
e o fogo de oiro do seu sorriso aéreo
de uma lealdade fluida e inicial
É o espaço é o horizonte é a estrela branca
é um arbusto selvagem rutilante
é uma rapariga numa torre de silêncio
é uma amendoeira num círculo vazio
Todas as imagens se reúnem numa gota de água
e é aí que eu nasço sobre o seio da terra
para descer para adorar com o sémen e o suor
a nudez de um corpo de flecha
entregue à sua vocaçã aérea mas fixo
nas suas espessas vértebras de argila.

António Ramos Rosa

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quarta-feira, abril 13, 2011

Olhos postos na terra



Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.

Eugénio de Andrade

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terça-feira, abril 12, 2011

Teu rosto de desastres e tormentas



Teu rosto de desastres e tormentas
e risos lágrimas e sol e vento
teu rosto de marés e vagas lentas
em que o prazer é quase sofrimento

e o sofrimento é como rosa roxa
florindo devagar em tua boca
se a minha mão te chicoteia a coxa
e no teu corpo há uma égua louca.

Começam então as tuas doces queixas
e vais para um país onde desmaias
quando o sol no teu rosto acende flechas.

E eu temo que te percas e não saias
do abismo em que te abres e te fechas
de cada vez que te levanto as saias.

Manuel Alegre

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segunda-feira, abril 11, 2011

O desejo do corpo é entrar em si mesmo



O desejo do corpo é entrar em si mesmo
e de onda em onda ser uma onda só
que se liberta de todas as amarras
e abre as suas rígidas comportas

Longo subtil e macio é esse gozo
de um túmido movimento que desagua no delta
da nudez extrema em que o corpo encontra
o seu próprio corpo como se fosse um outro

A palavra não pode encontrar-se a si mesma
como se fosse de si mesma outra
porque ela não é um corpo e mesmo quando se despe
a sua nudez é só o anúncio de um corpo inatingível.

António Ramos rosa

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domingo, abril 10, 2011

Bruce Springsteen - Fire



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sábado, abril 09, 2011

Chama-se amor a isto



Chama-se amor a isto:
beber horas roubadas,
no receio constante
de que alguém as descubra
(assim se tem cadastro!);
morder com muita pressa
a polpa dos minutos,
sem lhes sorver o sumo,
sem lhes tirar a casca
(assim se apanham úlceras!);
ter este modo brusco
de engolir os segundos,
como se fossem cápsulas
de qualquer barbitúrico
(assim se morre às vezes!);
o culpado: este cão
que trazemos bem preso,
todo agarrado ao pulso,
e a que chamamos Tempo.
(Sempre a ganir de susto.)

David Mourão-Ferreira

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sexta-feira, abril 08, 2011

Canção



Pedi às vagas
altas e sucessivas
que fossem como
folha de álamo;
que fossem sobre o coração
carícia ou só
memória de lábios.

Eugénio de Andrade

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quarta-feira, abril 06, 2011

Eu vinha por um pouco de vida



Eu vinha pela frescura da seda,
pela promessa da água na tua boca
limpa como um alvéolo, como uma fonte.
Eu vinha pela hospitalidade dos teus braços
abertos sobre as dunas, sobre as camas,
sobre a areia macia das paixões furtivas.
Eu vinha pela sede e pela aventura,
com a desabrida idade dos corsários,
dos animais enleantes ziguezagueando
pelo meio dos juncos e das pedras.
Eu vinha pela desordem dos planetas
no meu livro dos mistérios do céu,
no meu mapa dos assombros da alma.
Eu vinha pelo doce veneno de uma língua
semeando no meu corpo os sinais da perdição.
Eu vinha com o sal nos olhos, ardendo
com o lume a queimar-me a fala
e pedia à água para ser chuva
e à chuva, num repente, para ser mar.
Eu vinha por um pouco de vida, só um pouco,
no tumulto da minha existência de papel.

José Jorge Letria

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terça-feira, abril 05, 2011

Canção (2)



Tu eras neve.
Branca neve acariciada.
Lágrima e jasmim
no limiar da madrugada.
Tu eras água.
Água do mar se te beijava.
Alta torre, alma, navio,
adeus que não começa nem acaba.

Eras o fruto
nos meus dedos a tremer.
Podíamos cantar
ou voar, podíamos morrer.

Mas do nome
que maio decorou,
nem a cor
nem o gosto me ficou.

Eugénio de Andrade

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segunda-feira, abril 04, 2011

Com a paixão desconcerta o pensamento



Com a paixão desconcerta o pensamento
E ama. É fisica a profundidade.
Inspira Vénus o desejo ardente
Para nos mover à ultima ansiedade.

Num ser univoco o amor enleia
Os corpos nus. Na área da magia
Rompe a brancura; e cresce, ao tempo alheia,
A onda do prazer, causa da vida.

Segura no infinito a carne aberta
Atrai o sangue que corre para a verdade
Procurando na joia mais secreta
Do corpo a inicial da eternidade.

Um sol em agonia a tarde gera
E vai o espasmo ao mais fundo da alma
Buscar o grito casto que se enterra
Na terra femea e faz cair a mascara

Langues e lividas esfolham-se então nos corpos
estrelas caidas no trono da loucura.
O sangue enrosca-se e faz sair dos poros
Um fumo de almas que mastigam nuvens.

Natália Correia

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domingo, abril 03, 2011

U2 - Pride (In The Name Of Love)







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sábado, abril 02, 2011

Atento, vejo a chama fulva da abelha



Atento, vejo a chama fulva da abelha
e a cadência do desejo monótono vagabundo
num pequeno corpo ardente e frágil.
O mundo aqui é um sopro verde
em que tudo flui em silenciosos gozos.
Na delícia do ócio o pensamento
entrega-se ao vento e ao olvido.
Só o desejo ordena o fluente ardor
que em mil meandros se propaga no ar.
E de tanto respirar essa pátria volante
eu próprio sou a espessa substância do bosque.

António Ramos Rosa

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