quarta-feira, janeiro 30, 2013

Correspondência



Vejo as nuvens que avançam do Atlântico
para o continente. E, por trás delas, como um pastor
exigente, o vento que as empurra. Depois,
as nuvens passam e volta o sol, com o azul
imutável das manhãs de outono, monótono e distante
como quem o olha, ao sair de casa, sem
tempo para pensar no tempo.
As nuvens, no entanto, continuam
o seu caminho: umas, desfazem-se em água
sobre campos vazios, ou descem para as grandes
cidades para as abraçar com um tédio
enevoado. As que me interessam, porém,
são as que sobem para norte, e ficam
mais frias à medida que as pressões continentais
abrandam o seu curso, Então, param
em dias cinzentos; e, por fim, escurecem
a tua alma, quando as olhas, e te apercebes
de que se aproxima um inverno
de solidão.
A não ser que leias, nesse obscuro céu,
esta carta que te mando.

Nuno Júdice

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segunda-feira, janeiro 28, 2013

Lua


Entre a terra e os astros, flor intensa.
Nascida do silêncio, a lua cheia
Dá vertigens ao mar e azula a areia,
E a terra segue-a em êxtases suspensa.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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sábado, janeiro 26, 2013

Acerca de gatos


Em abril chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não lhe tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhora dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quarto borrabelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do Público ao domingo.

Eugénio de Andrade

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sexta-feira, janeiro 25, 2013

quinta-feira, janeiro 24, 2013

Pensar em Deus é desobedecer a Deus


Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

Alberto Caeiro

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terça-feira, janeiro 22, 2013

O Silêncio



Dos corpos esgotados que silêncio
tão apaziguador se levantava!
(Tinha uma rosa triste nos cabelos,
uma sombra na túnica de luz...)
Para o fundo das almas caminhava,
devagar, o sonâmbulo silêncio.
(Que apertados anéis nos braços nus!)
Mas o silêncio vinha desprendê-los.


David Mourão-Ferreira

Foto: Marek Stan:

domingo, janeiro 20, 2013

Mar, Mar e Mar



Tu perguntas, e eu não sei,
eu também não sei o que é o mar.

É talvez uma lágrima caída dos meus olhos
ao reler uma carta, quando é de noite.
Os teus dentes, talvez os teus dentes,
miúdos, brancos dentes, sejam o mar,
um mar pequeno e frágil,
afável, diáfano,
no entanto sem música.

É evidente que minha mãe me chama
quando uma onda e outra onda e outra
desfaz o seu corpo contra o meu corpo.
Então o mar é carícia,
luz molhada onde desperta
meu coração recente.

Às vezes o mar é uma figura branca
cintilando entre os rochedos.
Não sei se fita a água
ou se procura
um beijo entre conchas transparentes.

Não, o mar não é nardo nem açucena.
É um adolescente morto
de lábios abertos aos lábios da espuma.
É sangue,
sangue onde outra luz se esconde
para amar outra luz sobre as areias.

Um pedaço de lua insiste,
insiste e sobe lenta arrastando a noite.
Os cabelos de minha mãe desprendem-se,
espalham-se na água,
alisados por uma brisa
que nasce exactamente no meu coração.
O mar volta a ser pequeno e meu,
anémona perfeita, abrindo nos meus dedos.

Eu também não sei o que é o mar.
Aguardo a madrugada, impaciente,
os pés descalços na areia.


Eugénio de Andrade

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sexta-feira, janeiro 18, 2013

De todos os cantos do mundo



De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Sophia de Mello Breyner Andersen

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quarta-feira, janeiro 16, 2013

Se as minhas mãos pudessem desfolhar



Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!!


Garcia Lorca

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sábado, janeiro 12, 2013

As rosas



Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites tranparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

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quinta-feira, janeiro 10, 2013

Na mão, em dedos leves



Na mão, em dedos leves e suspensos,
Sentir o fluido peso que se esquiva.

Ou, com dedos recurvos que se tocam,
Cingir musculaturas delicadas.

Ou, prolongando em dedos a mão toda,
Medir quanto de carne ali se amplia.

A mão conhece o que mal olhos vêem.


Jorge de Sena

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terça-feira, janeiro 08, 2013

domingo, janeiro 06, 2013

Dança


Quando um dia eu dançar
Nesse dia hei-de ficar livre
Hei-de abandonar
A menina de saia abaixo do joelho

Terça-feira e eu dançando 
Uma polca
Um tango
Uma valsa
Um  fox trote
Twiste que seja ou mesmo rock
Um dois três, um dois três
Ritmos lentos ou ritmos infernais

Um dia, antes que morra
Antes que fique manietada de velhice
Hei-de dançar 
Dançarei, sim, ali no largo
Ficarei livre

Foto:Eric Richmond

sexta-feira, janeiro 04, 2013

Quero ser teu amigo



Quero ser teu amigo,
Nem demais e nem de menos...
Nem tão longe e nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu puder.
Mas amar-te como próximo, sem medida...
E ficar sempre em tua vida
Da maneira mais discreta que eu souber.
Sem tirar-te a liberdade,
Sem jamais te sufocar,
Sem forçar a tua vontade.
Sem falar quando for a hora de calar
E sem calar quando for a hora de falar.


Fernando Pessoa

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quarta-feira, janeiro 02, 2013