segunda-feira, janeiro 31, 2011
De onde chegam estas palavras?
-De onde me chegam estas palavras?
Nunca houve palavras para gritar a tua ausência
Apenas o coração
Pulsando a solidão antes de ti
Quando o teu rosto dóia no meu rosto
E eu descobri as minhas mãos sem as tuas
E os teus olhos não eram mais
que um lugar escondido onde a primavera
refaz o seu vestido de corolas.
E não havia um nome para a tua ausência.
Mas tu vieste.
Do coração da noite?
Dos braços da manhã?
Dos bosques do Outono?
Tu vieste.
E acordas todas as horas.
Preenches todos os minutos.
acendes todas as fogueiras
escreves todas as palavras.
Um canto de alegria desprende-se dos meus dedos
quando toco o teu corpo e habito em ti
e a noite não existe
porque as nossas bocas acendem na madrugada
uma aurora de beijos.
Oh, meu amor,
doem-me os braços de te abraçar,
trago as mãos acesas,
a boca desfeita
e a solidão acorda em mim um grito de silêncio quando
o medo de perder-te é um corcel que pisa os meus cabelos
e se perde depois numa estrada deserta
por onde caminhas nua.
Joaquim Pessoa
Imagem retirada do Google
domingo, janeiro 30, 2011
sábado, janeiro 29, 2011
Recolhido a sós
Recolhido a sós, no silêncio dos astros,
absolutamente nada pertubará a noite,
parado o tempo, despojado o pensamento,
Nem um só tremor agitará o seu vazio.
Eu queria que o instante demorasse horas,
que meus olhos se queimassem
com o fogo das estrelas.
Manuel Filipe, in "Tempo de Cinza", pág.63, Apenas Livros
Imagem retirada do Google
sexta-feira, janeiro 28, 2011
O encontro
Como se um raio mordesse
meu corpo pêro rosado
e o namorado viesse
ou em vez do namorado
um novilho atravessasse
meus flancos de seda branca
e o trajecto me deixasse
uma açucena na anca
como se eu apenas fosse
o efeito de um feitiço
um astro me desse um couce
e eu não sofresse com isso
como se eu já existisse
antes do sol e da lua
e se a morte me despisse
eu não me sentisse nua
como se deus cá em baixo
fosse um cigano moreno
como se deus fosse macho
e as minhas coxas de feno
como se alguém dos espaços
me desse o nome de flor
ou me deixasse nos braços
este cordeiro de amor
Natália Correia
Imagem retirada do Google
quinta-feira, janeiro 27, 2011
Bebido o luar
Bebido o luar, ébrios de horizontes,
Julgamos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.
Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.
Por que jardins que nós não colheremos,
Límpidos nas auroras a nascer,
Por que o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver
Sophia de Mello Breyner Andresen
Imagem retirada do Google
quarta-feira, janeiro 26, 2011
Parabéns Fatyly:)
Espero que tenhas um óptimo dia Fatyly e nada como começar com este teu amigo:
Claro que não me esqueci desta tua paixão:
Finalmente deixo-te este Pôr do Sol da tua querida Angola:
Pensei em colocar mais um poema, mas desisti pois não encontrei nenhum que dissesse o quanto és importante para mim e o quanto gosto de ti:)
Que faças muitos mais!
Imagens recolhidas do Google
PS:Desligar o som do blog no lado direito.
Claro que não me esqueci desta tua paixão:
Finalmente deixo-te este Pôr do Sol da tua querida Angola:
Pensei em colocar mais um poema, mas desisti pois não encontrei nenhum que dissesse o quanto és importante para mim e o quanto gosto de ti:)
Que faças muitos mais!
Imagens recolhidas do Google
PS:Desligar o som do blog no lado direito.
terça-feira, janeiro 25, 2011
O vento na ilha
O vento é um cavalo:
ouve como ele corre
pelo mar, pelo céu.
Quer me levar:escuta
como ele corre o mundo
para levar-me longe.
Esconde-me em teus braços
por esta noite erma,
enquanto a chuva rompe
contra o mar e a terra
sua boca inumerável.
Escuta como o vento
me chama galopando
para levar-me longe.
Como tua fronte na minha,
tua boca em minha boca,
atados nossos corpos
ao amor que nos queima,
deixa que o vento passe
sem que possa levar-me.
Deixa que o vento corra
coroado de espuma,
que me chame e me busque
galopando na sombra,
enquanto eu, protegido
sob teus grandes olhos,
por esta noite só
descansarei, meu amor.
Pablo Neruda
Imagem retirada do Google
segunda-feira, janeiro 24, 2011
O poema
O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê
O poema alguém o dirá
Às searas
Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento
O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento
No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas
(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)
Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas
E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo.
Sophia de Mello Breyner e Andresen
Imagem retirada do Google
domingo, janeiro 23, 2011
No silêncio da terra
No silêncio da terra.Onde ser é estar.
A sombra se inclina.
Habito dentro da grande pedra de água e sol.
Respiro sem o saber,respiro a terra.
Um intervalo de suavidade ardente e longa.
Sem adormecer no sono verde.
Afundo-me,sereno,
flor ou folha sobre folha abrindo-se,
respirando-me,flectindo-me
no intervalo aberto.Não sei se principio.
Um rosto se desfaz,um sabor ao fundo
da água ou da terra,
o fogo único consumindo em ar.
Eis o lugar em que o centro se abre
ou a lisa permanência clara,
abandono igual ao puro ombro
em que nada se diz
e no silêncio se une a boca ao espaço.
Pedra harmoniosa
do abrigo simples,
lúcido,unido,silencioso umbigo
do ar.
Aí
o teu corpo
renasce
à flor da terra.
Tudo principia.
António Ramos Rosa
Imagem retirada do Google
sábado, janeiro 22, 2011
sexta-feira, janeiro 21, 2011
***
Eu nunca fui dos que a um sexo o outro
No amor ou na amizade preferiram.
Por igual a beleza apeteço
Seja onde for, beleza.
Pousa a ave, olhando apenas a quem pousa
Pondo querer pousar antes do ramo;
Corre o rio onde encontra o seu retiro
E não onde é preciso.
Assim das diferenças me separo
E onde amo, porque o amo ou não amo,
Nem a inocência inata quando se ama
Julgo postergada nisto.
Não no objecto, no modo está o amor
Logo que a ame, a qualquer cousa amo.
meu amor nela não reside, mas
Em meu amor.
Os deuses que nos deram este rumo
Também deram a flor pra que a colhêssemos
com melhor amor talvez colhamos
O que pra usar buscamos.
Ricardo Reis
Imagem retirada do Google
quinta-feira, janeiro 20, 2011
Nocturno
Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava...
Era, no copo, além do gim, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.
Era no gira-discos, o Martirio
de São Sebastião, de Debussy....
Era, na jarra, de repente, um lirio!
Era a certeza de ficar sem ti.
Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança...
David Mourão-Ferreira
Imagem retirada do Google
quarta-feira, janeiro 19, 2011
Onde os lábios
Os lábios.
Distante, arrefecida chama.
Não só os lábios, também as estrelas
são distantes.
E os bosques. E as nascentes.
Também as nascentes são distantes.
As nascentes onde os lábios,
onde as estrelas bebem..
Só o deserto é próximo, só
o deserto.
Eugénio de Andrade
Imagem retirada do Google
terça-feira, janeiro 18, 2011
O beijo
Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escaracéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
Donde teria vindo! (não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?
É uma ave estranha colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.
E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...
Alexandre O'Neill
Imagem retirada do Google
segunda-feira, janeiro 17, 2011
Jardim perdido
Jardim em flor, jardim de impossessão,
Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.
A verdura das arvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.
A luz trazia em si a agitação
De paraisos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidades e suspensão.
Mas cada gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazias em ti sempre suspenso
Outro jardim possivel e perdido.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Imagem retirada do Google
domingo, janeiro 16, 2011
sábado, janeiro 15, 2011
Há uma mulher que desenrola os seus cabelos nas sílabas
Há uma mulher que desenrola os seus cabelos nas sílabas
e perfuma-as com o odor da sua lenta vulva
Ela tanto pode ser uma fêmea da lua como uma rapariga solar
Nas suas ancas ondula um indolente outono e nos seus seios desponta a primavera
Eu vejo-a e não a vejo na brancura da página
porque ela flutua vagamente na distância como uma lua no meio-dia
Mares bosques clareiras fontes em delicadas e delgadas linhas
fluem com o fulgor dessa mulher azul
As palavras caminham com o ritmo fresco dos seus pés descalços
sobre uma praia fulva de conchinhas brancas
O seu hálito doce embriaga as frases nuas
Ela é a presença ausente corpo de aragem viva
e a sua felicidade é tão vaga como vaga a sua longínqua imagem.
António Ramos Rosa
Imagem retirada do Google
sexta-feira, janeiro 14, 2011
Debaixo das Oliveiras
Este foi o mês em que cantei
dentro de minha casa
debaixo
das oliveiras.
O mês em que a brisa me pôs nas mãos
uma harpa de folhas
e a terra me emprestou
sua flauta e sua lua.
Maré viva. Meu sangue atravessado
por um cometa visível a olho nu
tangido por satélites e aves de arribação
navegado por peixes desconhecidos.
Este foi o mês em que cantei
como quem morre e ressuscita
no terceiro dia
de cada sílaba.
O mês em que subi a uma colina
dentro de minha casa
olhei a terra e o mar
depois cantei
como quem faz com duas pedras
o primeiro lume. Palavras
e pedras. Palavras e lume
de uma vida.
Este foi o mês em que fui a um lugar santo
dentro de minha casa.
O mês em que saí dos campos
e me banhei no rio como quem se baptiza
e cantei debaixo das oliveiras
as mãos cheias de terra. Palavras
e terra
de uma vida.
Este foi o mês em que cantei
como quem espelha ao vento suas cinzas
e cresce de seu próprio adubo
carregado de folhas. Palavras
e folhas
de uma vida.
O mês em que a mulher
tocou meus ombros com sua graça
e me deu a beber
a água pura do seu poço.
Este foi o mês em que o filho
derramou dentro de mim
o orvalho e o sol
de sua manhã.
O mês em que cantei
como quem de si se perde e reencontra
nas coisas novamente nomeadas.
Este foi o mês em que atravessei montanhas
e cheguei a um lugar onde as palavras
escorriam leite e mel.
MILAGRE MILAGRE gritaram dentro de mim
as aves todas da floresta.
Então reparei que era o lugar do poema
o lugar santo onde cantei
entre mulher e o filho
como quem dá graças.
Este foi o mês em que cantei
dentro de minha casa
debaixo
das oliveiras.
Manuel Alegre
Imagem retirada do Google
quinta-feira, janeiro 13, 2011
Sê tu a palavra
1.
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.
2.
Só o desejo é matinal.
3.
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.
4.
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.
5.
Beber-te a sede e partir
- eu sou de tão longe.
6.
Da chama à espada
o caminho é solitário.
7.
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?
Eugénio de Andrade
Imagem retirada do Google
quarta-feira, janeiro 12, 2011
O avesso do desejo
te encontraria
no deserto
às dez e meia
tonto de luz
passos trôpegos sobre a areia movediça
eu te desnudaria
meio-dia
sol a pino
e te manteria prisioneiro
até que tingisse
a tua pele
o mais negro ou rubro tom
e cegasse os teus olhos o sol da tarde
te abandonaria então
nu e insone
meio às sombras
sem sonhos
onde te escondias das noites quentes
de antigos janeiros
por fim partiria
liberta
de ti
e do cárcere gelado
dos interditados verões do teu amor
desejo ao avesso
ainda pulsando em mim
Márcia Maia
Imagem retirada do Google
terça-feira, janeiro 11, 2011
Chaminé
Chega a Primavera
e caem na lareira
pardais ainda jovens
que em voos indefesos
sabem que os espera
o terror de estarem presos
na morada dos homens.
Manuel Filipe, in"Eis Uma Casa", pág.24, Edição do Autor
Imagem retirada do Google
segunda-feira, janeiro 10, 2011
Gamasutra
O Kamasutra não seria a prenda mais apropriada para a presente quadra. Nem sequer seria oferta original. Se é para dar um presente
que seja algo que fale do gosto de nos darmos, da identidade de quem dá. Por isso, este Natal vou dar um livro que traduza a nossa
originalidade e que, sendo publicação recente, cedo rivalizará com o célebre livro sobre os prazeres do amor. A longa lista de tentadoras
posições sexuais do Kamasutra cedo ficará esquecida perante o rasgão criativo desta outra obra. Falo, é claro, do “Gamasutra, a infinita
arte do gamanço”. Um manual ilustrado sobre a roubalheira como modo de viver. Começo deste modo, fazendo paródia junto à fronteira
do solene e do sagrado. Não o faço gratuitamente. Tenho uma intenção. Entenderão ao lerem, se assim tiverem paciência. O melhor do
Natal é a festa, a família, a sugestão de um mundo solidário. O tempo do verbo terá que ser, no entanto, alterado: o melhor do Natal já
foi o Natal. Porque uma descarada subversão do espírito natalício foi convertendo em mercadoria e comércio aquilo que parecia ser
generosidade pura e simples: darmo-nos nós, como somos, e tornarmo-nos mais próximos dos outros. Se ressuscitasse hoje, Cristo não
teria que abordar apenas os vendilhões de um templo. O mundo inteiro é um bazar onde tudo se compra e se vende. Incluindo o
chamado espírito natalício.
Rectifico o início desta crónica: o melhor do Natal é o espírito do Natal. Esse espírito não resiste à manipulação oportunista que a
imagem de um simpático mas estafado Pai Natal, vestido com as cores da Coca Cola, apenas confirma a lógica de lucro a que nem os
mitos escaparam. Um dos piores tormentos dos novos tempos de Natal são as mensagens feitas a metro. Por via de email, de telefone
celular, as mensagenzinhas entopem as caixas de correio e obrigam-nos a um exercício penoso de as apagar às dúzias. Corro o risco de
ser ingrato. Mas eu peço aos meus amigos: não me enviem mensagens natalícias. Mandem-mas ao longo do ano, sobretudo, mandemnas
sem necessidade de data especial, com a originalidade e a graça que a verdadeira amizade requerem. A obrigação de trocar
mensagens com amigos é algo de nobre. Mas também aqui aconteceu a banalização. Fórmulas repetidas, clichés sem gosto, fizeram da
humana troca de emoções aquilo que os maus políticos fizeram ao discurso oficial: um desfile de frases feitas, em construção previsível,
vazio de ideias, incapaz de comunicar ou de comover o mais ingénuo dos cidadãos. Pediram-me há dias, num programa de televisão,
que formulasse um desejo para o nosso país. A dificuldade primeira é escolher um único desejo quando os votos que trazemos são
sempre múltiplos. Sentado ante a câmara de filmar demorei um tempo, navegando entre brumas e luzes. Acabei escolhendo uma meia
fórmula, optei pelo seguro. Fiz mal. Porque o que mais queria ter formulado era uma espécie de anti-voto. Ou seja, eu devia ter falado
daquilo que eu não queria que acontecesse. Seria o meu voto pela negativa. Disse o que todos dizemos: que o ano próximo seja um
momento de construção de riqueza. Mas de riqueza nacional. E não de uns poucos. A miséria é, infelizmente, fértil nesse paradoxo: em
vez de produzirmos riqueza, produzimos ricos. Antes fossem ricos. Porque são apenas endinheirados. E endinheirados que não
produzem. Faço aqui, pois, o voto pela via da negação: o que eu mais queria que deixássemos de ser. E escolho: que virássemos costas
ao roubo. Já não falo da prática generalizada que tomou conta das colunas dos jornais. Não falo apenas desse roubo que se estende dos
medicamentos, aos cabos de fibra óptica, dos passaportes ao carris de comboio, das condutas de combustível a painéis solares para
fontes de água. Não falo só do furto que causa milhões de dólares de prejuízo a companhias de electricidade, telefone e águas. E que
nos torna mais pobres a todos nós. Não falo sequer desse outro espantoso roubo que faz com que, na berma das estradas, se comece
por roubar os pertences dos sinistrados em lugar de lhes prestar socorro. Falo de outra roubalheira que se infiltrou no tutano do nosso
corpo enquanto nação: a ideia que roubar é legítimo por causa da pobreza. Ou por causa da escassez de tempo que o político tem por
mandato. Ou por causa de qualquer outra razão. Falo de outros níveis de roubo: o roubo da esperança pelos políticos, o roubo da
propriedade pública pelo gestor, o roubo da História e da memória por aqueles que se acham a geração de estreia nacional. Falo dessa
roubalheira que é a corrupção, lenta hemorragia que nos pede insidiosa habituação. Falo do roubo do pensamento crítico por aqueles
que fazem uso da ameaça velada, da censura subtil ou da arrogância e desprezo pelo debate aberto. Numa palavra, o roubo no nosso
país já não é um simples somatório de casos policiais, uma onda crescente que se destaca de um mar são. O furto tornou-se numa
cultura, num sistema. Tornou-se regra. Somos hoje um país em permanente assalto a si mesmo. E nenhuma nação, por mais bem que
esteja no caminho do progresso, pode conviver com uma doença assim.
Mia Couto, in "Sábado, 01 Janeiro 2011"
Imagem retirada do Google
PS:Recebido por email.
domingo, janeiro 09, 2011
sábado, janeiro 08, 2011
Nascimento último
Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono,germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite,lentamente,sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono,na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento,na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui,o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser,os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.
António Ramos Rosa
Imagem retirada do Google
sexta-feira, janeiro 07, 2011
Pirata
Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.
Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Imagem retirada do Google
quinta-feira, janeiro 06, 2011
Os reis magos
Diz a Sagrada Escritura
Que, quando Jesus nasceu,
No céu, fulgurante e pura,
Uma estrela apareceu.
Estrela nova ... Brilhava
Mais do que as outras; porém
Caminhava, caminhava
Para os lados de Belém.
Avistando-a, os três Reis Magos
Disseram: “Nasceu Jesus!”
Olharam-na com afagos,
Seguiram a sua luz.
E foram andando, andando,
Dia e noite a caminhar;
Viam a estrela brilhando,
sempre o caminho a indicar.
Ora, dos três caminhantes,
Dois eram brancos: o sol
Não lhes tisnara os semblantes
Tão claros como o arrebol
Era o terceiro somente
Escuro de fazer dó ...
Os outros iam na frente;
Ele ia afastado e só.
Nascera assim negro, e tinha
A cor da noite na tez :
Por isso tão triste vinha ...
Era o mais feio dos três !
Andaram. E, um belo dia,
Da jornada o fim chegou;
E, sobre uma estrebaria,
A estrela errante parou.
E os Magos viram que, ao fundo
Do presépio, vendo-os vir,
O Salvador deste mundo
Estava, lindo, a sorrir
Ajoelharam-se, rezaram
Humildes, postos no chão;
E ao Deus-Menino beijaram
A alva e pequenina mão.
E Jesus os contemplava
A todos com o mesmo amor,
Porque, olhando-os, não olhava
A diferença da cor ...
Olavo Bilac
Imagem retirada do Google
terça-feira, janeiro 04, 2011
A festa do silêncio
Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.
Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.
Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.
António Ramos Rosa
Imagem retirada do Google
segunda-feira, janeiro 03, 2011
Noutros lugares
Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exactamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
Jorge de Sena
Imagem retirada do Google
domingo, janeiro 02, 2011
sábado, janeiro 01, 2011
Recomeça...
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…
Miguel Torga
Imagem retirada do Google
Subscrever:
Mensagens (Atom)