segunda-feira, novembro 04, 2013

Ecce Homo



Nunca amanhecera assim, num inimaginável 
barracão perto da cidade gótica. 
A sua casa. 
Conhecia-o do Fandango, 
e sabia apenas que uma tristeza sem lágrimas 
lhe iluminava as tardes e as noites. 

Dessa vez foi diferente. Eu acabara de partir 
um copo no único pub ainda aberto 
(a memória já não me devolve o nome). 
Ele veio sentar-se ao meu lado, bêbedo 
contra bêbedo, unidos pelo quase esplendor 
da queda. Convidou-me a segui-lo e eu, 
não sei bem porquê, acedi. Acompanhei-o 
até às duas assoalhadas em que morava 
– sem vizinhos, numa barraca de alumínio 
e tabopan que fazia da palavra desespero 
um eufemismo inoportuno. O cão, 
pelo menos, gostou de nos ver chegar. 

Depois chorou, a troco de nada. Queria apenas 
um ombro concreto onde pousar a cabeça 
que a mulher e as filhas já nem por engano 
beijavam. Não precisava de gestos ou palavras, 
bastava-lhe ser ouvido, partilhar o impartilhável 
a que talvez chamasse (não me lembro bem) a dor. 

Adormeceu assim, no meu ombro – e eu estava 
capaz de matar (mas não a ele) por uma cerveja, 
pelo gin que horas antes encontrara demasiado 
cedo o chão. Ao amanhecer, abanei-o levemente, 
disse-lhe que tinha mesmo de ir. Beijou-me 
a mão, agradeceu com um sorriso estragado 
aquele nada de nada entre dois homens 
que nunca mais se voltarão a ver. Cá fora, 
uma luz amordaçada desaconselhava qualquer 
tentação lírica, vinha morrer nas couves, 
nos dejectos vários que lhe tornavam menos só a solidão. 

Não reconheci a cidade: pálida, desinteressante, reles. 
Tremia de sono e frio ao entrar no primeiro 
autocarro e quase acreditei – por algumas horas – 
que existia, afinal, alguém ainda mais triste do que eu.


Manuel de Freitas

Imagem retirada do Google

2 comentários:

Fatyly disse...

Um retrato fiel de solidão tão triste e comovente que cada vez mais existe por este Portugal já para não dizer pelo mundo pela ditadura capitalista da direita pela qual estamos a passar.

Gostei imenso e de facto basta estarmos atentos, para sabermos que há sempre alguém "ainda mais triste do que nós".

Beijos

Anónimo disse...

Hmmmm não consigo compreender muito bem a lógica da ordem dos versos. Parecem frases que se partem assim sem mais nem menos. O meu estilo é outro, definitivamente. :)