domingo, setembro 30, 2012

Soneto da fidelidade


De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa (me) dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes

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sexta-feira, setembro 28, 2012

Surdo, subterrâneo rio







Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.

Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
--- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?




Eugénio de Andrade


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quarta-feira, setembro 26, 2012

Alvorada



E de súbito 
um corpo! Alvorada sombria, 
Alvorada nefasta envolta nuns cabelos..... 
Eram negros e vivos. Quem sofria, 
Só de vê-los? 

Eram negros; e vivos como chamas. 
Brilhavam, azulados sob a chuva. 
Brilhavam, azulados, como escamas 
De sereia sombria, sob a chuva... 

Veio cedo de mais a trovoada: 
O vento me lembrou 
De quem eu sou. 
- Alvorada suspensa! Contemplada 
por alguém que chegou a uma sacada 
e à beira da varanda vacilou. 


David Mourão-Ferreira

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segunda-feira, setembro 24, 2012

Ultimatum Futurista (Às gerações portuguesas do séc.XXI)



Acabemos com este maelstrom de chá morno!
Mandem descascar batatas simbólicas a quem disser que não há tempo para a criação!
Transformem em bonecos de palha todos os pessimistas e desiludidos!
Despejem caixotes de lixo à porta dos que sofrem da impotência de criar!
Rejeitem o sentimento de insuficiência da nossa época!
Cultivem o amor do perigo, o hábito da energia e da ousadia!
Virem contra a parede todos os alcoviteiros e invejosos do dinamismo!
Declarem guerra aos rotineiros e aos cultores do hipnotismo!
Livrem-se da choldra provinciana e da safardanagem intelectual!
Defendam a fé da profissão contra atmosferas de tédio ou qualquer resignação!
Façam com que educar não signifique burocratizar!
Sujeitem a operação cirúrgica todos os reumatismos espirituais!
Mandem para a sucata todas as ideias e opiniões fixas!
Mostrem que a geração portuguesa do século XXI dispõe de toda a força criadora e construtiva!
Atirem-se independentes prá sublime brutalidade da vida!
Dispensem todas as teorias passadistas!
Criem o espírito de aventura e matem todos os sentimentos passivos!
Desencadeiem uma guerra sem tréguas contra todos os "botas de elástico"!
Coloquem as vossas vidas sob a influência de astros divertidos!
Desafiem e desrespeitem todos os astros sérios deste mundo!
Incendeiem os vossos cérebros com um projecto futurista!
Criem a vossa experiência e sereis os maiores!
Morram todos os derrotismos! Morram! PIM! 

Almada Negreiros

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sábado, setembro 22, 2012

O mar



Ondas que descansam no seu gesto nupcial
abrem-se caem
amorosamente sobre os próprios lábios
e a areia
ancas verdes violetas na violência viva
rumor do ilimite na gravidez da água
sussurros gritos minerais inércia magnífica
volúpia de agonia movimentos de amor
morte em cada onda sublevação inaugural
abre-se o corpo que ama na consciência nua
e o corpo é o instante nunca mais e sempre
ó seios e nuvens que na areia se despenham
ó vento anterior ao vento ó cabeças espumosas
ó silêncio sobre o estrépito de amorosas explosões
ó eternidade do mar ensimesmado unânime
em amor e desamor de anónimos amplexos
múltiplo e uno nas suas baixelas cintilantes
ó mar ó presença ondulada do infinito
ó retorno incessante da paixão frigidíssima
ó violenta indolência sempre longínqua sempre ausente
ó catedral profunda que desmoronando-se permanece!
António Ramos Rosa
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Poema copiado descaradamente da Eli

quinta-feira, setembro 20, 2012

Haiku



As ondas beijam
os lábios da praia -
bocas do mar


Carlos Seabra

Foto:Eli

terça-feira, setembro 18, 2012

Amália Hoje- Gaivota -Sónia Tavares




Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
morreria no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.


Alexandre O'Neill
Foto:Eli

domingo, setembro 16, 2012

Gosto de ti calada



Gosto de ti calada porque estás como ausente, 
e me ouves de longe, e esta voz não te toca. 
Parece que os teus olhos foram de ti voando 
e parece que um beijo fechou a tua boca. 

Como todas as coisas estão cheias da minha alma 
tu emerge das coisas, cheia da alma minha. 
Borboleta de sonho, pareces-te com a minha alma, 
e pareces-te com a palavra melancolia. 

Gosto de ti calada e estás como distante. 
E estás como queixando-te, borboleta em arrulho. 
E ouves-me de longe, e esta voz não te alcança: 
vais deixar que eu me cale com o silêncio teu. 

Vais deixar que eu te fale também com o teu silêncio 
claro como uma lâmpada, simples como um anel. 
Tu és igual à noite, calada e constelada. 
O teu silêncio é de estrela, tão longínquo e tão simples. 

Gosto de ti calada porque estás como ausente. 
Distante e dolorosa como se houvesses morrido. 
Uma palavra então, um teu sorriso bastam. 
E eu estou alegre, alegre porque não é verdade


Pablo Neruda

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sexta-feira, setembro 14, 2012

Foi para ti que criei as rosas



Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.

Eugénio de Andrade

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quarta-feira, setembro 12, 2012

Estar só é estar no íntimo do mundo



Por vezes   cada objecto  se ilumina 
do que no passar é pausa íntima 
entre sons minuciosos que inclinam 
a atenção para uma cavidade mínima 
E estar assim tão breve e tão profundo 
como no silêncio de uma planta 
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice 
ou na alvura de um sono que nos dá 
a cintilante substância do sítio 
O mundo inteiro assim cabe num limbo 
e é como um eco límpido e uma folha de sombra 
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes 
E é astro imediato de um lúcido sono 
fluvial e um núbil eclipse 
em que estar só é estar no íntimo do mundo.

António Ramos Rosa

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segunda-feira, setembro 10, 2012

Os teus pés


Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.

Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada púrpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram vôo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem.

Pablo Neruda

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quinta-feira, setembro 06, 2012

A noite na ilha



Dormi contigo a noite inteira junto do mar, na ilha.
Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.
Talvez bem tarde nossos
sonos se uniram na altura e no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento move,
embaixo como raízes vermelhas que se tocam.
Talvez teu sono se separou do meu e pelo mar escuro
me procurava como antes, quando nem existias,
quando sem te enxergar naveguei a teu lado
e teus olhos buscavam o que agora – pão,
vinho, amor e cólera – te dou, cheias as mãos,
porque tu és a taça que só esperava
os dons da minha vida.
Dormi junto contigo a noite inteira,
enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos,
de repente desperto e no meio da sombra meu braço
rodeava tua cintura.
Nem a noite nem o sonho puderam separar-nos.
Dormi contigo, amor, despertei, e tua boca
saída de teu sono me deu o sabor da terra,
de água-marinha, de algas, de tua íntima vida,
e recebi teu beijo molhado pela aurora
como se me chegasse do mar que nos rodeia.

Pablo Neruda

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terça-feira, setembro 04, 2012

Libelo



De que mais precisa um homem senão de um pedaço de mar - e um barco com o nome da amiga, e uma linha e um anzol pra pescar?
E enquanto pescando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de suas mãos, uma pro caniço, outra pro queixo, que é para ele poder se perder no infinito, e uma garrafa de cachaça pra puxar tristeza, e um pouco de pensamento pra pensar até se perder no infinito...
De que mais precisa um homem senão de um pedaço de terra - um pedaço bem verde de terra - e uma casa, não grande, branquinha, com uma horta e um modesto pomar; e um jardim - que um jardim é importante - carregado de flor de cheirar?
E enquanto morando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de suas mãos para mexer a terra e arranhar uns acordes de violão quando a noite se faz de luar, e uma garrafa de uísque pra puxar mistério, que casa sem mistério não tem valor de morar...
De que mais precisa um homem senão de um amigo pra ele gostar, um amigo bem seco, bem simples, desses que nem precisa falar - basta olhar - um desses que desmereça um pouco da amizade, de um amigo pra paz e pra briga, um amigo de paz e de bar?
E enquanto passando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de suas mãos para apertar as mãos do amigo depois das ausências, e pra bater nas costas do amigo, e pra discutir com o amigo e pra servir bebida à vontade ao amigo?
De que mais precisa um homem senão de uma mulher pra ele amar, uma mulher com dois seios e um ventre, e uma certa expressão singular?
E enquanto pensando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de um carinho de mulher quando a tristeza o derruba, ou o destino o carrega em sua onda sem rumo?
Sim, de que mais precisa um homem senão de suas mãos e da mulher - as únicas coisas livres que lhe restam para lutar pelo mar, pela terra, pelo amigo...

Vinícius de Moraes

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domingo, setembro 02, 2012

A dança



Não te amo como se fosses uma rosa ou um topázio 
Ou a flecha de cravos, que o fogo lança.
Amo-te como certas coisas escuras devem ser amadas,
Em segredo, entre a sombra e a alma.
Amo-te como a planta que não floresce e carrega,
Escondida dentro de si, a luz de todas as flores.
E, graças ao teu amor, escura no meu corpo
Vive a densa fragrância que cresce da terra.
Amo-te sem saber como ou quando ou de onde.
Amo-te tal como és, sem complexos nem orgulhos.
Amo-te assim porque não sei outro caminho além deste
Onde não existo eu nem tu.
Tão perto que a tua mão no meu peito é a minha mão.
Tão perto que, quando fechas os olhos, adormeço.

Pablo Neruda

Foto:Eli