segunda-feira, março 31, 2008
O Vento na Ilha
O vento é um cavalo
Ouça como ele corre
Pelo mar, pelo céu.
Quer me levar: escuta
como recorre ao mundo
para me levar para longe.
Me esconde em teus braços
por somente esta noite,
enquanto a chuva rompe
contra o mar e a terra
sua boca inumerável.
Escuta como o vento
me chama calopando
para me levar para longe.
Com tua frente a minha frente,
com tua boca em minha boca,
atados nossos corpos
ao amor que nos queima,
deixa que o vento passe
sem que possa me levar.
Deixa que o vento corra
coroado de espuma,
que me chame e me busque
galopando na sombra,
entretanto eu, emergido
debaixo teus grandes olhos,
por somente esta noite
descansarei, amor meu.
Pablo Neruda
Foto:Sonja Rasche
domingo, março 30, 2008
Pensamento
''... Saudade é amar um passado que ainda não passou,
É recusar um presente que nos machuca,
É não ver o futuro que nos convida ...''
Pablo Neruda
***
Não te amo mais
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis
Tenho certeza que
Nada foi em vão
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada
Não poderia dizer mais que
Alimento um grande amor
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
Eu te amo!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade
É tarde demais...
Clarice Lispector
Foto:Yuri Bonder
Esquecer
Longos dias de sonho e de repouso...
Ócio e doçura... Sinto, nestes dias,
Meu corpo amolecer, voluptuoso,
Num desfalecimento de energias.
A ler o meu poeta doloroso
E a fumar, passo as horas fugidias.
Entre um cigarro e um verso vaporoso
Sou todo evocações e nostalgias.
Quando por tudo a claridade morre
E sobre as folhas do jardim doente
A tinta branca do luar escorre,
A minha alma, a mercê de velhas mágoas,
É um pássaro ferido mortalmente
Que vai sendo arrastado pelas águas.
Ribeiro Couto
Foto:Jose A Gallego
sábado, março 29, 2008
Ode à incompreensão
De todas estas palavras não ficará, bem sei,
um eco para depois da minha morte
que as disse vagarosamente pela minha boca.
Tudo quanto sonhei, quanto pensei, sofri,
ou nem sonhei ou nem pensei
ou apenas sofri de não ter sofrido tanto
como aterradamente esperara -
nenhum eco haverá de outras canções
não ditas, guardadas nos corações
alheios, ecoando abscônditas ao sopro do poeta.
Não por mim. Por tudo o que, para ecoar-se,
não encontrou eco. Por tudo o que,
para ecoar, ficou silencioso, imóvel -
- isso me dói como se ausência a música
não tocada, não ouvida, o ritmo suspenso,
eminente, destinado, isso me dói
dolorosamente, amargamente, na distância
do saber tão claro, da visão tão lúcida,
que para longe afasta o compassado ardor
das vibrações do sangue pelos corpos próximos.
Tão longe, meu amor, te quis da minha imperfeição,
da minha crueldade, desta miséria de ser por intervalos
a imensa altura para que me arrebatas
- meu palpitar de imagem à beira da alegria,
meu reflexo nas águas tranquilas da liberdade imaginada-,
tão longe, que já não meus erros regressassem
como verdade envenenando o dia a dia alheio.
Tão longe, meu amor, tão longe,
quem de tão longe alguma vez regressa?!
E quem, ó minha imagem, foi contigo?
(De mim a ti, a mim,
quem de tão longe alguma vez regressa?)
Jorge de Sena
Foto:Stanmarek
O mar
Antes que o sonho (ou o terror) tecera
mitologias e cosmogonias,
antes que o tempo se cunhasse em dias,
o mar, sempre o mar, já estava e era.
Quem é o mar? Quem é o violento
e antigo ser que destrói os pilares
da terra, e é só um e muitos mares,
e abismo e resplendor e azar e vento?
Quem o olha vê-o pela vez primeira,
sempre. Com o assombro tal que as coisas
elementares deixam, as formosas
tardes, a lua, o fogo da fogueira.
Quem é o mar, quem sou? Sei-o no dia
que virá logo após minha agonia.
Jorge Luís Borges visto no Palavras D'Ouro
Foto:Pedro Cruz Vera
Minha mulher
A minha mulher
tem mistério insondável,
recato impenetrável
aos olhos voyeurs.
A minha mulher,
tem uma nudez invisível
e um olhar transparente
só para o que quer.
A minha mulher
tem o encanto das fadas
e a magia das bruxas
quando estamos em nós.
Ela sabe fazer-se inteira
nunca está em pedaços
sabe todas perícias
atar e soltar nossos nós.
Nela, o meu corpo presente
é mais do que tudo,
do eterno, um estudo,
quando estamos a sós.
Ela tem a magia dos celtas,
obtém a têmpera correta,
de traz-nos o instante
de toda eternidade.
Ela tem o erotismo dos anjos
o silêncio dos sábios
ao dizer o que é
ser a minha mulher.
Calex Fagundes
Foto:Hataiiia Hataiiia
sexta-feira, março 28, 2008
Os Amigos
No
regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias
tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite
prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume
ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência
Al Berto
Foto:Manuel Holgado
***
"... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, espararei quanto tempo for preciso."
Clarice Lispector
Foto:Yuri Bonder
Letra: Ferida exposta ao tempo
É forçoso dizer que me faz falta
o poema que existe e nunca li,
como se alhures
brotassem coisas que não vi
e que distantes,
carentes,
dependessem de mim.
Algo como se o intocado fosse a sinfonia
inacabada, mais:rasgada
como o quadro nunca esboçado, perdido
na abatida mão do artista.
O ausente
é uma planta
que na distância se arvora
e é tão presente
quando o passado que aflora.
E a literatura, mais que avenida ou praça
por onde cavalga a glória, é um monumento,
sim, de dúbia estória: granito e rima,
alegoria ao vento, lugar onde carentes
e arrogantes
cravamos nosso nome de turista:
-estive aqui, desamado,
riscando a pedra e o tempo
expondo meu sangue e nome
com o coração trespassado.
Affonso Romano de Sant'Anna
Foto:Dirk Vermeirre
quinta-feira, março 27, 2008
Adeus
Tudo está morto.Incorrigivelmente morto.
Como pode morrer algo que nunca viveu?
Desperto a meio da noite, triste e absorto,
Foi um sonho que tive. Nada aconteceu.
Foste embrulho cúbico em papel fantasia,
Enfeitado com um laço de todas as cores,
A felicidade é assim:intermitente e fugidia,
São sempre passageiros os amores e dores.
Nunca fiz mais nada para renascer e morrer.
Renasço nu. Morro com a roupa de Domingo,
O êxtase é uma torrente para além do prazer,
Como posso sobreviver se só eu os distingo?
Não suporto este silêncio dos gritos da alma,
Mantenho-me firme no silêncio das emoções,
Num afago terno, a noite aconselha-me calma:
"É sempre intrincado o regresso das perdições."
Dormes. Eu afasto-me de ti em bicos de pés,
Sonhas. Os sonhos são só teus. Apenas teus!
Caminho para a porta, desconheço quem és,
A palavra mais triste é a palavra "Adeus..."
Gonçalo Nuno Martins, in"Nada em 53 vezes",pág.61,Papiro Editora
Foto:Stanmarek
O livro dos amantes II
Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.
Natália Correia
Foto:Paul Bolk
quarta-feira, março 26, 2008
O longe e o perto
Logo que a noite envolve em sombras o jardim
Parece que um mistério estranho me rodeia,
Bocas de flores se entreabrem para mim,
E não sei de quem são estes passos na areia
Nem este murmurar de uma queixa sem fim.
Como a seiva da terra alimenta as raízes,
Uma seiva secreta enche meu coração.
Deve ser o tal "gosto amargo de infelizes",
Plantinha sempre verde entre as pedras do chão,
Cujo travo provei em todos os países.
Tudo que pude fiz para não ser assim,
Mas não posso esquecer o longe pelo perto;
Os que amei e perdi dormem dentro de mim;
A culpa é minha, sou eu mesmo que os desperto,
Logo que a noite envolve em sombras o jardim.
Ribeiro Couto
Foto:Mert Onengut
terça-feira, março 25, 2008
A morte da água
Um dos passeios que mais gosto de dar é ir a esposende ver desaguar o cávado. Existe lá um bar apropriado para isso. Um rio é a infância da água. As margens, o leito, tudo a protege. Na foz é que há a aventura do mar largo. Acabou-se qualquer possível árvore geneológica, visível no anel do dedo. Acabou-se mesmo qualquer passado. É o convívio com a distância, com o incomensurável. É o anonimato. E a todo o momento há água que se lança nessa aventura. Adeus margens verdejantes, adeus pontes, adeus peixes conhecidos. Agora é o mar salgado, a aventura sem retorno, nem mesmo na maré cheia. E é em esposende que eu gosto de assistir, durante horas, a troco de uma imperial, à morte de um rio que envelheceu a romper pedras e plantas, que lutou, que torneou obstáculos. Impossível voltar atrás. Agora é a morte. Ou a vida.
Ruy Belo
Imagem daqui
Erotikós
Vê?
Posso me romper a um simples toque
de seus dentes brancos,
inundando sua boca com o doce fluido
de que sou feita, néctar dos deuses.
E vou: deixando desejo, doçura de beijo,
despertando sua gula, vontade e sensualidade.
Ah desejo, para mim voltado...
Como o retribuo! Me mostro só sua,
sou puro açúcar, sou mais do que mel.
Seu céu eu alcanço, em sua língua descanso,
e depois...escorro por sua garganta.
Cecília Quadros
Foto:Yuri Bonder
O mundo é grande
O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.
Carlos Drummond de Andrade
Imagem daqui
segunda-feira, março 24, 2008
Cárcere destino
Quando a tive sob meu julgamento,
condenei-me pelo crime que havia no olhar.
Seus gestos de quase nunca
denunciaram a culpa.
a minha?...
a dela?...
- Desconhecida era a pena.
Ordenei-lhe a fuga.
Resistiu, pois sabia de mim.
Vieram as perguntas.
As fiz em outro tempo
em resposta ao seu corpo.
- Desconhecido também era o tempo.
Conjugavam-se o ontem e o agora,
o futuro ainda não existia.
Confessei os feitiços,
o arder das chamas,
o verbo aliciado pela carne desde o princípio.
A mim não coube recurso. Culpado.
Mantive-me prisioneiro do cárcere destino,
sob vigília,
para evitar a fuga.
Quando a tive sob meu julgamento,
condenei-me ao eterno amar.
Celso Brito
Foto:Keiko Guest
Identidade
Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.
Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.
Mas como as inscrições nas penedias
Tem maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.
Miguel Torga
Foto:Stanmarek
domingo, março 23, 2008
Mãos
Digo
"as minhas mãos são água"
quando imersas
no secular fluir deste riacho
(temerosa timidez
que se diverte,
faz bailar seixos
e os barcos de papel).
Digo
"as minhas mãos são água",
quando à noite,
fascinadas, reflectem as estrelas,
do solene dossel desce o silêncio,
e procuram, também elas, luz no mar.
Digo
"as minhas mãos são água"
pois são geladas
e nada mais encontraram
que agarrar.
Manuel Filipe, in "Tempo de Cinza", pág.44, Apenas Livros
Imagem daqui
Poema II
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
Natália Correia
Foto:Paul Bolk
sábado, março 22, 2008
Mar
Quero sentir o grande mar, violento e puro.
Quero sentir o mar nocturno e enorme.
Quero sentir o silêncio, o áspero silêncio do mar!
Quero sentir o mar! Quero viver o mar!
Quero receber em mim o grande e escuro mar!
Não o mar caminho, mas o mar destino,
O mar fim de todas as coisas,
O mar, túmulo fechado para o tempo.
Quero o mar! O mar primitivo e antigo,
O mar virgem, despovoado de imagens e de lendas,
O mar sem náufragos e sem história.
Quero o mar, o mar purificado e eterno,
O mar das horas iniciais, o mar primeiro,
Espelho do Espírito de Deus, rude e terrível!
Augusto Frederico Schmidt visto no Palavras D'Ouro
Foto:Zacarias Pereira da Mata
Chuva
A chuva fina molha a paisagem lá fora.
O dia está cinzento e longo... Um longo dia!
Tem-se a vaga impressão de que o dia demora...
E a chuva fina continua, fina e fria,
Continua a cair pela tarde, lá fora.
Da saleta fechada em que estamos os dois,
Vê-se, pela vidraça, a paisagem cinzenta:
A chuva fina continua, fina e lenta...
E nós dois em silêncio, um silêncio que aumenta
se um de nós vai falar e recua depois.
Dentro de nós existe uma tarde mais fria...
Ah! Para que falar? Como é suave, branda,
O tormento de adivinhar — quem o faria? —
As palavras que estão dentro de nós chorando...
Somos como os rosais que, sob a chuva fria,
Estão lá fora no jardim se desfolhando.
Chove dentro de nós... Chove melancolia...
Ribeiro Couto
Foto:Manuel Holgado
***
Plena mulher, maçã carnal, lua quente,
espesso aroma de algas, lodo e luz pisados,
que obscura claridade se abre entre tuas colunas?
que antiga noite o homem toca com seus sentidos?
Ai, amar é uma viagem com água e com estrelas,
com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:
amar é um combate de relâmpagos e dois corpos
por um só mel derrotados.
Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,
tuas margens, teus rios, teus povoados pequenos,
e o fogo genital transformado em delícia
corre pelos tênues caminhos do sangue
até precipitar-se como um cravo noturno,
até ser e não ser senão na sombra de um raio.
Pablo Neruda
Foto:Keiko Guest
sexta-feira, março 21, 2008
Tigresa
Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel
Uma mulher, uma beleza que me aconteceu
Esfregando sua pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu
Me falou que o mal é bom e o bem cruel
Enquanto os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu
Ela me conta, sem certeza, tudo que viveu
Que gostava de política em mil novecentos e setenta e seis
E hoje dança no Frenetic Dancing Days
Ela me conta que era actriz e trabalhou no "Hair"
Com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher
Que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor
E espalhado muito prazer e muita dor
Mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar
Porque ela vai ser o que quis, inventando um lugar
Onde a gente e a natureza feliz vivam sempre em comunhão
E a tigresa possa mais do que um leão
As garras da felina me marcaram o coração
Mas as besteiras de menina que ela disse não
E eu corri para o violão, num lamento, e a manhã nasceu azul
Como é bom poder tocar um instrumento.
Caetano Veloso
Foto:Karel Vojkovský
Shopping
Concreto torpor
dos corpos que se arrastam e respiram
o ar tantas vezes respirado.
Deslizam mãos cobiçosas que escolhem cores,
soltam-se odores,
brilham lampejos no olhar...
Zumbem murmúrios e vocábulos atirados.
Já não corpos, mas torrente coleante,
confluindo entre adornos e manjares,
a serpente multicor tudo incorpora
consumindo alegremente
devagar.
Manuel Filipe, in"Poemas de Manuel Filipe", pág.248, Edição de autor
Imagem daqui
quinta-feira, março 20, 2008
O sol que me luz dentro
Nada tenho nas mãos,
Só o sol me brilha dentro
Numa espécie de encantamento,
Um fogo que não se apaga,
Mas nas mãos nada se vê.
Nem o brilho, nem a cor,
Nem o fogo, nem o ardor,
que me deixam o corpo em brasa.
Se nas minhas mãos brilhasse
O sol que me luz dentro,
Mil raios as trespassariam,
Mil raios iluminariam,
As noites,
As minhas,
Tão escuras.
E eu teria noites-dia,
E não noites-agonia,
Se nas minhas mãos raiasse,
O sol que me luz dentro.
Encandescente, in"Bestiário",pág.74, Edições Polvo
Foto:Yuri Bonder
Cidade noturna
Crescem seios e sexos
nos banheiros públicos
das praças de silicone
uma rua leva ao cais
outra ao caos
distribuo panfletos católicos
em avenidas de nossa senhora
os sinos contam histórias
que me excitam e empalidecem
visito dom zico
em taberna de palha
e teto de zinco
que me serve café com notícias
um relógio mede o tempo
e o fedor da carniça
a noite revela o que o dia esconde:
o vai e vem das esquinas.
Celso Brito
Foto:Tomaso Nigris
Vimos chegar as andorinhas
Vimos chegar as andorinhas
conjugarem-se as estrelas
impacientarem-se os ventos
Agora
esperemos o verão do teu nascimento
tranquilos, preguiçosos
Tão inseparáveis as nossas fomes
Tão emaranhadas as nossas veias
Tão indestrutíveis os nossos sonhos
Espera-te um nome
breve como um beijo
e o reino ilimitado
dos meus braços
Virás
como a luz maior
no solstício de junho.
Rosa Lobato de Faria
Foto:Manuel Holgado
quarta-feira, março 19, 2008
O estrangeiro
– De quem gostas mais?, diz lá, estrangeiro.
De teu pai, de tua mãe, de tua irmã ou do teu irmão?
– Não tenho pai, nem mãe, nem irmãos.
– Dos teus amigos?
– Eis uma palavra cujo sentido sempre ignorei.
– Da tua pátria?
– Não sei onde está situada.
– Da beleza?
– Amá-la-ia de boa vontade se a encontrasse.
– Do oiro?
– Odeio-o tanto quanto vós a Deus.
– Então que amas tu singular estrangeiro?
– Amo as nuvens... as nuvens que passam... as
maravilhosas nuvens!
Charles Baudelaire visto no Palavras D'Ouro
Foto:Michael Anderson
Carta náutica
Olho todas as águas
desde as profundezas do mar
e aí estás como num quarto minguante acelerado
e aí estou sem palavras, móvel entre a espuma
que navega para o teu coração.
E para o nosso amor avançam
os quatro pontos cardeais
e os restos de barcas e navios que puderam
sobreviver ao naufrágio de um quarto de século.
Continuaremos a amar-nos perpetuamente.
E levantaremos as nossas cabeças
no ouro fechado do arvoredo mudo
até chegar, novamente, ao pé dos cem mares.
Na maré-cheia o teu corpo e o meu corpo.
Lá, na maré-baixa, a tua boca e o meu corpo e o teu esplendor.
Nesta carta náutica não há espaço para eles.
Nancy Morejón
Foto:Zacarias Pereira da Mata
terça-feira, março 18, 2008
Se eu pudesse guardar os teus sentidos
Se eu pudesse guardar os teus sentidos
Numa caixa de prata e de cristal,
Entre conchas do mar, búzios partidos,
Pequenas coisas sem valor real...
Se eu pudesse viver anos perdidos
Contigo, numa ilhota de coral,
Para além dos espaços conhecidos,
Mais longe do que a aurora boreal...
Se eu soubesse que o olhar de toda a gente
Te via, por milagre, repelente,
Que fugiam de ti como da peste...
Nem assim abrandava o meu ciúme,
Que é afinal o natural perfume
Da flor do grande amor que tu me deste.
Reinaldo Ferreira
Foto:Wind
Constância feminina
Agora já me amaste por um dia inteiro.
Amanhã, quando partires, o que dirás?
Irás antedatar algum voto mais recente?
Ou dizer que, agora,
Já não somos exactamente os mesmos de antes?
Ou que as juras, feitas por medo reverencial
Ao Amor e à sua ira, se podem renegar?
Ou, como veras mortes desligam veros casamentos,
À imagem destes, os contratos dos amantes
Unem só até que o sono, imagem da morte, os separe?
Para justificar teus próprios fins,
Tendo proposto mudança e falsidade, não terás tu
Outro meio senão a falsidade para seres sincera?
Lunática vã, contra tais evasivas eu poderia
Argumentar e ganhar, se quisesse,
O que me abstenho de fazer
Porque, amanhã, poderei vir a pensar como tu.
John Donne visto no Palavras D'Ouro
Foto:Yuri Bonder
Escondido entre o arvoredo
Vejo escondido entre o arvoredo,
Mulheres banhando-se no rio.
Vestidas de nada, nuas, sem medo,
Aquece-as o sol, esquece-lhes o frio.
Invejo o rio que numa carícia,
Afaga todos os seus recantos.
Cresce em mim uma malícia,
Perco-me a fitar os seus encantos.
Banham-se, brincam e gracejam,
Cantam melodias de encantar.
Ainda sinto que ali estejam,
Mesmo depois de acordar.
Luís Caeiro
Foto:Niko Guido
Ah! Os Relógios
Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...
Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.
Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.
E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...
Mário Quintana
Pintura:Salvador Dali
Esplendor na relva
Eu sei que deanie loomis não existe
mas entre as mais essa mulher caminha
e a sua evolução segue uma linha
que à imaginação pura resiste
A vida passa e em passar consiste
e embora eu não tenha a que tinha
ao começar há pouco esta minha
evocação de deanie quem desiste
na flor que dentro em breve há-de murchar?
(e aquela que no auge a não olhar
que saiba que passou e que jamais
lhe será dado ver o ela era)
Mas em deanie prossegue a primavera
e vejo que caminha entre as mais.
Ruy Belo
Foto:Yuri Bonder
segunda-feira, março 17, 2008
Poema Antigo
O
homem que percorro
com as mãos
e a lua que concebo
na altitude
do tédio
Só
o oceano
penso paralelo - ventre
à praia intacta
das janelas brancas
com silêncio
ciclames-astros
entre
as vozes que calaram
para sempre
o verbo - bússola
com raiz - grito de relevo
O homem que percorro
com as mãos
a estátua que consinto
a lua que concebo.
Maria Teresa Horta
Imagem daqui
Dizem que a paixão o conheceu
Dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice
conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo
dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos.
Al Berto
Foto:Maury Perseval
domingo, março 16, 2008
A hora do cansaço
As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.
Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.
Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nós cansamos, por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.
Do sonho de eterno fica esse gosto ocre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.
Carlos Drummond de Andrade
Foto:Piotr Kowalik
Se eu fosse
A Menina Marota desafiou-me para esta corrente e não sou capaz de dizer não:)
Se eu fosse um mês-Agosto
Se eu fosse um dia da semana-Quarta-Feira
Se eu fosse um número-9
Se eu fosse uma flor-Rosa
Se eu fosse uma direcção-Sul
Se eu fosse um móvel-Mesa de trabalho
Se eu fosse um líquido-Água
Se eu fosse um pecado-Gula
Se eu fosse um livro-O perfume
Se eu fosse uma pedra-Granito
Se eu fosse um metal-Prata
Se eu fosse uma árvore-Eucalipto
Se eu fosse uma fruta-Cerejas
Se eu fosse um clima-Ameno
Se eu fosse um instrumento musical-Viola
Se eu fosse um elemento-Água
Se eu fosse uma cor-Azul
Se eu fosse um animal-Tigre
Se eu fosse um som-Piano
Se eu fosse uma canção-Imagine
Se eu fosse um perfume-She do Georgio Armani
Se eu fosse um sentimento-Amizade
Se eu fosse uma comida-Bacalhau com natas
Se eu fosse uma palavra-Fiel
Se eu fosse um verbo-Crer
Se eu fosse um objecto-Automóvel
Se eu fosse uma peça de roupa-Calças
Se eu fosse uma parte do corpo-Olhos
Se eu fosse uma expressão-Sorrir
Se eu fosse um desenho animado-Pato Donald
Se eu fosse um filme-O Piano
Se eu fosse uma forma-Circulo
Se eu fosse uma estação-Primavera
Se eu fosse uma frase-"Nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma",Lavoisier
E como furo sempre as regras, não passo a ninguém, quem quiser que faça, até podem fazê-lo nos comentários:)
Canção do amor imprevisto
Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.
Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...
E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
nada, numa alegria atônita...
A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.
Mario Quintana
Foto:Yuri Bonder
sábado, março 15, 2008
Check-Up
Quando eu morrer
emoldurem-se em talha dourada
todos os meus atestados de sanidade física
(que não mental).
Sangue-normal.
Tórax-normal.
Barriga-normal.
Tudo normal!
Hipertensão arterial?
Não!
Sabem que às vezes o coração pára de correr?
De solidão?
De nojo?
Sem razão?
Manuel Filipe, In"Poemas de Manuel Filipe",pág.228, Edição de autor
Foto:Rakesh Syal
Frente a frente
Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.
Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
- e é tão pouco!
Eugénio de Andrade
Foto:Zacarias Pereira da Mata
Perguntas à Língua Portuguesa
Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o vôo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem, é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.
Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.
Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulburbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
O mato desconhecido é que é o anonimato?
O pequeno viaduto é um abreviaduto?
Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?
Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?
Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?
Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
Mulher desdentada pode usar fio dental?
A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?
Um tufão pequeno: um tufinho?
O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
Em águas doces alguém se pode salpicar?
Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.
Mia Couto
sexta-feira, março 14, 2008
Dia Nacional da Poesia no Brasil
Amar e ser amado
Amar e ser amado! Com que anelo
Com quanto ardor este adorado sonho
Acalentei em meu delírio ardente
Por essas doces noites de desvelo!
Ser amado por ti, o teu alento
A bafejar-me a abrasadora frente!
Em teus olhos mirar meu pensamento,
Sentir em mim tu’alma, ter só vida
P’ra tão puro e celeste sentimento:
Ver nossas vidas quais dois mansos rios,
Juntos, juntos perderem-se no oceano —,
Beijar teus dedos em delírio insano
Nossas almas unidas, nosso alento,
Confundido também, amante — amado —
Como um anjo feliz... que pensamento!?
Castro Alves
Foto:RDj. Kaoy
Ciclo
O molar solitário de uma prostituta
que morrera no anonimato
tinha uma aplicação de ouro.
Os restantes, como por mudo acordo tácito,
tinham caído.
O funcionário da morgue arrancou-o,
pô-lo no prego e foi dançar.
É que, dizia ele,
só o que é terra à terra deve voltar.
Gottfried Benn visto no Palavras D'Ouro
Blues da morte de amor
Já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
mas afinal não morri, como se vê, ah não
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes. uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete:- morrer ou não morrer, darling, ah, sim.
Vasco Graça Moura
Foto:Oleg Seleznev
quinta-feira, março 13, 2008
Bom dia
Espanta-me, em verdade, o que fizemos, tu e eu
Até nos amarmos? Não estaríamos ainda criados,
E, infantilmente, sorvíamos rústicos prazeres?
Ou ressonávamos na cova dos Sete Santos Adormecidos?
Assim era. Salvo este, todos os prazeres são fantasia.
Se alguma vez qualquer beleza eu de facto vi,
desejei e obtive, não foi senão um sonho de ti.
E agora, bom dia às nossas almas que acordam,
E que, por medo, uma à outra se não contemplam;
Porque Amor todo o amor de outras visões influencia
E transforma um pequeno quarto numa imensidão.
Deixa que os descobridores partam para novos mundos,
E que aos outros os mapa mundos sobre mundos mostrem.
Tenhamos nós um só, porque cada um possui, e é um mundo.
A minha face nos teus olhos, e a tua nos meus, aparecem,
Que os corações veros e simples nas faces se desenham;
Onde poderemos encontrar dois melhores hemisférios,
Sem o agudo Norte, nem o declinado Oeste?
Só morre o que não foi proporcionalmente misturado,
E se nossos dois amores são um, ou tu e eu nos amamos
Tão igualmente que nenhum abranda, nenhum pode morrer.
John Donne
Tela:"Kiss" de Gustave Klimt
quarta-feira, março 12, 2008
Que maçada
Cansa! É uma maçada!
Os dias serem dias e terem horas,
E as horas serem certas,
E certa ter de ser eu
No dia e na hora,
E viver a hora que bate
Sem poder bater em retirada
Das horas que me aborrecem
Cansa! É uma maçada!
Ter de ser a mesma todo o dia,
Correcta, cortês, bem-educada:
"-Olá! Como vai? Está tudo bem? Bom dia!"
Sem poder bater em retirada,
E quebrar a harmonia,
Das horas certas e educadas,
Das horas correctas e banais,
Das horas corteses e normais
De que se fazem os dias.
E viver sem tempo e sem horas,
E viver sem nós ou espartilhos,
As horas que são as minhas horas!
Encandescente, in"Bestiário", pág.76, Editora Polvo
Foto:Margarida Delgado
terça-feira, março 11, 2008
Poema da malta das naus
Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.
Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.
Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das prais
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.
Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.
Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.
Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.
Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.
Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.
O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.
António Gedeão
Foto:Dirk Vermeirre
Amor é o olhar total, que nunca pode
Amor é o olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, como a chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre à àgua.
Fiama Hasse Pais Brandão
Foto:Yuri Bonder
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