quinta-feira, janeiro 31, 2008
Um poema às três e meia
Não o quero num poema às três e meia
saciado ressonando entre os lençóis.
não o quero sob os olhos
sobre a pele.
não o quero quando agora a sós
me quero.
é que o tempo embora seja o mesmo tempo
se renova e reedita (não se esvai).
e esse tempo de marés que
ora vazam
me segreda que em seu bojo
não o inclui.
deixe pois que se guardem as lembranças
dos olhares (desde as pontas dos dedos)
às palavras soletradas
pele-a-pele
que inda dizem em cada língua
eu e você.
não as quero num poema às três e meia.
nem a elas nem a mim nem a mais nada
que sussurre de nós dois sobre
lençóis.
(nem tampouco um poema
às três e meia).
quero só às três e meia assim dormir:
sossegada sob meus lençóis azuis.
se você aqui chegasse
eu diria:
não é hora meu amor
volte depois.
Márcia Maia
Foto:Stanmarek
Life on mars
Quando as coisas do coração
Não conseguem compreender
O que mente não faz questão
E nem tem forças pra obedecer
Quantos sonhos já destruí
E deixei escapar das mãos
Se o futuro assim permitir
Não pretendo viver em vão
Meu amor não estamos sós
Tem um mundo a esperar por nós
No infinito do céu azul
Pode ter vida em Marte
Então, vem cá me dá a sua língua
Então vem, eu quero abraçar você
Seu poder vem do sol
Minha medida
Então vem, vamos viver a vida
Então vem, senão eu vou perder quem sou
Vou querer me mudar para uma life on mars
Repete
Versão de Seu Jorge de um original de David Bowie
Imagem daqui
Diz-me o teu nome
Diz-me o teu nome - agora, que perdi
quase tudo, um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão
com os teus dedos - como as poeiras se
escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,
como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro - assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o
nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.
Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo - um nome sim.
Maria do Rosário Pedreira
Foto:Piotr Kowalik
Carta (Esboço)
Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir até de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possivel
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças:«Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar; que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.
Nuno Júdice
Foto:Yuri Bonder
quarta-feira, janeiro 30, 2008
A Bomba Suja
Introduzo na poesia
A palavra diarréia.
Não pela palavra fria
Mas pelo que ela semeia.
Quem fala em flor não diz tudo.
Quem me fala em dor diz demais.
O poeta se torna mudo
sem as palavras reais.
No dicionário a palavra
é mera idéia abstrata.
Mais que palavra, diarréia
é arma que fere e mata.
Que mata mais do que faca,
mais que bala de fuzil,
homem, mulher e criança
no interior do Brasil.
Por exemplo, a diarréia,
no Rio Grande do Norte,
de cem crianças que nascem,
setenta e seis leva á morte.
É como uma bomba D
que explode dentro do homem
quando se dispara, lenta,
a espoleta da fome.
É uma bomba-relógio
(o relógio é o coração)
que enquanto o homem trabalha
vai preparando a explosão.
Bomba colocada nele
muito antes dele nascer;
que quando a vida desperta
nele, começa a bater.
Bomba colocada nele
Pelos séculos de fome
e que explode em diarréia
no corpo de quem não come.
Não é uma bomba limpa:
é uma bomba suja e mansa
que elimina sem barulho
vários milhões de crianças.
Sobretudo no nordeste
mas não apenas ali
que a fome do Piauí
se espalha de leste a oeste.
Cabe agora perguntar
quem é que faz essa fome,
quem foi que ligou a bomba
ao coração desse homem.
Quem é que rouba a esse homem
o cereal que ele planta,
quem come o arroz que ele colhe
se ele o colhe e não janta.
Quem faz café virar dólar
e faz arroz virar fome
é o mesmo que põe a bomba
suja no corpo do homem.
Mas precisamos agora
desarmar com nossas mãos
a espoleta da fome
que mata nossos irmãos.
Mas precisamos agora
deter o sabotador
que instala a bomba da fome
dentro do trabalhador.
E sobretudo é preciso
trabalhar com segurança
pra dentro de cada homem
trocar a arma de fome
pela arma da esperança.
Ferreira Gullar
Foto:Sebastião Salgado
O Homem, as viagens
O homem, bicho da Terra tão pequeno
Chateia-se na Terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a Lua
Desce cauteloso na Lua
Pisa na Lua
Planta bandeirola na Lua
Experimenta a Lua
Coloniza a Lua
Civiliza a Lua
Humaniza a Lua.
Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte – ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
Pisa em Marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro – diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
Vê o visto – é isto?
Idem
Idem
Idem.
O homem funde a cuca se não for a Júpiter
Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o Sol, falso touro
Espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
Do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.
Carlos Drummond de Andrade
Imagem daqui
Mar de la mañana
Aquí que me detenga. Que también yo contemple un poco la
naturaleza.
Azul esplendoroso de un mar de la mañana
y de un cielo sin nubes, y una ribera amarilla: todo
hermosamente y con plenitud iluminado.
Aquí que me detenga. Y que me engañe como que veo esto
(lo vi en verdad un instante cuando recién me detuve);
y no también aquí mis fantasías,
mis recuerdos, las visiones de la voluptuosidad.
Constantino Cavafis
Foto:Zacarias Pereira da Mata
terça-feira, janeiro 29, 2008
O Poeta
Sou um estrangeiro neste mundo.
Sou um estrangeiro, e há na vida do estrangeiro uma solidão pesada e um isolamento doloroso. Sou assim levado a pensar sempre numa pátria encantada que não conheço, e a sonhar com os sortilégios de uma terra longínqua que nunca visitei.
Sou um estrangeiro para minha alma. Quando minha língua fala, meu ouvido estranha-lhe a voz. Quando meu Eu interior ri ou chora, ou se entusiasma, ou treme, meu outro Eu estranha o que ouve e vê, e minha alma interroga minha alma. Mas permaneço desconhecido e oculto, velado pelo nevoeiro, envolto no silêncio.
Sou um estrangeiro para o meu corpo. Todas as vezes que me olho num espelho, vejo no meu rosto algo que minha alma não sente, e percebo nos meus olhos algo que minhas profundezas não reconhecem.
Quando caminho nas ruas da cidade, os meninos me seguem gritando: “Eis o cego, demos-lhe um cajado que o ajude.” Fujo deles. Mas encontro outro grupo de moças que me seguram pelas abas da roupa, dizendo: “É surdo como a pedra. Enchamos seus ouvidos com canções de amor e desejo.” Deixo-as correndo. Depois, encontro um grupo de homens que me cercam, dizendo: “É mudo como um túmulo, vamos endireitar-lhe a língua.” Fujo deles com medo. E encontro um grupo de anciãos que apontam para mim com dedos trêmulos, dizendo: “É um louco que perdeu a razão ao freqüentar as fadas e os feiticeiros.”
Sou um estrangeiro neste mundo.
Sou um estrangeiro e já percorri o mundo do Oriente ao Ocidente sem encontrar minha terra natal, nem quem me conheça ou se lembre de mim.
Acordo pela manhã, e acho-me prisioneiro num antro escuro, freqüentado por cobras e insetos. Se sair à luz, a sombra de meu corpo me segue, e as sombras de minha alma me precedem, levando-me aonde não sei, oferecendo-me coisas de que não preciso, procurando algo que não entendo. E quando chega a noite, volto para a casa e deito-me numa cama feita de plumas de avestruz e de espinhos dos campos.
Idéias estranhas atormentam minha mente, e inclinações diversas, perturbadoras, alegres, dolorosas, agradáveis. À meia-noite, assaltam-me fantasmas de tempos idos. E almas de nações esquecidas me fitam. Interrogo-as, recebendo por toda resposta um sorriso. Quando procuro segura-las, fogem de mim e desvanecem-se como fumaça.
Sou um estrangeiro neste mundo.
Sou um estrangeiro e não há no mundo quem conheça uma única palavra do idioma de minha alma...
Caminho na selva inabitada e vejo os rios correrem e subirem do fundo dos vales ao cume das montanhas. E vejo as árvores desnudas se cobrirem de folhas num só minuto. Depois, suas ramas caem no chão e se transformam em cobras pintalgadas.
E as aves do céu voam, pousam, cantam, gorgeiam e depois param, abrem as asas e viram mulheres nuas, de cabelos soltos e pescoços esticados. E olham para mim com paixão e sorriem com sensualidade. E estendem suas mãos brancas e perfumadas. Mas, de repente, estremecem e somem como nuvens, deixando o eco de risos irônicos.
Sou um estrangeiro neste mundo.
Sou um poeta que põe em prosa o que a vida põe em versos, e em versos o que a vida põe em prosa. Por isto, permanecerei um estrangeiro até que a morte me rapte e me leve para minha pátria.
Khalil Gibran
Foto:Dirk Vermeirre
A Primeira Palavra
Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios humedeça
a primeira palavra do teu corpo.
Mia Couto "Sacado" à Gi
Foto:Jim Wrightwood
Aparição amorosa
Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.
Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.
Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto... o quê? a massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.
Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma ideia platónica no espaço?
O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.
Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.
Carlos Drummond de Andrade visto no Palavras D'Ouro
Foto:Ben Heys
segunda-feira, janeiro 28, 2008
Leitura Natural
Tendo lido os jornais
- infectado a mente, enauseado os olhos -
descubro, lá fora, o azul do mar
e o verde repousante que começa nas samambaias da sala
e recrudesce nas montanhas.
Para que perco tantas horas do dia
nessas leituras necessárias e escarninhas?
Mais valeria, talvez, nas verdes folhas, ler
o que a vida anuncia.
Mas vivo numa época informada e pervertida.
Leio a vida que me imprimem
e só depois
o verde texto que me exprime.
Affonso Romano de Sant'Anna
Foto:Maury Perseval
Ausência
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces.
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada.
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
Vinícius de Moraes
Foto:Pavel Krukov
Pra rua me levar
Não vou viver, como alguém que só espera um novo amor
Há outras coisas no caminho aonde eu vou
As vezes ando só, trocando passos com a solidão
Momentos que são meus e que não abro mão
Já sei olhar o rio por onde a vida passa
Sem me precipitar e nem perder a hora
Escuto no silêncio que há em mim e basta
Outro tempo começou pra mim agora
Vou deixar a rua me levar
Ver a cidade se acender
A lua vai banhar esse lugar
E eu vou lembrar você
É... mas tenho ainda muita coisa pra arrumar
Promessas que me fiz e que ainda não cumpri
Palavras me aguardam o tempo exato pra falar
Coisas minhas, talvez você nem queira ouvir
Já sei olhar o rio por onde a vida passa
Sem me precipitar e nem perder a hora
Escuto no silêncio que há em mim e basta
Outro tempo começou pra mim agora
Vou deixar a rua me levar
Ver a cidade se acender
A lua vai banhar esse lugar
E eu vou lembrar você...
Foto:Olexander Derevytskyy
Esta manhã encontrei o teu nome
Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.
No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida
foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama
e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.
Maria do Rosário Pedreira
Foto:Yuri Bonder
domingo, janeiro 27, 2008
Sonetos que não são
Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha.)
Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.
Hilda Hilst
Foto:Yuri Bonder
Quando partimos e acenamos junto ao rio
Quando partimos e acenamos junto ao rio
quando o barqueiro alcança a outra margem
quando respiramos o perfume dos campos em flor
na outra margem
o dia amanhece e nenhum baixio
nenhum barco e nenhuma jangada
não vagueiam pela água
não movem nenhuns montes
não separam nenhumas águas
não escurecem o dia
e nenhuns animais dão companhia
noutro lugar
para lá ou para cima e para baixo
para longe daqui
entrar na água ela leva-nos
quando nadamos e mergulhamos
seguindo peixes que nos conduzem
para lá para cima ou para baixo
Barqueiro e tu rio
aproximai-vos
agarrai-me
deixai-me ir para o outro lado
o bilhete
o preço
pago pela palavra
por uma palavra
pago
à letra
Eva Christina Zeller
Foto:Niko Guido
sábado, janeiro 26, 2008
Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colasanti
Foto:Yuri Bonder
Um Dia a solidão
Um dia, a solidão
- que dor de vergonha! -
levou-me pela mão
para seu baluarte
e disse-me " sonha!
O sonho é a tua lei"
E eu para ali fiquei,
Tão farto de ser eu,
A ouvir o meu coração
Bater em toda a parte,
Nos astros do chão,
Nas pedras do céu.
E eu para ali fiquei
A arrancar a carne das unhas,
Sozinho no meu jardim,
A viver sem testemunhas
No espelho de mim.
E eu para ali fiquei
Com o mundo a obedecer aos meus caprichos:
A luz, as flores, os bichos
E o sol enforcado na floresta,
Na alucinação
Duma corda de lava
A baloiçar ao vento da minha alma à solta…
E eu para ali fiquei
- pobre de mim que ignorava
a dor da verdadeira solidão
que é esta! Que é esta!…
Muita gente à minha volta
E eu aos tombos pelas ruas,
longe de todos e de mim,
a morrer pelos outros
em barricadas de estrelas e de luas.
José Gomes Ferreira
Foto:Maury Perseval
sexta-feira, janeiro 25, 2008
O Sol da tarde
Este quarto, como o conheço bem.
Agora alugam-se quer este quer o do lado
para escritórios comerciais. A casa toda tornou-se
escritórios de intermediários, e de comerciantes, e Sociedades.
Ah este quarto, não é nada estranho.
Perto da porta por aqui estava o sofá,
e diante dele um tapete turco;
ao pé a prateleira com duas jarras amarelas.
À direita; não, em frente, um armário com espelho.
Ao meio a sua mesa de escrever;
e três grandes cadeiras de vime.
Ao lado da janela estava a cama
onde nos amámos tantas vezes.
Estarão ainda os coitados nalgum lugar.
Ao lado da janela estava a cama;
o sol da tarde chegava-lhe até metade.
...De tarde quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana só . . . Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.
Konstandinos Kavafis
Foto:Jespe kristensen
O insecto
Das tuas ancas aos teus pés
quero fazer uma longa viagem.
Sou mais pequeno que um insecto.
Percorro estas colinas,
são da cor da aveia,
têm trilhos estreitos
que só eu conheço,
centimetros queimados,
pálidas perspectivas.
Há aqui um monte.
Nunca dele sairei.
Oh que musgo gigante!
E uma cratera, uma rosa
de fogo humedecido!
Pelas tuas pernas desço
tecendo uma espiral
ou adormecendo na viagem
e alcanço os teus joelhos
duma dureza redonda
como os ásperos cumes
dum claro continente.
Para teus pés resvalo
para as oito aberturas
dos teus dedos agudos,
lentos, peninsulares,
e deles para o vazio
do lençol branco
caio, procurando cego
e faminto teu contorno
de vaso escaldante!
Pablo Neruda
Foto:Elena & Vitaly Vasilieva
Numa tarde como esta
Ouço a chuva cair, e ninguém pode
saber, quanto a minha alma está sozinha...
Lembro-me bem: chovia assim, chovia.
- Numa tarde como esta ela foi minha.
E enquanto não chegava, eu me dizia:
- "Vai molhar-se todinha, o meu amor...
Tão frágil, que receio ao vento e à chuva,
antes dos beijos meus, se desintegre...
Onde estará neste momento ainda?
E enquanto não chegar, nada há de ver..."
E lá fora aumentando a chuva, e a chuva
me olhando, indiferente ao meu sofrer...
(Na penumbra do quarto, as coisas todas
eram sombras vazias, esperando.)
De repente: seus passos. Sim! seus passos...
Adivinho-lhe os olhos: não mentira.
E quando a porta se fechou, pensei
por um momento ainda, que não era,
- que eu é que louco imaginara tudo.
Encostou-se ao meu peito, e o coração
vaga escondida, contra o meu batia.
Beijei-lhe a boca... e então bebi-lhe as gotas
no pescoço, no rosto, nos cabelos...
-"Criancice, meu amor!... - molhada e fria esta roupa
há de até lhe fazer mal..."
Tão débil era o amor a aconchegar-se:
quase uma criança entre medrosa e alegre,...
Ah, a chuva que a molhou! ... E eu fui cuidá-la...
e em pouco, éramos dois, ardendo em febre. .
Numa tarde como esta ela foi minha,
molhada e trêmula a colhi nos braços.
Hoje, chove... A minha alma está sozinha...
E nunca mais hei de escutar seus passos...
J.G. de Araújo Jorge
Foto:Haleh Bryan
quinta-feira, janeiro 24, 2008
Ana Carolina e Seu Jorge-É isso aí
É isso ai
Como a gente achou que ia ser
A vida tão simples é boa
Quase sempre
É isso ai
Os passos vão pelas ruas
Ninguém reparou na lua
A vida sempre continua
E eu não sei parar de te olhar
eu não sei parar de te olhar
Não vou parar de olhar
Eu não me canso de olhar
Não sei parar
De te olhar
É isso ai
A quem acredita em milagres
A quem cometa maldade
A quem não saiba dizer a verdade
É isso ai
Um vendedor de flores
Ensina seus filhos a escolher seus amores
Eu não sei parar de te olhar
Eu não sei parar de te olhar
Não vou parar de te olhar
Eu não me canso de olhar
Não vou parar de te olhar
Foto:Robert Farnham
Certezas, precisam-se
Preciso urgentemente de adquirir meia dúzia de valores absolutos,
inexpugnáveis e impenetráveis,
firmes e surdos como rochedos.
Preciso urgentemente de adquirir certezas,
certezas inabaláveis, imensas certezas, montes de certezas,
certezas a propósito de tudo e de nada,
afirmadas com autoridade, em voz alta para que todos oiçam,
com desassombro, com ênfase, com dignidade,
acompanhadas de perfurantes censuras no olhar carregado, oblíquo.
Preciso urgentemente de ter razão,
de ter imensas razões, montes de razões,
de eu próprio me instituir em razão.
Ser razão!
Dar um soco furibundo e convicto no tampo da mesa
e espadanar razões nas ventas da assistência.
Preciso urgentemente de ter convicções profundas,
argumentos decisivos,
ideias feitas à altura das circunstâncias.
Preciso de correr convictamente ao encontro de qualquer coisa,
de gritar, de berrar, de ter apoplexias sagradas
em defesa dessa coisa.
Preciso de considerar imbecis todos os que tiverem opiniões diferentes
da minha,
de os mandar, sem rebuço, para o diabo que os carregue,
de os prejudicar, sem remorsos, de todas as maneiras possíveis,
de lhes tapar a boca,
de lhes cortar as frases no meio,
de lhes virar as costas ostensivamente.
Preciso de ter amigos da mesma cor, caras unhacas,
que me dêem palmadinhas nas costas,
que me chamem pá e me façam brindes
em almoços de camaradagem.
Preciso de me acocorar à volta da mesa do café,
e resolver os problemas sociais
entre ruidosos alívios de expectoração.
Preciso de encher o peito e cantar loas,
e enrouquecer a dar vivas,
de atirar o chapéu ao ar,
de saber de cor as frequências dos emissores.
O que tudo são símbolos e sinais de certezas.
Certezas!
Imensas certezas! Montes de certezas!
Pirinéus, Urais, Himalaias de certezas!
António Gedeão visto no Palavras D'Ouro
Foto:Piotr Kowalik
Morreu o riso
Morreu o riso
o comprido véu de chumbo
imobiliza-o
esmaga-o.
Rua a rua
estamos obrigados ao impossível
nada nos satisfaz
nem já nos importam
as carícias inesperadas
ou as lágrimas
húmidas e lentas
ou o balbucio de uma palavra
no frémito do beijo
os suspiros essenciais.
Competímos com o vento disparado
procurando
o frio voo das pombas
o aroma da dureza do nosso sangue
já não temos medo
da águia de Prometeu
a nossa liberdade não mora em nós
mas naquilo que fazemos
e o tempo
o cancro enorme
vai destruindo a cada instante
a grande vibração
na ampla densidade do vazio
nómada.
Com tanta luz por conquistar
estamos ainda à espera de manhãs
de nevoeiro
nos nossos corpos conformados
falta-nos é o sol
está a chover
a manhã escorre água
mas os prados estão secos
morreu o riso.
O silêncio reina pestilencial
nem Palhaços nem Chaplin
nenhum frémito
só cantos gregorianos
e alcalinos relentos
e toda a paciência do verme!
João Martim
Foto:Apostolos Diamantis
quarta-feira, janeiro 23, 2008
Cantiga de amigo
Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
--- o meu amigo está longe
e a distância é bastante.
Nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!
--- o meu amigo está longe
e a tristeza é bastante.
Nada a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai Camões Virgílio Shelley Dante:
o meu amigo está longe
e a saudade é bastante!
Ary dos Santos
Foto:Piotr Kowalik
Deixai os doidos governar entre comparsas
Deixai os doidos governar entre comparsas!
Deixai-os declamar dos seus balcões
Sobre as praças desertas!
Deixai as frases odiosas que eles disserem,
Como morcegos à luz do Sol,
Atónitas baterem de parede em parede,
Até morrerem no ar
Que as não ouviu
Nem percutiu
À distância da multidão que partiu!
Deixai-os gritar pelos salões vazios,
Eles, os portentosos mais que os mares,
Eles, os caudalosos mais que os rios,
O medo de estar sós
Entre os milhares
De esgares
Reflectidos nos colossais
Cristais
Hílares
Que a sua grandeza lhes sonhou!
Reinaldo Ferreira
Imagem daqui
Sabíamos do mar sem o sabermos
Sabíamos do mar sem o sabermos,
do mar dos mapas, da cor azul do mar,
dos naufrágios no mar,
do sol solto no mar.
Sabíamos do mar sem o sentirmos
nos poros dilatados pelo mar,
o verdejante mar escalando as montanhas
tão bruscas como o sal.
Sabíamos do mar em sinuosos sinos
assinalando a noite
com corações arrepiados,
abertos como mãos
sulcadas de cabelos e molhadas
de rugas e escamas.
Sabíamos do mar em signos, símbolos,
tropos e metáforas.
Sabíamos do mar?
Sabíamos o mar.
Sabíamos a mar
António Rebordão Navarro
Foto:Francesco Favretto
terça-feira, janeiro 22, 2008
Manifesto Anti-Dantas de Almada Negreiros, declamado por Mário Viegas
Sublime declamação de Mário Viegas!
Ninguém meu amor
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos
Sebastião Alba
Foto:José Marafona
A casada infiel
Eu que a levei ao rio,
pensando que era donzela,
porém tinha marido.
Foi na noite de Santiago
e quase por compromisso.
Apagaram-se os lampiões
e acenderam-se os grilos.
Nas últimas esquinas
toquei seus peitos dormidos,
e se abriram prontamente
como ramos de jacintos.
A goma de sua anágua
soava em meu ouvido
como uma peça de seda
rasgada por dez punhais.
Sem luz de prata em suas copas
as árvores estão crescidas,
e um horizonte de cães
ladra mui longe do rio.
Passadas as sarçamoras,
os juncos e os espinhos,
debaixo de seus cabelos
fiz uma cova sobre o limo.
Eu tirei a gravata.
Ela tirou o vestido.
Eu, o cinturão com revólver.
Ela, seus quatro corpetes.
Nem nardos nem caracóis
têm uma cútis tão fina,
nem os cristais com lua
reluzem com esse brilho.
Suas coxas me escapavam
como peixes surpreendidos,
a metade cheias de lume,
a metade cheias de frio.
Aquela noite corri
o melhor dos caminhos,
montado em potra de nácar
sem bridas e sem estribos.
Não quero dizer, por homem,
as coisas que ela me disse.
A luz do entendimento
me faz ser mui comedido.
Suja de beijos e areia,
eu a levei do rio.
Com o ar se batiam
as espadas dos lírios.
Portei-me como quem sou.
Como um cigano legítimo.
Dei-lhe um estojo de costura,
grande, de liso palhiço,
e não quis enamorar-me
porque tendo marido
me disse que era donzela
quando a levava ao rio.
Garcia Lorca
Foto:Haleh Bryan
***
Plena mulher, maçã carnal, lua quente,
espesso aroma de algas, lodo e luz pisados,
que obscura claridade se abre entre tuas colunas?
que antiga noite o homem toca com seus sentidos?
Ai, amar é uma viagem com água e com estrelas,
com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:
amar é um combate de relâmpagos e dois corpos
por um só mel derrotados.
Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,
tuas margens, teus rios, teus povoados pequenos,
e o fogo genital transformado em delícia
corre pelos tênues caminhos do sangue
até precipitar-se como um cravo noturno,
até ser e não ser senão na sombra de um raio.
Pablo Neruda
Foto:Niko Guido
segunda-feira, janeiro 21, 2008
Rotina
A angústia cola-se ao corpo
Como se fosse pele.
E o corpo torna-se errante,
Erróneo e estrangeiro.
As horas arrastam-se,
E o tempo é certeza
Que vivendo o dia,
Não o vivi inteiro.
Há a vontade da partida,
De despir a angústia,
De abandonar o corpo.
E voltar a um tempo que não me lembro.
Ou partir,
E esquecer quem fui.
Encandescente, in"Bestiário", pág.26, Edições Polvo
Foto:Elena Vasilieva
Encontro
Procuro os que sabem de mim.
Os que disseram ter me ouvido falar.
Os que me encontram, quando me perco.
Em quantos poemas estou presente?
Em qual deles era verdade?
Perco-me um pouco todo dia,
para me encontrar em tantos outros.
Não revelo, nem disfarço.
Apenas passo.
Mas há momentos em que me demoro.
Celso Brito
Foto:Sergey Militsky
Visto a esta luz
Visto a esta luz és um porto de mar
como reverberos de ondas onde havia mãos
rebocadores na brancura dos braços
Constroem-te um ponte
que deverá cingir-te os rins para sempre
O que há horrível no teu corpo diurno
é a sua avareza de palavras
és tu inutilmente iluminado e quente
como um resto saído de outras eras
que te fizeram carne e se foram embora
porque verdade sem erro certo verdadeiro
nada era noite bastante para tocarmos melhor
as nossas mãos de nautas navegando o espaço
os corpos um e dois do navio de espelhos
filhos e filhas do imponderável
de cabeça para baixo a ver a terra girar
Quero-te sempre como não querer-te?
mas esta luz de sinopla nas calças!
este interposto objecto
e o seu leve peso de eternidade.
Mário Cesariny
Foto:Niko Guido
Gozo e dor
Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
– Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso do gozo é dor.
Dói-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.
É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida – ou a razão.
Almeida Garrett
Foto:Paul Dzik
Literatura explicativa
O pôr-do-sol em espinho não é o pôr-do-sol
nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós mesmos anos antes
é lermos leibniz conviver com os medici
onze quilómetros ao sul de florença
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de eléctrico
Há quanto tempo se põe o sol em espinho?
Terão visto este sol os liberais no mar
ou antero de junto da ermida?
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr-do-sol em espinho é termos sido felizes
é sentir como nosso o braço esquerdo
Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém
mulheres recortadas nas vidraças
oliveiras à chuva homens a trabalhar
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de vozes solidão dos vidros
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o pôr-do-sol apenas pôr-do-sol.
Ruy Belo
Foto:Wayne Willis
domingo, janeiro 20, 2008
Poema que aconteceu
Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.
A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.
Carlos Drummond de Andrade
Foto:Rakesh Syal
Vai-te, Poesia!
Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos,
para fabricar sonhos
carregados de dinamite de lágrimas.
Vai-te, Poesia!
Não quero cantar.
Quero gritar!
José Gomes Ferreira
Foto:Piotr Kowalik
O sorriso
Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro,apetecia
entrar nele,tirar a roupa,ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr,navegar,morrer naquele sorriso.
Eugénio de Andrade
Foto:Yuri Bonder
Lenda dos sonhos
Noite
lenta, eterna, magia dos espíritos...
Apalpo a distância do movimento...
O brilho profundo do luar
Aquece o gesto sentido do amor
E transformo-te na lenda dos sonhos.
As estrelas cantam o brilho sublime
Dentro da ternura do teu olhar
Reflectindo sobre a imensidão do oceano
O calor sensual do teu abraço.
Murmúrios delicioso povoam os céus
Embalando a doçura dos teus beijos
E o arco-íris eleva-se no horizonte
Colorindo as ondas quentes dos teus cabelos
Por onde navegam as verdades dos teus sentimentos.
Os sentidos flutuam pelo aroma verdadeiro
Da simplicidade da tua generosidade
Criando a simbiose dos teus desejos.
Na canção embriagante dos sinos celestiais
Envolvo-me na tua sinceridade
E torno-te eterna dentro do meu peito.
Jorge Viegas
Foto:Niko Guido
sábado, janeiro 19, 2008
Poema da menina tonta
A menina tonta passa metade do dia
a namorar quem passa na rua,
que a outra metade fica
p'ra namorar-se ao espelho.
A menina tonta tem olhos de retrós preto,
cabelos de linha de bordar,
e a boca é um pedaço de qualquer tecido vermelho.
A menina tonta tem vestidos de seda
e sapatos de seda,
é toda fria, fria como a seda:
as olheiras postiças de crepe amarrotado,
as mãos viúvas entre flores emurchecidas,
caídas da janela,
desfolham pétalas de papel...
No passeio em frente estão os namorados
com os olhos cansados de esperar
com os braços cansados de acenar
com a boca cansada de pedir...
A menina tonta tem coração sem corda
a boca sem desejos
os olhos sem luz...
E os namorados cansados de namorar...
Eles não sabem que a menina tonta
tem a cabeça cheia de farelos.
Manuel da Fonseca
Foto:Yuri Bonder
Poema XLIV
Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.
Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.
Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desafortunado.
Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.
Pablo Neruda
Foto:Adolfo Valente
Seus olhos
Seus olhos --- se eu sei pintar
O que os meus olhos cegou ---
Não tinham luz de brilhar.
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do Destino.
Divino, eterno! --- e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, num só momento que a vi,
Queimar toda alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.
Almeida Garrett
Foto:Stanmarek
sexta-feira, janeiro 18, 2008
Andava a lua nos céus
Andava a lua nos céus
Com o seu bando de estrelas
Na minha alcova
Ardiam velas
Em candelabros de bronze
Pelo chão em desalinho
Os veludos pareciam
Ondas de sangue e ondas de vinho
Ele, olhava-me cismando;
E eu,
Plácidamente, fumava,
Vendo a lua branca e nua
Que pelos céus caminhava.
Aproximou-se; e em delírio
Procurou avidamente
E avidamente beijou
A minha boca de cravo
Que a beijar se recusou.
Arrastou-me para ele,
E encostado ao meu ombro
Falou-me de um pagem loiro
Que morrera de saudade
À beira-mar, a cantar...
Olhei o céu!
Agora, a lua, fugia,
Entre nuvens que tornavam
A ainda noite sombria.
Deram-se as bocas num beijo,
Um beijo nervoso e lento...
O homem cede ao desejo
Como a nuvem cede ao vento
Vinha longe a madrugada.
Por fim,
Largando esse corpo
Que adormecera cansado
E que eu beijara, loucamente,
Sem sentir,
Bebia vinho, perdidamente
Bebia vinha..., até cair.
António Botto
Foto:Vladimir Labaj
Antítese
Na exatidão
sou a distância maior
entre dois pontos distintos
No sonho
sou o medo daquele
que está sempre acordado
a espreitar o inimigo
Na vida
sou o saltimbanco
que apresenta seu espetáculo
para uma platéia entorpecida
No filme
sou a cena de ação
onde morre o mocinho
Na fuga
sou a distância que separa
o ataque da presa
No amor
sou a semelhança cômica
entre a careta do orgasmo
e a agonia da morte
Na noite
sou a prostituta sem nome
de sexo carnudo
servido a todas
No beijo
sou a boca de homem
com lábios fortes
apertando a alma
sem sentimentos
Na hipótese
sou a dúvida
que desmente a tese
e mantém o problema
No fim
serei poeta
para poder tudo outra vez.
Celso Brito
Foto:Piotr Kowalik
Infinitamente presente
No voo
pela noite dos leves mistérios
Onde as estrelas se transformam em anjos,
O sonho liberta um calor profundo,
Enchendo o infinito de fogo e paixão.
O murmúrio dourado dos teus olhos,
Transforma-se no raio de luz
Que multiplica a estrada da vida
Clarificando a imagem do amanhã.
Os segredos vão voando docemente
Por entre vagas de suspiros,
E as recordações vagueando
Pelos recantos da memória transparente.
Simples histórias quentes,
Remexendo com o passado recente,
Crepúsculo de energia crescente
Paraíso da sereia apaixonada.
No esplendor da viagem
Encontro o brilho da canção
Sorrindo alegremente
E descubro a pureza da tua imagem.
Jorge Viegas
Foto:Yuri Bonder
quinta-feira, janeiro 17, 2008
Cidade Noturna
Crescem seios e sexos
nos banheiros públicos
das praças de silicone
uma rua leva ao cais
outra ao caos
distribuo panfletos católicos
em avenidas de nossa senhora
os sinos contam histórias
que me excitam e empalidecem
visito dom zico
em taberna de palha
e teto de zinco
que me serve café com notícias
um relógio mede o tempo
e o fedor da carniça
a noite revela o que o dia esconde:
o vai e vem das esquinas
Celso Brito
Foto:Alex Sade
Pediste e te dei
Tu, pediste a rosa,
Dei-te.
Uma vez em meus braços,
pediste-os,
eu dei.
Com, doçura pediste,
fidelidade,
e dei.
Quando falei vantagens,
dos sonhos meus,
tu pediste,
e os dei.
Para o mundo andar,
minhas pernas,
as dei.
O tempo fez uma volta,
o arco reluziu,
te dei.
Meu tronco,
o abraçaste,
e a ti o dei.
O horizonte infinito,
tal qual a desejo,
e o dei.
Minha cabeça,
junto os pensamentos,
a ti dei.
Nada mais restando,
para te dar,
devolveste-os.
E, novamente,
não pediste a rosa
mas a ti dei.
Uma vez pediste-me,
por inteiro,
e me dei.
Eis o ciclo do amor:
esse se dar,
receber-se de volta,
e, de novo, dar-se.
José do Vale Pinheiro Feitosa
Foto:Antonio Díaz
quarta-feira, janeiro 16, 2008
Entre a sombra...
Entre a sombra e a noite há um submisso instante
de preparação.
Aberto espaço onde aves não cantam,
imaculado, instantâneo refúgio.
Entre a sombra e a noite, único passo!
— E é serena e frágil a presença
dos nossos vultos passageiros
isolados na própria condição.
Onde nada se move, uma estrela suspensa.
E tão inutilmente despedaço o encanto,
e tão súbita me vem uma tristeza antiga,
que entre a sombra e a noite encontro o meu refúgio
— o intocável, único espaço.
Maria Alberta Menéres
Foto:Yuri Bonder
Quanto de ti, Amor...
Quanto de ti, amor, me possuiu no abraço
em que de penetrar-te me senti perdido
no ter-te para sempre -
Quanto de ter-te me possui em tudo
o que eu deseje ou veja não pensando em ti
no abraço a que me entrego -
Quanto de entrega é como um rosto aberto,
sem olhos e sem boca, só expressão dorida
de quem é como a morte -
Quanto de morte recebi de ti,
na pura perda de possuir-te em vão
de amor que nos traiu -
Quanta traição existe em possuir-se a gente
sem conhecer que o corpo não conhece
mais que o sentir-se noutro -
Quanto sentir-te e me sentires não foi
senão o encontro eterno que nenhuma imagem
jamais separará -
Quanto de separados viveremos noutros
esse momento que nos mata para
quem não nos seja e só -
Quanto de solidão é este estar-se em tudo
como na auséncia indestrutível que
nos faz ser um no outro -
Quanto de ser-se ou se não ser o outro
é para sempre a única certeza
que nos confina em vida -
Quanto de vida consumimos pura
no horror e na miséria de, possuindo, sermos
a terra que outros pisam -
Oh meu amor, de ti, por ti, e para ti,
recebo gratamente como se recebe
não a morte ou a vida, mas a descoberta
de nada haver onde um de nós não esteja.
Jorge de Sena
Foto:Niko Guido
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