terça-feira, fevereiro 28, 2006
Coisas mal resolvidas
Foto:Misha Gordin
Existem vários casos mal resolvidos
E crimes insolúveis
Várias cartas não respondidas
Telefonemas mal explicados
Mal entendidos absurdos
Recados de terceiros
Cheques de terceiros
Cobradores em sua porta
Telemarketing de agencias de cobrança
Ervas daninhas em sua horta
Amizades coloridas
Quereres sem cor
Paixões assentadas em túmulos expostos
Livros largados na metade
Verdades sem pudor
Argumentos não assimilados
Ressacas persistentes, granidos de dentes
Falta de juízo,
falta de siso
ausência destes.
Sujeiras embaixo do tapete
Visitas não desejadas
Revistas pornográficas na sala de estar
Comidas sem tempero, sem sal
Mal hálito
Olhares de canto-de-olho
Desconfianças, alianças por interesse e sem interesse
Filmes que acabam antes das fotos
Fotos queimadas na revelação
Coisas perdidas
Feridas que coçam
Decepções, esperanças, crenças, desilusões
Mandingas, macumbas, rezas, orações
Aflições, desejos, sugestões, lamentações
Discriminação, preconceitos, raiva
Desrespeitos, desculpas, desculpas
Fodas mal dadas, gozos interrompidos,
Ejaculações precoces
Beijos quadrados
Sem tesão
Vidas perdidas, vidas cruzadas,
vidas públicas, vidas privadas
vidas rivais, reencontros
no tempo, espaço ...
Dúvidas que aceleram cardiacamente
O que está iminente, passível, possível
Se resolvendo num século ou num desatino
Suspense, non-sense, susto, trilha dos sentidos
Destino..., destino..., destino..., destino...,
destino..., destino,....
Umberto Mauro
Retirado daqui
Foto:Stanmarek
Sem recreio
Um carro correndo na ponte
Um sol que vertia sangue
Sobre o monte...
Onde os poemas
não escritos?
Onde o poema que
não fiz por
que não tinha empregada
ou
porque a neném estava
com diarréia?
Quando
escrever poemas
no banheiro
Se crianças me
reclamam por inteiro?
Meus poemas?
Como encontrá-los
na madrugada
se de noite
me deito
Cansada?
Mas eles me acenam:
da água suja do balde
sapóleo branco do piso
Onde meus poemas
o lixo
Das aulas que
dou
como louca
E ao diretor custam
Muito pouco?
Onde a exata dimensão
freia o que sinto
Corre o que sangro.
Suzana Vargas
Foto:Elena Vasileva
segunda-feira, fevereiro 27, 2006
O deserto onírico
Quando a minha jornada é um deserto,
à noite revejo-me nas areias do Egipto,
e desfila a minha vida, de perfil.
Existo, mas não ponho nem disponho
e acordo aflito,
porque afinal, feito matéria de sonho,
sinto-me breve,
vago,
e mesmo desperto, muito frágil.
Poema:Manuel Filipe
Foto:João Pedro Sousa
domingo, fevereiro 26, 2006
Poema da amante
Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.
Adalgisa Nery
Foto:Eric Richmond
Entranhas
O sorriso caiu.
Entre as pétalas de mim:
o cio.
Esperma aos farelos.
A lua bóia na taça de sangue.
Entre os sopros selvagens,
tórridos toques
(sinceros como um cadáver).
Com os dedos enfiados no vento,
quero lamber a liberdade.
Já esfacelei minhas lágrimas...
Enquanto o sol
baba sobre mim,
vou varrendo minha sombra
com restos de beijos...
A esperança dormiu.
Entre os subúrbios de mim:
a dor.
Bolhas de areia,
cacos de suor...
Há bolor nas estrelas.
Eis-me pecado!
Eis-me boca!
Pouca coisa:
alfinetes incendiados.
O amor vai pingando sobre o telhado,
amargo enquanto vocábulo:
deserto parido.
A vida é um estupro:
nasci para morrer.
Renascer das cinzas,
das sobras,
das teias...
Vou lutar até o orgasmo.
A noite
arrotou.
Assim seja,
assim sangre...
Entre a poeira de mim:
o prazer.
Caroço de paixão.
Vou morrer...
Vou morrer... Mas é só para te humilhar.
Vem...
Degola meu cheiro.
Não sou mulher,
sou distanásia.
Agostina Akemi
Foto:José Marafona
sábado, fevereiro 25, 2006
Errância
por gestos rotineiros,
sem importância,
e, sobretudo, com a errância
do olhar.
Poema:Manuel Filipe
Foto:Victor Melo
Seios
Teus seios pequeninos que em surdina,
pelas noites de amor, põem-se a cantar,
são dois pássaros brancos que o luar
pousou de leve nessa carne fina.
E sempre que o desejo te alucina,
e brilha com fulgor no teu olhar,
parece que seus seios vão voar
dessa carne cheirosa e purpurina.
Eu, pare tê-los sempre nesta lida,
quisera, com meus beijos, desvairado,
poder vesti-los, através da vida,
para vê-los febris e excitados,
de bicos rijos, ávidos, rasgando
a seda que os trouxesse encarcerados.
Hildo Rangel
Foto:Michelle 7
sexta-feira, fevereiro 24, 2006
Beijemo-nos, apenas...
Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.
Guarda
Para um momento melhor
Teu viril corpo trigueiro.
O meu desejo não arde;
E a convivência contigo
Modificou-me - sou outro...
A névoa da noite cai.
Já mal distingo a cor fulva
Dosa teus cabelos - És lindo!
A morte,
devia ser
Uma vaga fantasia!
Dá-me o teu braço: - não ponhas
Esse desmaio na voz.
Sim, beijemo-nos apenas,
Que mais precisamos nós?
António Botto
Foto:Lutz Behnke
Este poema é absolutamente desnecessário
Este poema é absolutamente desnecessário
pela simples razão de que poderia nunca ser escrito
e ninguém sentiria a sua falta
Esta é a sua liberdade negativa a sua vacuidade dinâmica
e o movimento da sua abolição
a partir do seu vazio inicial
Mas qual é a sua matéria qual o seu horizonte?
Traçará ele uma linha em torno da sua nulidade
e fechar-se-á como uma concha de cabelos ou como um
útero do nada?
Ou será a possibilidade extrema de uma presença inesperada
que surgiria quando chegasse a essa fronteira branca
que já não separaria o ser do nada e no seu esplendor absoluto
revelaria a integridade do ser antes de todas as imagens
a sua violência inaugural a sua volúvel gestação?
António Ramos Rosa
Imagem daqui
quinta-feira, fevereiro 23, 2006
Ausente
simplesmente ausente
ou nulo,
como corda de viola, por tanger,
sem que nada se prendesse ao meu olhar
ou às mãos,
e que o presente
fosse o instante de esquecer.
Poema:Manuel Filipe
Foto:Stanmarek
É o instante de esquecer.
No meu olhar,
Estou ausente
Nada me prende.
Wind (Desculpem a ousadia de "responder" a Manuel Filipe)
Menino De Oiro
O meu menino é d'oiro
É de oiro fino
Não façam caso que é pequenino
O meu menino é d'oiro
D'oiro fagueiro
Hei-de levá-lo no meu veleiro.
Venham aves do céu
Pousar de mansinho
Por sobre os ombros do meu menino
Do meu menino, do meu menino
Venha comigo venham
Que eu não vou só
Levo o menino no meu trenó.
Quantos sonhos ligeiros
pra teu sossego
Menino avaro não tenhas medo
Onde fores no teu sonho
Quero ir contigo
Menino de oiro sou teu amigo
Venham altas montanhas
Ventos do mar
Que o meu menino
Nasceu pra amar
Venha comigo venham
Que eu não vou só
Levo o menino no meu trenó.
O meu menino é d'oiro
É d'oiro é de oiro fino ....
Venham altas montanhas
Ventos do mar ....
José Afonso
Foto:Victor Melo
terça-feira, fevereiro 21, 2006
Dama do lago
Devolvi as armas à dama do lago,
e os nossos húmidos dedos se tocaram,
quando a mão, sem rosto, veio dos limos
a reclamar os dias negros, que passaram.
Senhora do destino, aqui te trago
o sangue, a morte e o terror que decidimos,
mas meu punhal, meu gládio, se embotaram
e nem assim o mundo redimimos.
Ao teu reino pertenço, aqui me tens
a procurar solitária companhia,
meu coração, meu braço, sãoreféns
da fatal atracção dessa mão fria.
Poema:Manuel Filipe
Foto:Stanmarek
O fogo que na branda cera ardia
O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.
Como de dous ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.
Ditosa aquela flama, que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista de que o mundo tremer deve!
Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.
Luís de Camões
Foto:Stanmarek
segunda-feira, fevereiro 20, 2006
O tempo, subitamente solto
O tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.
José Luís Peixoto
Foto:Stanmarek
Pensamento sobre boémia
Oscar Wilde
Imagem daqui
domingo, fevereiro 19, 2006
A uma mulher amada
Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.
Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem-querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.
Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala... eu quase morro ... eu tremo.
Safo(de "Clássicos do erotismo, vol. 2")
Foto:Zet
Gazel III (do amor desesperado)
A noite não quer vir
para eu tu não venhas,
nem eu posso ir.
Mas eu irei
nem que um sol de lacraus me devore a fronte.
Mas tu virás
com a tua língua queimada pela chuva de sal.
O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Mas eu irei
entregando aos sapos meu cravo mordido.
Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridade.
Nem a noite nem o dia querem vir
para que eu por ti morra
e tu morras por mim.
Frederico García Lorca
Foto:Yuri B
sábado, fevereiro 18, 2006
A que há-de vir
Aquela que dormirá comigo todas as luas
É a desejada de minha alma.
Ela me dará o amor do seu coração
E me dará o amor da sua carne.
Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo
E virá a mim com os peitos e virá a mim com os lábios
Ela é a querida da minha alma
Que me fará longos carinhos nos olhos
Que me beijará longos beijos nos ouvidos
Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso.
Ela só verá minhas alegrias e minhas tristezas
Temerá minha cólera e se aninhará no meu sossego
Ela abandonará filho e esposo
Abandonará o mundo e o prazer do mundo
Abandonará Deus e a Igreja de Deus
E virá a mim me olhando de olhos claros
Se oferecendo à minha posse
Rasgando o véu da nudez sem falso pudor
Cheia de uma pureza luminosa.
Ela é a amada sempre nova do meu coração
Ela ficará me olhando calada
Que ela só crerá em mim
Far-me-á a razão suprema das coisas.
Ela é a amada da minha alma triste
E a que dará o peito casto
Onde os meus lábios pousados viverão a vida do seu coração
Ela é a minha poesia e a minha mocidade
É a mulher que se guardou para o amado de sua alma
Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela dele.
Ela é o amor vivendo de si mesmo.
É a que dormirá comigo todas as luas
É a que eu protegerei contra os males do mundo.
Ela é a anunciada de minha poesia
Que eu sinto vindo a mim com os lábios e com os peitos
E que será minha, só minha, como a força é do forte e a poesia é do poeta.
Vinícius de Moraes
Foto:Shubina Olga
A Benção da Locomotiva
A obra está completa. A máquina flameja,
Desenrolando o fumo em ondas pelo ar.
Mas, antes de partir mandem chamar a Igreja,
Que é preciso que um bispo a venha baptizar.
Como ela é concerteza o fruto de Caím,
A filha da razão, da independência humana,
Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,
E convertam-na à fé Católica Romana.
Devem nela existir diabólicos pecados,
Porque é feita de cobre e ferro; e estes metais
Saem da natureza, ímpios, excomungados,
Como saímos nós dos ventres maternais!
Vamos, esconjurai-lhes o demo que ela encerra,
Extraí a heresia ao aço lampejante!
Ela acaba de vir das forjas d'Inglaterra,
E há-de ser com certeza um pouco protestante.
Para que o monstro corra em férvido galope,
Como um sonho febril, num doido turbilhão,
Além do maquinista é necessário o hissope,
E muita teologia... além de algum carvão.
Atirem-lhe uma hóstia à boca fumarenta,
Preguem-lhe alguns sermões, ensinem-lhe a rezar,
E lancem na caldeira um jorro d'água benta,
Que com água do céu talvez não possa andar.
Guerra Junqueiro
Foto:Geoffroy Demarquet
sexta-feira, fevereiro 17, 2006
Arte-final
Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
– quem toma uma por outra
confunde e mente.
Affonso Romano de Sant'Anna
Foto:Stanmarek
quinta-feira, fevereiro 16, 2006
Da grande página aberta do teu corpo
Da grande página aberta do teu corpo
sai um sol verde
um olhar nu no silêncio de metal
uma nódoa no teu peito de água clara
Pela janela vejo a pequenina mão
de um insecto escuro
percorrer a madeira do momento intacto
meus braços agitam-te como uma bandeira em brasa
ó favos de sol
Da grande página aberta
sai a água de um chão vermelho e doce
saem os lábios de laranja beijo a beijo
o grande sismo do silêncio
em que soberba cais vencida flor
António Ramos Rosa
Foto:Shubina Olga
segunda-feira, fevereiro 13, 2006
Libertação
Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.
Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.
Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.
Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.
Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Longe daquí, onde queiras,
a vida será maior.
Nem as esp'ranças do céu
me conseguem demover
Este amor é teu e meu:
só na terra o queremos ter.
David Mourão-Ferreira
Foto:Igor L.
domingo, fevereiro 12, 2006
Amizade
Oscar Wilde
Tela:Picasso
Endimião e Selene
Teócrito, poeta do século III conta de uma forma inequivocamente grega, a história de Endimião e Selene.
"Este jovem, cujo nome é tão conhecido, tem uma história muito breve. Alguns dos poetas dizem que era um rei, e outros, caçador, mas a opinião predominante é a de que era pastor. Também há consenso geral sobre o fato de que se tratava de um jovem de beleza incomparável, e de que foi esta a causa de seu destino singular.
Quando Endimião, o pastor,
Guardava o seu rebanho,
Ela, a Lua, Selene,
Viu-o, amou-o e procurou-o,
Descendo do Céu
Para a clareira de Latmos,
Onde o beijou e deitou-se a seu lado.
Abençoado o destino do pastor,
Que ficou para sempre a dormir
Isento de todas as perturbações
Endimião, o pastor."
Foto:Illich
Feminino indefinido singular
Quisera ser a mulher amada
que faz amor que faz sofrer
que é sempre causa e se faz viver
que é vida e tempo e se faz morrer
que é sempre medo e se faz temer
que é pura e casta e se faz pecar
que é forte e bela e se faz chorar
que é carne e osso e se faz desejar
que é ré culpada e se faz perdoar
que tem pudor e se faz despir
que é mulher e se faz fingir
que é lua e noite e se faz dormir
que pensando em ficar se faz partir
que é divina e se faz tangível
que sendo virgem se faz possível
que é à-toa e se faz difícil
que é mentirosa mas se faz crível.
Xenïa Antunes
Foto:Ira Bordo
Frases sobre ateismo
Angela Rô Rô
Foto:A.Obolenski
PS:Esta frase está no grupo de GLS (gays, lésbicas e simpatizantes)
Soneto da posse
Amar é possuir. Não mais que o gozo
quero. Não sei porque desejas tanto
escravizar-me; escravizar-te. Quanto
menos me tens, mais me terás. Gostoso
é ser-me livre, alegre, escandaloso –
o peito aberto pra cantar meu canto;
os olhos claros pra ver todo encanto;
as mãos aladas, pássaros sem pouso.
Abre-me o corpo, vem dá-me o teu vale,
e a esconsa flor que ocultas hesitante,
pois o que falo o falo sem que fale
em tom de amor. Quero vaivem, espasmo -
um corpo a corpo num só corpo palpitante,
dois no galope até o sol de um só orgasmo.
Ildásio Tavares
Foto:Shubina Olga
sábado, fevereiro 11, 2006
Castigo
Desencaixo-me displicente.
Esvaziei-me, enfim.
Teu corpo
ainda queima,
tua mão ainda afaga.
Jamais
o prazer fora tão perverso.
Escondo meus lábios
atrás do batom.
Teus olhos
– canibais marinhos –
começam a se desfazer.
Não consigo te acompanhar.
És tão tolo...
Ainda me engasgo
com um último orgasmo.
Venci.
Sou aquela
que pela primeira vez
amas.
Mas a noite se esvai.
Sei que vais me tocar:
deixarei?
Não quero me amarrotar.
Tua boca me implora,
só que as estrelas se apagaram.
Vou-me embora
para nunca mais...
Se fosse amor,
não acabaria.
Agostina Akemi
Foto:Yuri B
Ante la sombra virgen
Siempre yo penetrándote,
pero tú siempre virjen,
sombra; como aquel día
en que primero vine
llamando a tu secreto,
cargado de afán libre.
¡Virjen oscura y plena,
pasada de hondos iris
que apenas se ven; toda
negra, con las sublimes
estrellas, que no llegan
(arriba) a descubrirte!
Juan Ramón Jiménez
Foto:Stanmarek
sexta-feira, fevereiro 10, 2006
O cântico do mar
Eis que estremecemos,
corpos aturdidos, ao apelo do mar,
que desinquietou
o silêncio húmido das rochas na praia.
Perde-se a palavra no eco das ondas,
pois ficamos hirtos, de ouvidos imersos
no cântico do mar:
Fúria de asas brancas que ronda no vento
seixos que deslizam, num vai-vem feliz,
estalidos furtivos de conchas quebradas,
e subindo mais alto, o troar contínuo
do cântico do mar.
Voltamos no tempo, solta-se ternura,
aquieta-se o rosto, nas sombras, na luz,
e sorrimos absortos, de ouvidos atentos
ao coral tremendo,
do cântico do mar.
Poema:Manuel Filipe
Foto:Stanmarek
Ode ao fígado
Modesto,
organizado
amigo,
trabalhador
profundo,
deixa-me te dar a asa
do meu canto,
o golpe
de ar,
o salto
de minha ode:
ela nasce
de tua máquina
invisível,
ela voa
partindo de teu infatigável
e fechado moinho,
entranha
delicada
e poderosa
sempre viva e obscura.
Enquanto
o coração sonha e atrái
a partitura do bandolin,
lá dentro
tu filtras
e repartes,
separas
e divides,
multiplicas
e engraxas,
sobes
e recolhes
os fios e os gramas
da vida, os últimos
licores,
as íntimas essências.
Víscera
submarina,
medidor
do sangue,
vives
cheio de mãos
e de olhos
medindo e transvasando
em teu escondido
quarto
de alquimista.
Amarelo
é o teu sistema
de hidrografia vermelha,
búzio
da mais perigosa
profundidade do homem
ali sempre
escondido,
sempiterno,
na usina,
silencioso.
E todo
sentimento
ou estímulo
cresceu em teu maquinário,
recebeu alguma gota
de tua elaboração
infatigável,
ao amor agregaste
fogo ou melancolia,
uma pequena
célula equivocada
ou uma fibra
gasta em teu trabalho
e o aviador se engana de céu,
e o temor se precipita em assovio,
o astrônomo perde um planeta.
Como brilham acima
os olhos feiticeiros
da rosa,
os lábios
do cravo
matutino!
Como ri
no rio
a donzela!
E abaixo
o filtro e a balança,
a delicada química
do fígado,
a adega
dos câmbios sutis:
ninguém
o vê ou o canta,
porém,
quando
envelhece
ou desgasta seu morteiro,
os olhos da rosa se acabaram,
o cravo murchou sua dentadura
e a donzela não cantou no rio
Austera parte
ou todo
de mim mesmo,
avô do coração,
moinho
de energia:
te canto
e temo
como se foras juiz,
metro,
fiel implacável,
e se não posso
entregar-me amarrado à pureza,
se o excessivo
comer
ou o vinho hereditário de minha pátria
pretenderem
perturbar minha saúde
ou o equilíbrio da minha poesia,
de ti,
monarca obscuro,
distribuidor de mel e de venenos,
regulador de sáis,
de ti espero justiça:
Amo a vida: cumpre! Trabalha!
Não detenhas o meu canto.
Pablo Neruda (trad. Celso Japiassu)
Imagem daqui
quinta-feira, fevereiro 09, 2006
Numa
praia
Em cada corpo recomeça o mundo,
mas onde então acaba este começo?
Amor não sabe mais o que é profundo,
vem da pele e respira só no verso.
Passamos a toalha pelo corpo,
com o suor a enxugar a morte:
há gotas de água fria no teu rosto,
em ti meus dedos lêem sua sorte.
Um riso nos chamou,fulgor ou seta,
e o dia se refez sem mais promessa.
Nos meus dedos ficou a ferida aberta:
só no teu corpo o mundo recomeça.
Luís Filipe Castro Mendes
Foto:Stanmarek
O nome parece a infância
O nome parece a infância.
Quando na velhice é termos vindo
Sem pressa
Para dentro
Do nome se esvazia o corpo quando o corpo cai
É um fruto.
O nome é ainda
O modo como chamas.
O nome é a arma contra mim. O maior perigo.
Com os teus lábios podes destruir-me.
Daniel Faria
Foto:Sergej Ryzhkov
quarta-feira, fevereiro 08, 2006
Noutra
praia
Mas tu pensas
que o mar te não esqueceu:
por isso voltas cada ano a esta praia
onde tudo o que permanece te ignora;
e encaras o mar como se fosses tu,
ainda tu,
quem recebe na face a mudança dos ventos
Luís Filipe Castro Mendes
Foto:Yuri B
uma certa quantidade
Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade
Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião
Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá
E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar
Que susto se de repente alguém a sério encontrasse
que certo se esse alguém fosse um adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro
Mário Cesariny
Foto:José Marafona
Demo-Crácia
Agora digam lá se não sou democrata e não uso a liberdade de imprensa...
PS:Todas as imagens retiradas da net.
terça-feira, fevereiro 07, 2006
Na noite
Na noite
Na noite
Eu uni-me à noite
À noite sem limites
À noite.
Minha, bela, minha.
Noite
Noite de nascimento
Que me enche do meu grito
Das minhas espigas.
Tu que me invades
Que marulhas, marulhas
Que marulhas a toda a volta
E fumegas, és tão densa
E muges
És a noite.
Noite que jaz, noite implacável.
E a sua fanfarra, e a sua praia
A sua praia ao alto, a sua praia em toda a parte
A sua praia bebe, a sua lei é rei, e tudo se enleia sob ela
Sob ela, sob mais fino que um fio
Sob a noite
A Noite.
Henri Michaux
Foto:José Marafona
Erotikós
Vê?
Posso me romper a um simples toque
de seus dentes brancos,
inundando sua boca com o doce fluido
de que sou feita, néctar dos deuses.
E vou: deixando desejo, doçura de beijo,
despertando sua gula, vontade e sensualidade.
Ah desejo, para mim voltado...
Como o retribuo! Me mostro só sua,
sou puro açúcar, sou mais do que mel.
Seu céu eu alcanço, em sua língua descanso,
e depois...escorro por sua garganta.
Cecília Quadros
Foto:Stanmarek
Felismina
Com música
e jogo de luzes com nos circos
desabotoa-te lentamente, Felismina
desabotoa-te ao cumulo da regras do cabaré
desabotoa-te Felismina
Aqui na cidade
a cada milímetro do teu descaramento
vais evoluindo alvejada a focos na barriga
vais evoluindo cada vez mais nua
vais evoluindo com música e tudo
vais evoluindo de mamana mal vestida
em bem despida artista de "strip-tease".
Com música da Europa
e jogo de luzes na tua nudez
vais evoluindo dentro deste circo
vais evoluindo Felismina!
José Craveirinha (In karingana ua Karingana)
Imagem daqui
segunda-feira, fevereiro 06, 2006
Se eu pudesse guardar os teus sentidos
Se eu pudesse guardar os teus sentidos
Numa caixa de prata e de cristal,
Entre conchas do mar, búzios partidos,
Pequenas coisas sem valor real...
Se eu pudesse viver anos perdidos
Contigo, numa ilhota de coral,
Para além dos espaços conhecidos,
Mais longe do que a aurora boreal...
Se eu soubesse que o olhar de toda a gente
Te via, por milagre, repelente,
Que fugiam de ti como da peste...
Nem assim abrandava o meu ciúme,
Que é afinal o natural perfume
Da flor do grande amor que tu me deste.
Reinaldo Ferreira
Foto:A.Obolenski
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