domingo, dezembro 31, 2006

Poetas Escolhidos–XI –“Desafio” à Vida



Estigma

Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos
O que os homens não querem.
Ao vento arremessamos
As verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos.
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos
Mas que somos.

José Carlos Ary dos Santos, in "Obra Poética", pág.51, Edições Avante

Guardo as lágrimas para uma ocasião especial

Guardo as lágrimas para uma ocasião especial.
Prefiro a revolta sólida
À tristeza líquida visível a quem me olha.
Prefiro-me zangada
A passivamente lavada em lágrimas e em auto-comiseração.
Se sobrevivi
Foi porque quando magoada não chorei
Porque de tão quente que era a dor me secou as lágrimas
E queimou os olhos.
Quando derrubada não me lamentei
Mas da dor fiz músculo, revolta, força
E de mim me ergui
E a mim me levantei.
Guardo as lágrimas para uma ocasião especial
Como quem guarda um segredo vergonhoso
Não um bem precioso.
E enfrento o mundo de olhos secos
Desafiando a vida, puta predadora,
A conseguir fazer-me chorar.

Encandescente, in "Palavras Mutantes", pág.41, Edições Polvo

Segredo

A vida é longa
E o fogo tanto,
Que a alma mirra,
Escurece,
Faz-se cinza.

Dá-se à alma o corpo
Que merece:
-Desfaz-se em pranto,
Morre aos poucos,
Vai na brisa.

Nem que fosse dos mortais
O escolhido
E, adormecido,
Me tomassem
Pela mão;

Não venderia o incerto pelo certo
Nem a vertigem doa ares pelo chão.
Não trocaria o longínquo pelo perto,
Nunca serei um entre tantos, porque não.

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág.40, Edições Manuel Filipe

Caderno II

Quando me perco de novo neste antigo
Caderno de capa preta oleado
Que um dia rasguei com fúria e desespero
E que um amigo recolou com amor e paciência

De novo se ergue em minha frente a clara
Parede cal do quarto matinal
Virado para o mar e onde o poente
Se afogueava denso e transparente
E a sonâmbula noite se azulava

Ali o tempo vivido foi tão vivo
Que sempre à própria morte sobrevive
E cada dia julgo que regressa
Seu esplendor de fruto e de promessa.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas", pág.48, Edições Caminho

Foto:Elena Vasileva

PS: Não podia deixar acabar este ano sem fazer esta "rapsódia" de poemas destes autores.
E porquê? Por várias razões:
-Para mim (e desculpem todos os outros), são os melhores em todos os registos: amor, dor, vida, ironia, humor, tirando um já todos têm poemas musicados…, são mutantes, camaleões.
-Admiro-os porque transmitem uma força que não tenho.
-Dá-me prazer tentar conjugá-los, sendo eles tão diferentes.
-E simplesmente porque gosto muito deles:)


A Fatyly usando versos dos poetas, brincou e fez isto:

Da noite que nos gera, e nós amamos
Guardo as lágrimas para uma ocasião especial
E enfrento o mundo de olhos secos
Desfaz-se em pranto, morre aos poucos
Desafiando a vida, puta predadora
Parede cal do quarto matinal
A conseguir fazer-me chorar
Nunca serei um entre tantos, porque não!

É ela! É ela! É ela! É ela!



É ela! é ela!—murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou—é ela!
Eu a vi—minha fada aérea e pura—
A minha lavadeira na janela!

Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono! . . .
Tinha na mão o ferro do engomado. . .
Como roncava maviosa e pura!. . .
Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la. . . roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido. . .

Oh! de certo. . . (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela. . . que amanhã de certo
Ela me enviará cheios de flores.

Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio. .

É ela! é ela!—repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta. . .
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela,—eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela. . .
É ela! é ela!—murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou—é ela!

Álvares de Azevedo

Foto:Stanmarek

Destruição



Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

Carlos Drummond de Andrade

Foto:Paul Bolk

sábado, dezembro 30, 2006

Poetas Escolhidos X – Força Interior



In Sofrimento
(6)


Da força para a forca
Da farpa para a farsa
Assim calamos
Como quem disfarça.
De tudo o que matamos só um punho
De sal e fogo
Que nos sela a boca.
De tudo o que dizemos
Só o eco
Duma palavra bela seca oca.

José Carlos Ary dos Santos, in "Obra Poética", pág.206, Edições Avante

Pinheiros

Penso às vezes
Nos pinheiros de ponta aguda,
Na mútua guerra de querer subir,
Sobre os mais altos,
Com as raízes bem agarradas
À terra.

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág.96, Edições Manuel Filipe

Regressarei

Eu regressarei ao poema como à pátria como à casa
Como à antiga infância que perdi por descuido
Para buscar obstinada a substância de tudo
E gritar de paixão sob mil luzes acesas.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas", pág.60, Edições Caminho

Aparências

Não sou musculada.
Levo um estalo e vou ao chão!
Mas depressa me levanto
Porque a mulher que eu sou
Não é a mulher que pareço.
Sou sobrevivente de mim mesma…
Campo de batalhas
Umas ganhas, outras perdidas.
Ecoam ainda em mim
As dores que senti,
Os risos que gargalhei,
Os gritos que soltei.
Sou mais que a mulher que pareço
Os músculos que faltam fora
São a força que tenho dentro.

Encandescente, in "Palavras Mutantes", pág.11, Edições Polvo

Pedindo desculpa aos poetas e a todos vós, fiz mais uma ousadia ao juntar versos de cada um:

Da força para a forca
Penso às vezes
As dores que senti,
Para buscar obstinada a substância de tudo

Como quem disfarça.
Sou sobrevivente de mim mesma…
Eu regressarei ao poema como à pátria como à casa
Com as raízes bem agarradas

E gritar de paixão sob mil luzes acesas.
Na mútua guerra de querer subir,
De tudo o que matamos só um punho
São a força que tenho dentro.

Foto:Yuri B

Entre dois tempos



abri as portas da memória
e no laranja amarelo da lareira
que aquecia a mansão antiga
refugiei-me no quarto
naquele
onde sabia ter guardado a memória
a minha?
a dos meus dias?
ou simplesmente a memória?
o eco do passado nos passos presentes
a espuma que o tempo não engolira
a ressaca desafinada dos dias vividos
o fio que, quebrado, ali recuperava
a ânsia com que se conta da vida
as tonalidades
e a nostalgia de saber que do passado
nem as memórias são mentiras
acrescentos
onde se multiplicam as vivências
e onde se espreme das histórias
o que já não existe

sopro de vento a que chamamos brisa.

Poema:HFM

Foto:Wind

Sei-te De Cor



Sei de cor
cada traço
do teu rosto
do teu olhar.
Cada Sombra
da tua voz.
E cada silêncio
cada gesto que tu faças
Meu amor sei-te de cor

Sei
Cada capricho teu
E o que não dizes
Ou preferes calar.
Deixa-me adivinhar
não digas que o louco sou eu
se for tanto melhor
Amor sei-te de cor

Sei
Por que becos te escondes.
Sei ao pormenor
o teu melhor e o pior.
Sei de ti mais do que queria
Numa palavra diria
Sei-te de cor.

Paulo Gonzo

Foto:Gabriele Rigon

Transparente



Dias cruzados
Pensamentos sublimados
Saudades de alguém
Jogo de xadrez
Razão e emoção
Empate técnico.

Não perceber relações
Jogos, máscaras, o "social".

Palavras cruzadas
Directas
Puras, água do mar
Livres, vento que sopra.

Eu
Sem truques de magia
Sou transparente
Olhar directo.

Wind

Foto:Howard Schatz

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Ternura



Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar
extático da aurora.

Vinícius de Moraes

Foto:Sergey Ryzhkov

Lírica do Silêncio



Somos larva e semente
Somos o trigo o vento e a colheita
Somos o mar o cais e a aventura
O transe da partida e a chegada
Somos a carne do medo e a madrugada
Raiz do desespero amor coragem
Temos pressa e somos a paciência
Somos o dia que passa e somos sempre
Somos a polpa do tempo
A pausa da memória o movimento
Lavramos o silêncio com palavras
Que apenas soletramos surdamente.

Rui Namorado

Foto:Satoshi Saikusa

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Revoada



Os pássaros quando voam
Não deixam sequer rastro ao vento
Porque não voam com as asas
Apenas como o sentimento.

Os pássaros em revoada
Não buscam tão simplesmente
O ninho de algum lugar
Porque já estão pousados
No próprio ninho do ar.

Quando pássaros em pleno vôo
Não há nem asas nem vento
Tudo fica como o tempo
Apenas paz e firmamento.

Salgado Maranhão

Foto:Da artista "poeta" da fotografia, que me manda estas maravilhas de imagens:)

Poetas Escolhidos IX – Amor/ (Ar)Dor



In Sofrimento(3)

Um sopro um grito um escopro
Um cinzel no papel
Um corpo um estupro
Mas sobretudo um sexo ou um anel
De tédio irresoluto.

José Carlos Ary dos Santos, in "Obra Poética", pág.203, Edições Avante

Recusa

Não sei,
Mal te conheço,
Nem pensei
Se te mereço.

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág.107, Edições Manuel Filipe

Olhos – sombra

Sou olhos–espelho
Lês-me
E é a ti que vês.
A dor que há em ti faço-a minha
Sinto-a
E dou-lhe voz.
Sou a palavra que murmuras baixinho,
O segredo que escondes
E não ousas revelar.
Digo do sonho que querias nas noites,
Descrevo-o
Para que possas sonhar.
Quantas vezes disseste:
- Sou eu ali!
Quantas vezes pensaste:
- Aquilo fui eu que senti!
Sou reflexo de ti
Olhos–espelho
Escrevo do grito
Que não ousas soltar.

Encandescente, in "Palavras Mutantes", págs.34 e 35, Edições Polvo

Oásis

Penetraremos no palmar
A água será clara o leite doce
O calor será leve o linho branco e fresco
O silêncio estará nu – o canto
Da flauta será nítido no liso
Da penumbra

Lavaremos nossas mãos de desencontro e poeira.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas", pág.54, Edições Caminho

"Plagiando" estes grandes poetas, juntei versos de cada um:

Um cinzel no papel
Nem pensei
E dei-lhe voz.

Lavaremos nossas mãos de desencontro e poeira.
Sou reflexo de ti
Se te mereço.

Um corpo um estupro
Da penumbra
Não sei
A dor que há em ti faço-a minha.

Foto:Elena Vasileva

Entrei no café com um rio na algibeira



Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.

José Gomes Ferreira

Foto:Maury Perseval

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Estranho é o sono que não te devolve.



Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
de quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
de quem já só por dentro se ilumina
e surpreende
e por fora é
apenas peso de ser tarde.Como é
amargo não poder guardar-te
em chão mais próximo do coração.

Daniel Faria

Foto: Ivan Pinkava

Anoiteceu mais cedo



Anoiteceu mais cedo. À porta fechada,
preparo um roteiro de viagens.
Sublinho rotas e derrotas.
Tatuo nos pulsos uma rosa dos ventos
e gravo na mão esquerda um astrolábio.
Tenho uma ilha adiada no peito.
É a época das marés vivas. Pressinto-o,
pela intensa ondulação do meu cabelo,
antecipando a tormenta.

Graça Pires

Foto:Stanmarek

terça-feira, dezembro 26, 2006

Após o banho, nua



Após o banho, nua
ainda, o corpo húmido
ao meu encontro, visão,
relembro, cálido êxtase,
os seios entrevistos
no decote frouxo, agora, nua,
toalha molhando-se, ressurgem
após o banho,
fremindo, suave embalo, avidez
de língua e mãos, nua, vens,
perfume, sulcos na pele,
ansiada espera, curvas, a entrega
ao meu olhar, bocas, rosa
túmida, pétala, sucção, espuma,
resplandeces para mim, nua,
após o banho.

Fernando Py

Foto:Maury Perseval

Além da terra, além do céu



Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempre amar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.

Carlos Drummond de Andrade

Foto:Stanmarek

segunda-feira, dezembro 25, 2006

Poema 21



A solidão
é uma lágrima de veludo
apodrecida na garganta

E foram teus dedos
outrora tão férteis
que ali por desencanto
a abandonaram.

Rui Namorado, in "Lírica do Silêncio", pág.31, Edições Centelha

Foto:José Marafona

Post feito a duas mãos por Pandora e Wind

domingo, dezembro 24, 2006

John Lennon - "Happy Xmas"

A música que mais gosto, duma pessoa que ainda hoje admiro.

As imagens "falam" por si...

PS:Quem não conseguir ver vá aqui, por favor.

Poemas de Natal

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes

Poema de Natal

Dorme,
que a fome passa
e se não passa
Grita
que a palavra mata
na dúvida
de quem cala
Dorme.
que a ceia que provas
é a fome da espera

Dorme.
que não és tato.
Não és faro.
És o olhar do menino
na poça d'água
... Um reflexo de Natal
Pode estar também na vidraça
onde arqueias com o dedo: "Felicidade".
Dorme,
que do outro lado, na rua
quem lê
lê ao avesso
e se vai.

Juliana Stefani

Natal à Beira-Rio

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

David Mourão-Ferreira

Para todos vocês fiz isto:))))



Foto:Wind

sábado, dezembro 23, 2006

Poetas Escolhidos VIII – Auto-Retrato



Errância

A minha vida é preenchida devagar,
Por gestos rotineiros,
Sem importância,
E, sobretudo, com a errância
Do olhar.

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág.118, Edição Manuel Filipe

O Sobretudo

Sobretudo o silêncio com gola de astracã
O sorriso entrelela o sonho assertoado
Sobretudo o peludo que se põe de manhã
E à noite é escovado.
Sobretudo o chumaço da cultura nos ombros
E a fazenda inglesa de meia estação.
Sobretudo o cuidado que ao despi-lo pomos
Em estarmos vestidos como os outros são.

José Carlos Ary dos Santos, in "Obra poética", pág.157, Edições Avante

Dia

Mergulho no dia como em mar ou seda
Dia passado comigo e com a casa
Perpassa pelo ar um gesto de asa
Apesar de tanta dor e tanta perda.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas", pág.50, Edições Caminho

Retrato

Mostro-me em glória
Vestindo-me de luzes e encantos
E por dentro amordaço-me.
Sou assim brilho e luz,
Sombra e escuridão.

Encandescente, in "Palavras Mutantes", pág.60, Edições Polvo

PS:Mais uma ousadia, juntei versos de cada poeta e saiu-me isto:

A minha vida é preenchida devagar
Sobretudo o chumaço da cultura nos ombros
Vestindo-me de luzes e encantos
Mergulho no dia como em mar ou seda.

Sombra e escuridão.
Perpassa pelo ar um gesto de asa
O sorriso entrelela o sonho assertoado
Do olhar.

Sem importância,
Mostro-me em glória
Apesar de tanta dor e tanta perda.
Dia passado comigo e com a casa
Por gestos rotineiros,
Sou assim brilho e luz.

Foto:Eolo Perfido

Quase um poema de Natal



Eu queria um natal sem luzes
sem sinos sem coroas sem presentes
sem festas de confraternização
onde se repete quase escandindo
(e à exaustão) a palavra so-li-da-ri-e-da-de

eu queria um natal mais solstício
que natal — um natal pagão —
um natal simples sem palco
onde a gente ousasse ser apenas gente
como a gente que a gente é nos outros dias.

Poema:Márcia Maia



Fotos:Maury Perseval

PS:Coloquei duas fotos porque...sim:)

Versos desencontrados



Em nada ou em ninguém
Eu deveria acreditar!
Nem no amor, nem na vida. - As ilusões,
Mesmo até quando vêm disfarçadas
E já conhecem o cliente, hesitam,
E chegam a partir envergonhadas...
As ilusões -
Também têm os seus mais preferidos;
E àqueles que ficaram na ruína
Do pensamento, e são - por graça de conquista
Os pálidos mortais desiludidos,
A esses já não correm muito afoitas
Na mentira das grandes fantasias!
- É por isso que eu hoje ainda vivo
À margem das ridículas tragédias
Que lemos nos jornais todos os dias.

Atulham-se os presídios; no degredo,
Atados à saudade, vão ficando,
- Como lesmas ao luar, esses que matam,
E pelo amor tombaram na desgraça:
- Um sonho, um beijo, uma mulher que passa!
Só a guitarra os lembra ao triste fado
Nos ecos diluídos e chorosos
E fundos do lusíada, coitado!
Eu olho para tudo que enxameia
Nesta viela escura da existência
Como quem se debruça num abismo
E fica revolvendo a consciência
Na tristeza infinita de um olhar!...
- A humanidade é vil e o seu egoísmo
Tem base na vileza de vexar.

Sim;
Por qualquer coisa os homens tudo vendem:
Palavra, dignidade, a própria vida,
Só porque desconhecem a doutrina
Bendita de Jesus; - esse tesoiro,
Essa fonte de luz onde aprendi
A ser leal e amigo e a respeitar
Aquela que nos risos do meu lar
Desembaraça os fios de uma queixa
No mistério que cinge o verbo amar.

Mas quando um ano acaba e outro vem,
Embora a minha fronte e os meus cabelos
Envelheçam na marcha para o fim
E um sabor de renúncia e de cansaço
Vibre, cantando, aqui, dentro de mim,
Rebenta-me no peito uma esperança
Tão lúcida, tão viva, e tão ungida
Na fé que ponho erguendo a minha prece -
Que peço a Deus do fundo da minha alma
Que a todos os que sofrem neste mundo
Dê o conforto de uma vida calma.

António Botto

Foto:Stanmarek

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Constatação Metafísica


Jogo o tempo
na água
E ele
nada.

Mariana Colasanti

Foto:Yuri B

Gente que passa



Gente abstracta que passa.
Nem os vejo.
Atarefados nesta época.
Ninguém olha ninguém.
Só montras, preços,
Brinquedos muitos,
Roupa, perfumes.
Também não me vêem.
Está muito frio
E na indiferença deles gelo.

Já foi tempo de Natal,
Para mim.
Juntava a família.
Ao todo, vinte.
Que alegria!
Almoço, jantar, ceia,
Troca de prendas,
Sorrisos,
Brincadeiras de crianças.

Há anos adoeci:
Cancro de mama.
Operação, tratamentos,
Cura e abandono total.
Primeiro o marido,
Depois os familiares
A dor é contagiosa?

Comecei a beber.
Deixei o emprego.
A casa um caos,
Desleixo total.
Deixei de me gostar.
Um dia, saí de casa
Para nunca mais voltar.

Juntei-me aos sem abrigo.
Como eu, bêbedos e sós,
Deitados em caixotes de papelão.
Estamos todos ligados
Pelo desamparo.

Hoje vim para estas escadas,
Aquecer-me ao sol,
Recolher moedas indiferentes
Desta gente que passa
E nem me vê...

Poema:Jacky e Wind

Foto:Marat Sirotjukov

PS: Espero que esta seja a primeira de muitas parcerias feitas a duas mãos:)

A Realidade Dói (ou Uma Utopia Ingênua)



A nave estelar ficou pronta:
Se tornaram possíveis as viagens espaciais!
Eu e você passamos pela segurança,
Eles nem se deram conta:
- O alarme só foi soar tarde demais.

Já perambulávamos pelo Universo feito crianças.
Até que achamos um planeta igual ao nosso.
Pousamos e vimos que eles eram humanos.
Mas pelo menos mil anos mais evoluídos do que nós.

Não, não havia carros voadores nem andróides.
Em compensação, tinha amor, compaixão e felicidade.
Não existia injustiça, mentiras e exploração.
Tampouco havia competição, dinheiro, cidades:
Todos viviam em comunhão com a natureza.

Não havia em seus corações ódio, egoísmo ou mal,
Em cada canto somente se via paz, alegria e beleza.
Nunca apareceu por lá qualquer tipo de lei, governo ou moral.
Não havia nem sombra de desespero, solidão e frieza.
Não vimos naquele lugar psiquiatras, policiais e soldados.

Seus habitantes estavam no maior grau da consciência:
Rejeitavam o cotidiano tedioso e o trabalho excessivo,
Compreendiam e aceitavam suas mínimas diferenças.
Ninguém tinha vergonha, ignorância e preconceitos.
Não precisavam de inimigos ou anti-depressivos.

Estavam imunes as coisas como dor, culpa e violência.
Não sabiam o que era traição, desconfiança, sacanagem.
Não existiam vestígios de miséria, sofrimento, decadência.
Faziam valer sua honra, determinação e coragem,
Não sentiam na pele angústia, morte e doença.

Entres eles não tinham segredos ou fofocas.
Não precisavam de proteção, pois sujeira não havia,
Este planeta de ruim não tinha nada.
O único problema era que ele mesmo não existia
Foi apenas um delírio de uma mente drogada.

Thiago Maia

Foto:Mutrus

quinta-feira, dezembro 21, 2006

:-))))

Poetas Escolhidos VII –Poema ("Visto" pelos próprios)



Liberdade

O poema é
A Liberdade.

Um poema não se programa
Porém a disciplina
-Sílaba por sílaba–
O acompanha.

Sílaba por sílaba
O poema emerge
-Como se os deuses o dessem
O fazemos.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas", pág.38, Edições Caminho

Voz

O poema perseguiu-o,
De onda em onda.
Por isso se não calou
A voz do mar.

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág.117, Edição Manuel Filipe

Ser

Mordo as palavras uma a uma
Sabem a coisa nenhuma.
Letras gastas,
Versos sem rima,
Inodoros e sem cor.
Ah…Ter nas palavras a força
Que têm os mestres,
Fazer da poesia manifesto
Ou fazer com a poesia amor…
Seria conquistar o mundo sem dar um passo,
Ter dos pássaros as asas e a liberdade,
Dos homens todas as vozes
E da eternidade provar o sabor.

Encandescente, in "Palavras Mutantes", pág.42, Edições Polvo

O Orgulho

Por vezes no poema
Desperdiçamos tudo
E fica apenas

Uma terrível faca de silêncio

Um muro

Uma sebe de sede que defende
A fome do ódio puro.

José Carlos Ary dos Santos, in "Obra Poética", pág.251, Edições Avante

PS:Atrevi-me a ganhar coragem, (porque já o tenho feito mas não edito), tirei um verso de cada poema e deu isto:

Uma terrível faca do silêncio
Seria conquistar o mundo sem dar um passo
De onda em onda
A Liberdade.

Foto:Alexander Sanin

A Fatyly fez o seguinte:

Sílaba por sílaba
de onda em onda
fazer da poesia manifesto
o poema perseguiu-o!

inodoros e sem cor, a fome do ódio puro
seria como conquistar o mundo sem dar um passo
A voz do mar, uma sebe de sede que defende
por isso não se calou, o poema... é LIBERDADE!

Extravio de noites #4



O corpo está tomado de véus
que são cortes profundos na pele
e são taças de um desastre
no bosque de teus sonhos:
o corpo folheado com seus recortes de gozo
e estamparias laminadas que são rabiscos
na pedra esboçada em teu ventre
e pentelhos de fogo como árvores que se exibem
ante um derrame de vozes:
o corpo onde estavas quando a noite
entoava ventanias e um olho a descoberto
engolia toda a paisagem imaginada:
o corpo em ruínas que se estreitam
a recompor vertigens que são nomes inscritos
em aves rochosas que se chamam coxas
e um tropel de vultos ao passar de páginas de teu corpo:
por noites te chamo mascando nomes
como um dilema febril a confundir imagens
como credenciais a evocar rasgos
que anunciam a tormenta da restauração:
o corpo se refazendo a cada anúncio do fim.

Floriano Martins

Foto:Stanmarek

quarta-feira, dezembro 20, 2006

O meu projecto de morrer é o meu ofício



O meu projecto de morrer é o meu ofício
Esperar é um modo de chegares
Um modo de te amar dentro do tempo

Daniel Faria

Foto:Michael Thompson

Sem título



A perna docemente erguida sobre a página:
um verso assim não escreves sem meu gozo.
Sabia como marcar as frases onde retornar.
Os dois se buscavam entre enigmas e risos,
devolviam a cada um o que iam encontrando,
restos do outro, pequenas sombras dispersas.
Abro-te os lábios todos da casa. Não vês ali
na varanda uma parte de ti já esquecendo-se?
A voz podia estar entregue a qualquer um,
a dar por assombro a noite em um capítulo
de espasmos: olhos rabiscando-se, imagens
saltando do sexo de ambos, toda ela, todo ele,
tudo para encontrar-se e dizer: já estivemos.
Somente o amor nos revela o que perdemos.

Floriano Martins

Foto:Paul Bolk

Morena dos olhos d'água



Morena dos olhos d'água
Tira os seus olhos do mar
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar

Descansa em meu pobre peito
Que jamais enfrenta o mar
Mas que tem abraço estreito, morena
Com jeito de lhe agradar

Vem ouvir lindas histórias
Que por seu amor sonhei
Vem saber quantas vitórias, morena
Por mares que só eu sei

O seu homem foi-se embora
Prometendo voltar já
Mas as ondas não tem hora, morena
De partir ou de voltar

Passa a vela e vai-se embora
Passa o tempo e vai também
Mas meu canto ainda lhe implora, morena
Agora, morena, vem.

Chico Buarque

Foto:Joris Van Daele

terça-feira, dezembro 19, 2006

Poetas Escolhidos VI – Amor



In Sofrimento
(8)

Nada que é tudo meu amor se o mudo
Novelo das palavras desatar
Um fio de água agudo
Ainda por cantar.

Tudo que é nada meu amor
Se a língua nos inchar.
Antraz de solidão invicta íngua
Nos sovacos do mar.

José Carlos Ary dos Santos, in "Obra Poética", pág.208, Edições Avante

Banalidades

Deito a cabeça no teu peito
Enrolada nos teus braços
E desfio com os dedos na tua pele
As banalidades que fizeram o meu dia
E tudo se torna importante
Porque nada é banal
Quando dito na tua pele
Desfiado no teu peito
Enrolada nos teus braços.

Encandescente, in "Encandescente", pág.28, Edições Polvo

Passagem

O êxtase do ar e a palavra do vento
Povoaram de ti meu pensamento.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Mar Novo", pág.58, Edições Caminho

O Sorriso

Sorrio, se ponho em ti o meu olhar,
Há pequenas luas no teu riso,
E essa pálida luz, que vem do ar,
É um silêncio, cintilante de brancura,
Que sendo às vezes sonhador, ou indeciso,
Será mais do que um sorriso, porventura.

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág.342, Edições Manuel Filipe

Foto:José Marafona

PS:A Fatyly deixou esta maravilha nos comentários, tirando um verso de cada poeta:

Deito a cabeça no teu peito
Um fio de água agudo
Há pequenas luas no teu riso
Povoaram de ti meu pensamento!

Poema temperamental



Ó caralho! Ó caralho!
Quem abateu estas aves?
Quem é que sabe? quem é
que inventou a pasmaceira?
Que puta de bebedeira
é esta que em nós se vem
já desde o ventre da mãe
e que tem a nossa idade?
Ó caralho! Ó caralho!
Isto de a gente sorrir
com os dentes cariados
esta coisa de gritar
sem ter nada na goela
faz-nos abrir a janela.
Faz doer a solidão.
Faz das tripas coração.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque não vem o diabo
dizer que somos um povo
de heróicos analfabetos?
Na cama fazemos netos
porque os filhos não são nossos
são produtos do acaso
desde o sangue até aos ossos.
Ó caralho! Ó caralho!
Um homem mede-se aos palmos
se não há outra medida
e põe-se o dedo na ferida
se o dedo lá for preciso.
Não temos que ter juízo
o que é urgente é ser louco
quer se seja muito ou pouco.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque é que os poemas dizem
o que os poetas não querem?
Porque é que as palavras ferem
como facas aguçadas
cravadas por toda a parte?
Porque é que se diz que a arte
é para certas camadas?
Ó caralho! Ó caralho!
Estes fatos por medida
que vestimos ao domingo
tiram-nos dias de vida
fazem guardar-nos segredos
e tornam-nos tão cruéis
que para comprar anéis
vendemos os próprios dedos.
Ó caralho! Ó caralho!
Falta mudar tanta coisa.
Falta mudar isto tudo!
Ser-se cego surdo e mudo
entre gente sem cabeça
não é desgraça completa.
É como ser-se poeta
sem que a poesia aconteça.
Ó caralho! Ó caralho!
Nunca ninguém diz o nome
do silêncio que nos mata
e andamos mortos de fome
(mesmo os que trazem gravata)
com um nó junto à garganta.
O mal é que a gente canta
quando nos põem a pata.
Ó caralho! Ó caralho!
O melhor era fingir
que não é nada connosco.
O melhor era dizer
que nunca mais há remédio
para a sífilis. Para o tédio.
Para o ócio e a pobreza.
Era melhor. Concerteza.
Ó caralho! Ó caralho!
Tudo são contas antigas.
Tudo são palavras velhas.
Faz-se um telhado sem telhas
para que chova lá dentro
e afogam-se os moribundos
dentro do guarda-vestidos
entre vaias e gemidos.
Ó caralho! Ó caralho!
Há gente que não faz nada
nem sequer coçar as pernas.
Há gente que não se importa
de viver feita aos bocados
com uma alma tão morta
que os mortos berram à porta
dos vivos que estão calados.
Ó caralho! Ó caralho!
Já é tempo de aprender
quanto custa a vida inteira
a comer e a beber
e a viver dessa maneira.
Já é tempo de dizer
que a fome tem outro nome.
Que viver já é ter fome.
Ó caralho! Ó caralho!

Ó caralho!

Joaquim Pessoa

Foto:Foi-me enviada por mail, infelizmente não conheço o autor.

PS:Já editei este poema, mas repito porque o consumismo do Natal é cada vez maior e este poema é actualíssimo.
É daqueles que eu gostava de ter escrito!

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Angela Adonica



Hoje deitei-me junto a uma jovem pura
como se na margem de um oceano branco,
como se no centro de uma ardente estrela
de lento espaço.

Do seu olhar largamente verde
a luz caía como uma água seca,
em transparentes e profundos círculos
de fresca força.

Seu peito como um fogo de duas chamas
ardia em duas regiões levantado,
e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes e claros.

Um clima de ouro madrugava apenas
as diurnas longitudes do seu corpo
enchendo-o de frutas extendidas
e oculto fogo.

Pablo Neruda

Foto:Stanmarek

Canto de muro



A mário Quintana

Num canto de muro
o garoto chorava
num canto de muro
a Terra findava
num canto de muro
a noite pousava
crepúsculo sujo
de rua asfaltada.

Num canto de muro
nem Deus se encontrava
num canto de muro
blasfêmia gravada
num canto de muro
o diabo urinava
no chão sem futuro
da terra ensombrada.

Num canto de muro
o sol desmaiava
e a noite tranqüila
o solo ocupava
— a posse, tão fria
(terreno tão duro)
teu ângulo diedro,
parede, rachado.

Num canto de muro
esquina forçada
o mundo vivia
e o mundo acabava.
Num canto de muro
a sombra vazia
prepara o futuro
da nova cidade.

Fernando Py

Foto:Maury Perseval

domingo, dezembro 17, 2006

Poetas Escolhidos V - Como se faz um Poema



A máquina de costura

Talhem-se as palavras justas
Ao corpo do sofrimento
As imagens serão curtas
Amplos os ombros do tempo
Soltos os panos dos olhos
Bordados o do talento
Cosidos os dos ouvidos
Ao forro do pensamento.

Tome-se o têxtil do tema
E corte-se o que é preciso
Com a tesoura do riso.
Mas na orla do poema
Depois da obra acabada
Deixe-se ao menos um dedo
Da tristeza embainhada.

José Carlos Ary dos Santos, in "Obra Poética", pág.166, Edições Avante

O Poeta tranquilo

O Poeta tranquilo falava do domínio da técnica,
De versos alexandrinos, controle da métrica,
Do poema construção académica…
E eu pensei: Disso nada sei.
O Poeta tranquilo falava das influências e conceitos.
De versos encandeados, esquematicamente construídos,
Perfeitos!
E eu pensei: Disso nada sei.
Não sei de teorias literárias,
Não uso silogismos nem metáforas,
E perfeita sou no desconhecimento e imperfeição.
Senti-me pequena entre o Poeta grande e tranquilo.
Eu
Que do poema só sei o corpo
Eu
Que do poema só sei a emoção.

Encandescente, in "Palavras Mutantes", págs.63 e 64, Edições Polvo

A bela e pura

A bela e pura palavra Poesia
Tanto pelos caminhos se arrastou
Que alta noite a encontrei perdida
Num bordel onde um morto a assassinou.

Sophia de Mello Breyner Andersen, in "Mar Novo", pág.20, Edições Caminho

Escrita

Tamborilar de gotas no telhado:
- A escrita da chuva.

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág. 132, Edições Manuel Filipe

Moto contínuo

Que seria do vento sem as ondas?
Que seria das ondas sem as fráguas?
Que seria das fráguas sem as gaivotas?
Que seria das gaivotas sem ter o cais?
Que seria do cais vazio de mágoas?
Que seria das mágoas sem o vento?

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág. 46, Edições Manuel Filipe

Foto:Yuri B

Quero é viver



Vou viver
até quando eu não sei
que me importa o que serei
quero é viver

Amanhã, espero sempre um amanhã
e acredito que será
mais um prazer

e a vida é sempre uma curiosidade
que me desperta com a idade
interessa-me o que está para vir
a vida em mim é sempre uma certeza
que nasce da minha riqueza
do meu prazer em descobrir

encontrar, renovar, vou fugir ou repetir.

António Variações

Canta:Humanos, que estou neste momento a ver na RTP1.

Foto:Sascha Hüttenhain

PS:E agora Sarah Brightman na RTP2.
Os Deuses devem estar loucos:-)

sábado, dezembro 16, 2006

Provérbio chinês



"Não importa o tamanho da montanha, ela não pode tapar o sol."

Foto:Da artista "poeta" da fotografia, que me mandou algumas e apeteceu-me colocá-la aqui para partilhar:)

Romper a solidão



Romper a solidão
Sair da nossa pequena tristeza
Não ser pesado paquiderme
Em volta de si mesmo aprisionado
Sair
Da circunferência
Aconselhada
Romper todas as tréguas
Arriscar
Quotidianamente
Palavras pensamentos actos
Romper a solidão
Jogar na vida

Rui Namorado

Foto:Stanmarek

PS:Confesso que desconhecia este poeta e foi a Pandora que mo "mostrou":)

Dolphin Massacre in Japan

Porque não posso nem consigo ficar indiferente a isto:
Dolphin massacre in Japan
aqui está a minha indignação contra o bicho Homem!
Cuidado a quem é sensível.

Beijo



Não posso deixar que te leve
O castigo da ausência,
Vou ficar a esperar
E vais ver-me lutar
Para que esse mar não nos vença.
Não posso pensar que esta noite
Adormeço sozinho,
Vou ficar a escrever,
E talvez vá vencer
O teu longo caminho.

Quero que saibas
Que sem ti não há lua,
Nem as árvores crescem,
Ou as mãos amanhecem
Entre as sombras da rua.

Leva os meus braços,
Esconde-te em mim,
Que a dor do silêncio
Contigo eu venço
Num beijo assim.

Não posso deixar de sentir-te
Na memória das mãos,
Vou ficar a despir-te,
E talvez ouça rir-te
Nas paredes, no chão.
Não posso mentir que as lágrimas
São saudades do beijo,
Vou ficar mais despido
Que um corpo vencido,
Perdido em desejo.

Quero que saibas
Que sem ti não há lua,
Nem as árvores crescem,
Ou as mãos amanhecem
Entre as sombras da rua.

Pedro Abrunhosa

Foto:Joris Van Daele

Romance sonâmbulo



Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramos.
O barco sempre no mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra na cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
No alto, a lua cigana.
As coisas a estão olhando
e ela não pode olhá-las.

*
Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de geada
chegam com o peixe da sombra
que abre caminho à alvorada.
A figueira esfrega o seu vento
com a lixa de seus ramos,
e o monte, o gato gardunho,
eriça suas pitas acres.
Mas quem virá? E por onde?...
Ela ainda está na varanda,
verde carne, tranças verdes,
sonhando com o mar amargo.

*
(...)

Federico García Lorca

Foto:Maury Perseval

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Poetas Escolhidos IV-Amor/Mar



Marés

Descobre
A maravilha
No recuo perpétuo das marés,
E guarda no olhar
O que as ondas querem dar

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág.116, Edições Manuel Filipe

Ao Francisco

Porque nos outros há sempre qualquer nojo
Que me gela e me afasta
E em ti há sempre um pouco de mar largo
Que de olhos cegos atrás de ti me arrasta.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Mar Novo", pág.56, Edições Caminho

Sabes

Sabes a leveza da brisa quando toca nas flores?
O sabor quente do suor num dia quente de Agosto?
O trovejar abafado da tempestade que longe
Quase foi?
Quase era?
Sabes da vontade que cresce no ventre?
Se torna arrepio e se torna corrente
Que sobe no peito que fica nas coxas?
Esperando…
Os teus dedos brisa num dia de Agosto,
O ar morno que exalas bebendo o meu gosto,
E o trovejar abafado entre as minhas
E as tuas pernas.

Encandescente, in "Palavras Mutantes", pág.56, Edições Polvo

A luva

O aceno penumbra da tua mão camurça
A lágrima em branco do teu rosto livro
A página momento que o teu gesto segura
Por detrás do vidro.

José Carlos Ary dos Santos, in "Obra Poética", pág161, Edições Avante

Foto:Michael Liss

Poema do amor



Este é o poema do amor.

O poema que o poeta propositadamente escreveu
só para falar de amor,
de amor,
de amor,
de amor,
para repetir muitas vezes amor,
amor,
amor,
amor.
Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico
contar as palavras que o poeta escreveu,
tantos que,
tantos se,
tantos lhe,
tantos tu,
tantos ela,
tantos eu,
conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu
foi amor,
amor,
amor.

Este é o poema do amor.

António Gedeão

Imagem daqui

quinta-feira, dezembro 14, 2006

A Invisibilidade de Deus



Dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão de sua bondosa mão.

O certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu.

Al Berto

Foto:Stanmarek

Amor ao som da música



Oiço repetidamente a música
Balanço o corpo,
Sinto os nossos momentos
Sempre juntos,
Corpos colados,
Encaixados num só.
A viola faz o ondular
De quando mergulhamos
No mar do nosso Amor.
Tocamo-nos, penetras-me
E num orgasmo simultâneo
Agarras-me esta noite…

Wind

PS: Feito ao som e inspirado em "Agarra-me Esta Noite" de Pedro Abrunhosa

Foto:Paul Bolk

Fascínio



Casado, continuo a achar as mulheres irresistíveis.
Não deveria, dizem.
Me esforço. Aliás,
já nem me esforço.
Abertamente me ponho a admirá-las.
Não estou traindo ninguém, advirto.
Como pode o amor trair o amor?
Amar o amor num outro amor
é um ritual que, amante, me permito.

Affonso Romano de Sant'Anna

Foto:Ira Bordo

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Poetas escolhidos III-Inconformados



Sombra

Porque
Tantas vezes
O destemperado sol
Nos tomba sobre o dorso,
É penoso
O arrastar da própria sombra

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág.113, Edição Manuel Filipe

O revólver

Quando nos disparamos do que somos
Quando nos encantamos e seguimos
O contido estampido do silêncio
Que nos rebenta dentro dos ouvidos
A corola pistola o suspiro do tiro
Já não nos basta a bala da palavra
O gatilho dos dedos
O alvo do sentido.

Trincamos uma pétala de cor
E matamos no cheiro duma flor
Cinco sentidos únicos.

José Carlos Ary dos Santos, in "Obra Poética", pág.165, Edições Avante

Os erros

A confusão a fraude os erros cometidos
A transparência perdida – o grito
Que não conseguiu atravessar o opaco
O limiar e o linear perdidos.

Deverá tudo passar a ser passado
Como projecto falhado e abandonado
Como papel que se atira ao cesto
Como abismo fracasso não esperança
Ou poderemos enfrentar e superar
Recomeçar a partir da página em branco
Como escrita de poema obstinado?

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome Das Coisas", pág.46, Edições Caminho

Em colisão

Não quero saber de dúvidas metafísicas,
Teológicas, cósmicas ou transcendentais.
Não quero saber se quem nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha
Ou se o Bing Bang aconteceu porque Deus estava com gases
E dando um traque monumental abanou o universo
Dando origem à criação.
Quero resolver-me dentro,
Calar esta revolta, pacificar-me,
Encontrar um equilíbrio.
Ser cordata e consumada
E deixar de ser meteoro
Em rota de colisão

Encandescente, in "Palavras Mutantes", pág.10, Edições Polvo

Foto:Yuri B

A obra de arte



Carregando sob o braço um objeto embrulhado no número 223 do Mensageiro da Bolsa, Sacha Smirnoff, filhinho de mamãe, assumiu uma expressão de tristeza e entrou no consultório do doutor Kochelkoff.

— Ah! meu grande jovem! — exclamou o médico. — Como vamos? O que há de novo?

Fechando as pálpebras, Sacha pôs a mão no coração e, comovido, falou:

— Mamãe lhe manda seus cumprimentos, Ivan Nicolaìevitch, e me encarregou de lhe agradecer... Mamãe só tem a mim no mundo, e o senhor me salvou a vida... curando-me de grave enfermidade e... não sabemos como lhe agradecer.

— Ora! O que é isso, meu jovem! — atalhou o médico, realizado. — Não fiz mais do que qualquer um no meu lugar teria feito...

Depois de observar o presente, o médico coçou lentamente a orelha, bufou e suspirou, confuso.

— Sim — murmurou —, é algo realmente magnífico... como diria?... um tanto ou quanto ousado... Não é apenas decotada; é... sei lá, que diabos!

— Mas... por que diz isso?

— Nem a serpente em pessoa poderia inventar alguma coisa de mais indecente. Se eu colocasse esta fantasiazinha na mesa, iria contaminar a casa toda.

— Que modo mais excêntrico tem o senhor de interpretar a arte! — disse Sacha, ofendido. — É um objeto artístico!... Olhe! Que beleza! Que elegância! É de se ficar com a alma inundada de piedade, e com lágrimas a subir aos olhos! Contemplando-se tamanha beleza, nos esquecemos de tudo o que seja da Terra... Veja bem... Que movimentos! Que harmonia! Que expressão!...

— Compreendo muito bem tudo isso, meu caro — interrompeu o médico —, mas acontece que eu sou pai de família. Meus filhos costumam vir aqui. Recebo senhoras...

— É evidente — disse Sacha — que se a gente adotar o ponto de vista do povo, este objeto, altamente artístico, causará uma impressão diferente... Sou o filho único de mamãe... somos pobres, e por isso não podemos lhe recompensar os seus cuidados; e não sabemos o que fazer; embora, apesar de tudo, mamãe e eu... seu filho único... lhe suplicamos de todo o coração que aceite, como penhor de gratidão... esta ninharia que... É um bronze antigo... uma obra rara... de arte.

— Mas não havia necessidade — disse o médico, franzindo as sobrancelhas. — Por que razão?

— Não, eu imploro ao senhor, não recuse! — continuou a murmurar Sacha, desembrulhando de todo o pacote. — Seria uma ofensa, a mamãe e a mim... Trata-se um objeto belíssimo... em bronze antigo. Foi herança de papai, guardada como uma querida lembrança.. Papai comprava bronzes antigos e revendia-os aos colecionadores... Já mamãe e eu não nos ocupamos disso...

Sacha acabou de desembrulhar o objeto e colocou-o solenemente em cima mesa. Era um pequeno candelabro de bronze antigo, de fina feitura. Representava duas figuras femininas em trajes de Eva e em atitudes que não ousaria — nem tenho temperamento para isso — descrever.

As figuras sorriam ostensivamente, dando a impressão de que, não fossem retidas pela obrigação de suster o castiçal, teriam imediatamente fugido do pedestal dançado tal cancã que, amigo leitor, nem é bom imaginar.

— O doutor, claro, está acima destas coisas todas e portanto sua recusa nos daria, a mamãe e a mim, uma enorme frustração. Sou o filho único de mamãe; o senhor me salvou a vida... Damos-lhe de presente o que de mais precioso possuímos, e... só tenho a tristeza de não nos pertencer o par do candelabro!

— Muito agradecido, meu jovem amigo. Fico-lhe muito grato... Minhas recomendações à sua mãe, mas rogo-lhe, o senhor mesmo considere a questão! Meus garotos costumam vir aqui... Aparecem muitas senhoras... Mas deixo-o aqui, já que me parece impossível convencê-lo!

— Ora, não há de que me convencer! — disse Sacha com habilidade. – Coloque o candelabro do lado desta jarra. Que infelicidade não possuir o par!... Bem, vou indo, adeus, doutor.

Depois da saída de Sacha, o doutor observou bastante o candelabro, coço orelha e concluiu:

“Não se pode negar que é magnífico. É uma pena abrir mão dele. Ao mesmo tempo é impossível deixá-lo aqui... Hum... Está criado o problema... Poderia dá-lo de presente a quem?” ·

Depois desta reflexão, lembrou-se do advogado Ukhoff, seu amigo íntimo, que gostaria de ter o objeto.

"Às mil maravilhas!", decidiu. "Ukof Ukhoff não aceita receber dinheiro de mim , mas ficará contente com esta lembrança... E assim me livrarei deste incômodo. Além do mais, ele é solteiro e maroto...".

Rápido, o médico se vestiu, pegou o candelabro e foi até a casa do advogado.

— Bom dia, amigo — disse, ao encontrar Ukhoff em sua morada... — Venho lhe trazer uma recompensa pela amolação... Já que não quer aceitar dinheiro meu, aceitará um pequeno presente... Ei-lo, meu amigo! É um objeto magnífico!

Ao ver o candelabro, o advogado viu-se tomado de inefável encantamento.

— Isso sim é que é obra de arte — disse, rindo às gargalhadas. — Que o diabo carregue os meliantes capazes de sequer imaginar alguma coisa de parecido... É maravilhoso! Onde foi que você encontrou tal preciosidade?

Assim que o entusiasmo se esgotou, o advogado lançou temerosos olhares para o lado da porta e disse:

— No entanto, meu velho amigo, é melhor levar de volta o seu presente. Não posso aceitá-lo...

— Por quê? — quis saber, espantado, o médico.

— Porque... Mamãe vem aqui, meus clientes... e além do mais é constrangedor em relação aos criados...

— Ora, essa é boa!... Você não terá a ousadia de recusá-lo. (E o médico agitou as mãos.) Eu ficaria ofendido!... Trata-se de um objeto de arte... Que movimentos! Que expressão!... Não quero ouvir seus argumentos! Você me deixaria melindrado!

— Se pelo menos tivesse alguma sutileza, ou se estivesse coberta...

O médico, porém, ainda a agitar as mãos e contente por conseguir se desfazer do presente, voltou para o seu consultório.

Sozinho em casa, o advogado pôs-se a examinar o candelabro, apalpou-lhe todas as partes e, da mesma forma que o médico, viu-se tentado a refletir sobre o que deveria fazer com ele.

“É um objeto belíssimo", pensou. "Seria uma pena se desfazer dele; ao mesmo tempo, é inconveniente tê-lo em casa... Melhor seria oferecê-lo a alguém... Já sei, vou levá-lo hoje à noite ao cômico Chachkine. O sacana adora as coisas desse gênero, e hoje é justamente o dia de sua estréia..."

Foi o que fez, tão rápido quanto pensou. À noite o candelabro, lindamente embrulhado, era oferecido ao cômico Chachkine.

A noite toda o camarim do artista foi invadido pelos homens que queriam admirar o presente; a noite toda foi de murmúrios de aprovação e de risadas que mais pareciam relinchos... Quando uma artista se aproximava do camarim e perguntava: "Pode-se entrar?", logo a voz rouca do cômico retumbava:

— Não, não, cara amiga! Estou sem roupa!

Terminado o espetáculo, Chachkine dizia, dando de ombros e abrindo os braços:

— Onde vou colocar tamanha indecência? Moro em casa de família e recebo muitos artistas! E isso não é como fotografia, que a gente pode esconder dentro da gaveta..

— Ora, por que não o vende, senhor? — aconselhou o cabeleireiro, que o ajudava a trocar de roupa. — Tem uma velha aqui no bairro que compra bronze antigo. Vá lá e pergunte pela senhora Smirnoff... Todo mundo a conhece.

O cômico resolveu seguir o conselho...

Dois dias depois, o doutor Kochelkoff meditava sobre os ácidos biliosos, de dedo na testa. Subitamente a porta se abriu e Sacha Smirnoff jogou-se a seu encontro. Sorria exultante, e todo o seu ser transpirava felicidade... Trazia alguma coisa embrulhada em jornal.

— Doutor — disse, ofegante —, imagine só nossa alegria!... Para nossa felicidade, encontramos o par do seu candelabro!... Mamãe está se sentindo tão feliz!... E o senhor me salvou a vida...

E então, tremendo de gratidão, Sacha colocou o candelabro diante dos olhos de Ivan Nicolaievitch. 0 médico quis dizer alguma coisa mas não conseguiu. Perdera o uso da palavra.

Anton Tchekhov

Imagem daqui

terça-feira, dezembro 12, 2006

Soneto da mulher inútil



De tanta graça e de leveza tanta
Que quando sobre mim, como a teu jeito
Eu tão de leve sinto-te no peito
Que o meu próprio suspiro te levanta.

Tu, contra quem me esbato liquefeito
Rocha branca! brancura que me espanta
Brancos seios azuis, nívea garganta
Branco pássaro fiel com que me deito.

Mulher inútil, quando nas noturnas
Celebrações, náufrago em teus delírios
Tenho-te toda, branca, envolta em brumas.

São teus seios tão tristes como urnas
São teus braços tão finos como lírios
É teu corpo tão leve como plumas.

Vinícius de Moraes

Foto:Stanmarek

Elegia dum incoerente



Tua Presença
É o todo-inteiro,
Real, verdadeiro,
De que a beleza
É um fragmento;
Tua Presença
Lembra um Mosteiro,
É como um claustro,
Como um convento
Onde se bebe
Recolhimento,
E cada qual
Se sente menos
Preso da Vida
Que a carne tenra
Recém-nascida
Se prende à vida
Pelo cordão
Umbilical.

A tua Ausência
É o todo-inteiro
Real, verdadeiro,
De que o Inferno
É um fragmento;
A tua Ausência
Lembra as galés,
Traz-nos atados
De mãos e pés,
Remando sós
Pelos infinitos
Mares deste mundo,
Seguindo o rumo
Dos Desvairados,
Como proscritos,
Como gafados.
A tua Ausência!
Antes ser cego,
Antes cativo,
Antes ser posto
Num caixão estreito,
Levado à cova
E sepulto vivo.

Tua Presença
É como nave
De Catedral,
Dum goticismo
Tão trabalhado,
Tão requintado,
Que são aladas
As próprias pedras
Das arcarias
Abobadadas,
E os capitéis
Das colunatas
Fogem em bandos,
Em revoadas
Ascensionais,
Para aquele ponto,
Exterior ao mundo,
P'ra onde tendem
As catedrais!

A tua Ausência
É um oceano
Glauco e sem fundo
Onde naufragam
Os bens do mundo;
É uma imagem
Tumultuária
Dos Derradeiros
Dias Finais;
É como um campo aberto
Para a pilhagem
Das tentações,
Dos desatinos,
Das abjecções;
A tua Ausência
É cavalgada
Desenfreada
D'Apocalipse,
É o remorso
De quem celebra,
Com mãos profanas,
Ritos sagrados,
É um telescópio
Das dores humanas

Tua Presença
Dimana graças
De iluminura;
Foi modelada
Num raio fulvo
De luz sidéria;
Tem os caprichos,
As fantasias,
Duma voluta
De incenso em brasa;
Tua Presença
Foi feita à imagem
Das vagas névoas,
Sonhos dispersos
Pelos rutilantes
Rubros gritantes
Da madrugada,
E em si resume
O azul doente
Em que dilui
A macerada
Melancolia
Do Sol poente.
É essência Pura
Do ideal,
É um vitral
Que transfigura
Raios de Sol
Que correm montes
Buscando fontes
Para as calar

Sòmente estou triste,
Pois sei que a Presença
Que eu canto em bravatas
Com coros de latas
E versos quebrados,
Enfim, só existe
Na minha Elegia,
Nas minhas bravatas,
Se um dia tombar.

Reinaldo Ferreira

Foto:Stanmarek