quarta-feira, agosto 31, 2005

Dez chamamentos ao amigo



Se te pareço nocturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst

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terça-feira, agosto 30, 2005

Timidez



O bicho-de-conta
Faz de conta, faz
Que é cabeça tonta
Mas lá bem no fundo
Não é mau rapaz.
Se a gente lhe toca,
Logo se disfarça:
Veste-se de bola.
Por mais que se faça
Não se desenrola.
Lá dentro escondendo
Patinhas e rosto
É todo um segredo:
Se eu fosse menino
Comigo brincava
Sem medo sem medo.

Maria Alberta Menéres

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Marinha



Na praia de coisas brancas
Abrem-se às ondas cativas
Conchas brancas, coxas brancas
Águas-vivas.
Aos mergulhares do bando
Afloram perspectivas
Redondas, se aglutinando
Volitivas.

E as ondas de pontas roxas
Vão e vêm, verdes e esquivas
Vagabundas, como frouxas
Entre vivas!

Vinícius de Moraes

Foto:Wind

segunda-feira, agosto 29, 2005

Chuva



Olhava da janela a chuva
e sem o áspero sol da Meseta
a cidade era doce,
Madrid, uma cidade do norte
na orla do mar Báltico;
queria dizer-lhe isto
e que afagasse a cinza da Europa
e estivesse de novo aqui,
aqui onde jamais esteve,
non la he visto aún,
afirmaria o Víctor do restaurante
onde sozinho almoço às vezes
com a vaga esperança
de não saber se a vida chegará
como dantes a quis
e agora me surgia na cor dos edifícios.
Como é bela Madrid à chuva
e que difícil é tê-la
por detrás das vidraças
em tardes de sozinho a olhar.
Todavia confesso
esta fraqueza logo esqueceria
se o Víctor em segredo
chegasse à minha mesa e dissesse
mira quién ha llegado para comer,
trae en sus dedos una flor de lluvia.

Nuno Demspter

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Another Brick In The Wall



We don't need no education
We don't need no thought control
No dark sarcasm, in the classroom
Teachers leaving the kids alone

Hey teacher leave us kids alone
All in all it's just, another brick in the wall
All in all you're just, another brick in the wall

We don't need no education
We don't need no thought control
No dark sarcasm in the classroom
Teachers leaving the kids alone

Hey teacher leave us kids alone
All in all you're just, another brick in the wall
All in all you're just, another brick in the wall

Pink Floyd

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Fantasia



Menina, me conte uma mentira.
Suas mentiras suaves e delicadas
Adornam a minha vida
Reforçam os meus sonhos
Excitam o meu corpo
Provocam meus desejos.
Me fazem pensar que tenho amor, que transcendo a dor
Que posso me entregar, corpo e alma,
Embora eu seja apenas um deles.

Stefano Nardi

Foto:Andriete Paris Marques

Alfaiate



Já não há alfaiates como antigamente:)

Foto: Bartłomiej Pawelec (kajteck)

domingo, agosto 28, 2005

In the Vanilla Grove, Man and Horse



Quem quiser pode escrever o que lhe apetecer.

Tela:Gauguin

Hasta siempre Comandante



Aprendimos a quererte
desde la histórica altura
donde el sol de tu bravura
le puso un cerco a la muerte.

Aquí se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.

Tu mano gloriosa y fuerte
sobre la historia dispara
cuando todo Santa Clara
se despierta para verte.

Aquí se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.

Vienes quemando la brisa
con soles de primavera
para plantar la bandera
con la luz de tu sonrisa.

Aquí se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.

Tu amor revolucionario
te conduce a nueva empresa
donde esperan la firmeza
de tu brazo libertario.

Aquí se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.

Seguiremos adelante
como junto a ti seguimos
y con Fidel te decimos:
hasta siempre Comandante.

Aquí se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.

Carlos Puebla

Imagem daqui

sábado, agosto 27, 2005

A piedosa Beppa



Enquanto o meu corpo for belo
É pecado ser piedosa,
É sabido que Deus gosta das mulheres,
E das bonitas sobretudo.
Ele perdoará, tenho a certeza,
Facilmente ao pobre fradezinho
Que tanto procura a minha companhia
Como muitos outros fradezinhos.
Não é um velhorro padre da Igreja
Não, é jovem, muitas vezes vermelho,
Muitas vezes, apesar da mais cinzenta tristeza,
Pleno de desejo e de ciúme.
Não gosto dos velhos,
Ele não gosta das velhas:
Que admiráveis e sábios
São os caminhos do Senhor!
A Igreja sabe viver,
Sonda os corações e os rostos,
Insiste em perdoar-me…
Quem não perdoará, então?
Três palavras na ponta da língua,
Uma reverência e ide embora:
O pecado deste minuto
Apagará o antigo.
Bendito seja Deus na Terra,
Gosta de raparigas bonitas
E perdoa de bom grado
Os tormentos do amor.
Enquanto o meu corpo for belo
É pena ser piedosa;
Case o diabo comigo
Quando eu já não tiver dentes.

Frederico Nietzsche

Tela: Chirico

It´S Raining Again



Oh, it's raining again
Oh no, my love's at an end
Oh no, it's raining again
And you know it's hard to pretend

Oh no, it's raining again
Too bad I'm losing a friend
Oh no, it's raining again
Oh will my heart ever mend

You're old enough some people say
To read the signs and walk away
It's only time that heals the pain
And makes the sun come out again

It's raining again
Oh no, my love's at an end
Oh no, it's raining again
Too bad I'm losing a friend

C'mon you little fighter
No need to get uptighter
C'mon you little fighter
And get back up again

It's raining again
Oh no, my love's at an end
Oh no, it's raining again
Too bad I'm losing a friend

C'mon you little fighter
No need to get uptighter
C'mon you little fighter
And get back up again
Oh, get back up again
Oh, fill (feel?) your heart again

Supertrump

Imagem gentilmente cedida pela Maker

P.S.: Isto é a minha vontade para que chova:)

sexta-feira, agosto 26, 2005

Cantata de paz



Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Imagem daqui

O pião



Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E se via um menino
que tinha um pião já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o
filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as
crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na
brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este ainda girava, ficava feliz, mas
só por um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na verdade,
acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo, o de
um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se
ocupava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia antieconômico. Se
a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava
conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rodando. E sempre que se
realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que
agora ia conseguir; e se o pião girava, a esperança se transformava em
certeza enquanto corria até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois
retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria
das crianças – que ele até então não havia escutado e agora de repente
penetrava nos seus ouvidos – afugentava-o dali e ele cambaleava como um
pião lançado com um golpe sem jeito da fieira.

Kafka

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quinta-feira, agosto 25, 2005

Gabriel Garcia Marques



"Aprendi que um homem
Só tem o direito de olhar um outro
de cima para baixo
Para ajudá-lo a levantar-se."

Tela:Francis Bacon

Colada à tua boca a minha desordem



Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

Hilda Hilst

Imagem daqui

Inominado



Primeiro foi o sonho,
Inopinado e louco.
Depois a audácia,
O corrupio, o sufoco.
Foi a nostalgia.
A dor da saudade.
Foi do trabalho o tesão.
Foram dúvidas e inseguranças.
Foi o coma da traição.
Foram os cansaços.
As olheiras. Os olhos baços.
Foram milhentas milhas
Percorridas em mil regaços.
Foi a solidão.
E, foi sempre o sonho.
Sempre a solidão e,
Dos medos o mais medonho.
Foi o bem querer!...
Apenas e só o bem querer!...

Percorri mil anos
A velocidade da luz.
Ultrapassei nebulosas.
Cabeceei asteróides
Para balizas imaginárias.
Doei os anéis de Saturno
A ninfas alucinadas.
Contornei buracos negros.
Fiz amor nas crateras da Lua
Com camisas de Vénus.
Fui amante duma marciana,
Louca e insaciável,
Loura e insociável.
Mandei para os raios que o partam...
......O Sol.
Passeei-me por Mercúrio...
......Crómio.
Julguei sarar minhas feridas.

Perdi Galateia. Perdi tudo.
E, eu próprio, perdi-me
Em qualquer parte.

Percorri mil anos
A velocidade da luz!...
De repente, o breu.
A ausência total de luz.
De repente, a dor.
De repente, a mais profunda,
A mais pesada das solidões:
Eu em busca de mim!

Luís Eusébio

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quarta-feira, agosto 24, 2005

O amor partiu para parte incerta



O amor partiu para parte incerta
Não avisou. Não se despediu.
Saiu deixando moradas desertas
E sem aviso prévio… Partiu.
Quem primeiro notou a ausência foram os poetas
Nas páginas que sem amor ficaram escuras
Nos versos que sem ternura se tornaram raros
Nas palavras que rasgavam de tão duras.
Os músicos sem amor não encheram pautas
De notas que eram sons e sons que eram harmonia
E a música tocada sem amor era nota sem Dó
Clave sem Sol. Descompasso. Agonia.
Correm rumores que sem rota marcada o amor se fez ao mar
Que partiu infiltrado, clandestino num voo espacial
Que caminha errando e errante num deserto sem nome
Procurando a razão de ser. Primeira. Original.
Gasto. Cansado. Sem aviso prévio
Um dia o amor simplesmente… Partiu.

Poema: Encandescente

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Palco



Aplausos
assaltam o palco
que mentalmente calco
por vezes descalço,
sem pontas desfiadas
nos nós de incertezas
que me tocam
e acercam o íntimo
recanto da alma,
que não sendo minha,
não é de ninguém.
Esfumam-se as figuras
cheias de pó, no vaivém
das marés que cobrem
ausências cobardes,
dependentes das palmas
estridentes e encantadas,
e das asas irreais que saram
as feridas dos homens,
e afastam as imagens
que sem traquejo, fraquejam
em qualquer lugar
onde o silêncio se assume,
agita o mundo e esconde-se
numa fogueira sem lume.

Daniel Camacho

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terça-feira, agosto 23, 2005

Due cavalli in riva al mare



Quem quiser pode escrever o que lhe apetecer.

Pintura:Giorgio De Chirico

segunda-feira, agosto 22, 2005

Canção na Plenitude



Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
abrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)
O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.

Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força - que vem do aprendizado.

Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés - mesmo se fogem - retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

Lia Luft

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Pastelaria



Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que
importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que
importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que
importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

e cair verticalmente no vício
Não
é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal
o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal
o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal
o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora!
– rir de tudo
No riso admirável
de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny

Imagem daqui

domingo, agosto 21, 2005

Mistério



O mistério começa do joelho para cima.
O mistério começa do umbigo para baixo
e nunca termina.

Affonso Romano de Sant’Anna

Foto:Edward Weston

O gato



Com um lindo salto
Lesto e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pega corre
Bem de mansinho
Atrás de um pobre
De um passarinho
Súbito, pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando tudo
Se lhe fatiga
Toma o seu banho
Passando a língua
Pela barriga

Vinícius de Moraes

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sábado, agosto 20, 2005

Estranha noite velada



Estranha noite velada,
Sem estrelas e sem lua.
Em cuja bruma recua
Fantasma de si mesma cada imagem
Jaz em ruínas a paisagem,
A dissolução habita cada linha.
Enorme, lenta e vaga
A noite ferozmente apaga
Tudo quanto eu era e quanto eu tinha

E mais silenciosa do que um lago,
Sobre a agonia desse mundo vago,
A morte dança
E em seu redor tudo recua
Sem força e sem esperança.

Tudo o que era certo se dissolve;
O mar e a praia tudo se resolve
Na mesma solidão eterna e nua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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P.S.: Dedico este post ao meu querido amigo Pantanero, que ontem morreu e nunca esquecerei a excelente pessoa que ele era.

As Palavras Interditas



Os navios existem e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E abrem-se janelas
mostrando a brancura das cortinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas minhas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
e estas mãos noturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens vivas, desenhadas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

Eugénio de Andrade

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sexta-feira, agosto 19, 2005

Erótica



A noite descia
como um cortinado
sobre a erva fria
do campo orvalhado.
e eu (fauno em vertigem)
a rondar em torno
do teu corpo virgem,
sonolento e morno,
pensava no lasso
tombar do desejo;
em breve, o cansaço
do último beijo...
E no modo como
sentir menos fácil
o maduro pomo
do teu corpo grácil:
ou sem lhe tocar
– de tanto o querer! –
ficar a olhar,
até o esquecer,
ou como por entre
reflexos do lago,
roçar-lhe no ventre
luarento afago;
perpassando os meus
nos teus lábios húmidos,
meu peito nos teus
brancos
seios
túmidos...

Carlos Queirós

Foto:Tamaki Obuchi

Dia a dia



Dia
a
dia
noite
a
noite
pedra
a
pedra
palha
a
palha
tronco
a
tronco
cuspo
a
cuspo
gesto
a
gesto
passo
a
passo
flor
a
flor
se faz um ninho
um caminho
um amor

Teresa Rita Lopes

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quinta-feira, agosto 18, 2005

Os gatos da tinturaria



Os gatos brancos, descoloridos,
passeiam pela tinturaria,
miram policromos vestidos.
Com soberana melancolia,
brota nos seus olhos erguidos
o arco-íris, resumo do dia,

ressuscitando dos seus olvidos,
onde apagado cada um jazia,
abstractos lumes sucumbidos.

No vasto chão da tinturaria,
xadrez sem fim, por onde os ruídos
atropelam a geometria,

os grandes gatos abrem compridos
bocejos, na dispersão vazia
da voz feita para gemidos.

E assim proclamam a monarquia
da renúncia, e, tranquilos vencidos,
dormem seu tempo de agonia.

Olham ainda para os vestidos,
mas baixam a pálpebra fria.

Cecília Meireles

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quarta-feira, agosto 17, 2005

Uma leitura



Entre as orquídeas e o trigo
que preferência confere

a uma só flor tanto luxo
e ao trigo (cal) ouro sujo?

se é doce a água dos rios
de onde tira sal o mar?

e não naufraga o navio
vogando em vogais demais?

quem fornece nomes - numes
ao inocente inumerável?

a intradução dos idiomas
conciliará pari pássaros?

é possível florescer
sobre um deserto de sal?

quando já se foram os n (ossos
quem vive no pó final?

terei meus cheiros -o - dores
quando dormir destru... ido?

quem era (hera?) te amando
que o sonho encampa dormindo?

será uma estrela -in- visível
(talvez?) o céu dos suicidas?

e por que o céu - in - vestido
se encerra com suas neblinas?

como se chama a tristeza
numa ovelha sol - it - ária?

moscas fabricando mel
ofenderiam as abelhas?

há espaço para uns espinhos?
(alguém pergunta à roseira)

por que é tão dura a doçura
do coração das cerejas?

Pablo Neruda

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O Espírito



Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

Natália Correia

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terça-feira, agosto 16, 2005

Pedra do Sono



El mar soplaba campanas,
las campanas secaban las flores,
las flores eran cabezas de santos.

Mi memoria llena de palabras,
mis pensamientos buscando fantasmas,
mis pesadillas atrasadas de muchas noches.

De madrugada mis pensamientos puros
volaban como telegramas;
y en las ventanas encendidas toda la noche
el retrato de la muerte
hizo esfuerzos desesperados para huir.

João Cabral de Melo Neto

Foto:Ognid

Ternura



Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

Vinícius de Moraes

Imagem daqui

segunda-feira, agosto 15, 2005

Retrato Ardente



No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha

Eugénio de Andrade

Foto:Emil Schildt

2ª Guerra Mundial



Faz hoje 60 anos que acabou! Que nunca se esqueçam as atrocidades que foram cometidas!

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Abrigo



Abrigo-me de ti
de mim não sei
há dias em que fujo
e que me evado

há horas em que a raiva
não sequei
nem a inveja rasguei
ou a desfaço

Há dias em que nego
e outros onde nasço

há dias só de fogo
e outros tão rasgados

Aqueles onde habito com tantos
dias vagos.

Maria Tereza Horta

Foto:Tamaki Obuchi

domingo, agosto 14, 2005

Ar de nocturno



Tenho muito medo
das folhas mortas,
medo dos prados
cheios de orvalho.
eu vou dormir;
se não me despertas,
deixarei a teu lado meu coração frio.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Pus em ti colares
com gemas de aurora.
Por que me abandonas
neste caminho ?
Se vais muito longe,
meu pássaro chora
e a verde vinha
não dará seu vinho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Nunca saberás,
esfinge de neve,
o muito que eu
haveria de te querer
essas madrugadas
quando chove
e no ramo seco
se desfaz o ninho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Lorca

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A cavalo no vento



A cavalo no vento sobrevoo
o destino sombrio deste porto,
aonde um rio vem morder o vulto
do mar confuso.
Ó mar despedaçado,
mordido em tanto flanco, o sobressalto
dos teus ombros nervosos já sacode
a terra toda!

E para quê mais portos
agressores, estaleiros rancorosos,
onde em surdina e sombra se conspira
contra a vida. . .?

. . . Contra a vida do mar e o seu poder
que só um corpo nu deve merecer!

David Mourão-Ferreira

Imagem daqui

sábado, agosto 13, 2005

Para alegrar as vistas:)



Via blog da Maria

Hai - kais



Minha mão vazia
Esperando a sua
Encontro que cria.

Harmonia sem acorde
nota em contratempo
A dissonância morde

Sair do protocolo
Contornar a mesmice
Bancar o voo solo.

Alma que sente frio
distância que aprisiona
A saudade está no cio.

Gabriela Marcondes

Imagem daqui

sexta-feira, agosto 12, 2005

Dois amantes felizes não têm fim nem morte



Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.

Pablo Neruda

Imagem daqui

quinta-feira, agosto 11, 2005

Na mesa do Santo Ofício



Tu lhes dirás, meu amor, que nós não existimos.
Que nascemos da noite, das árvores, das nuvens.
Que viemos, amámos, pecámos e partimos
Como a água das chuvas.

Tu lhes dirás, meu amor, que ambos nos sorrimos
Do que dizem e pensam
E que a nossa aventura,
É no vento que passa que a ouvimos,
É no nosso silêncio que perdura.

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não falaremos
E que enterrámos vivo o fogo que nos queima.
Tu lhes dirás, meu amor, se for preciso,
Que nos espreguiçaremos na fogueira.

Ary dos Santos

Imagem daqui

A Invisibilidade de Deus



Dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão de sua bondosa mão

o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu

Al Berto

Foto:Wilhelm von Gloeden

quarta-feira, agosto 10, 2005

De profundis amamus



Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes

O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Mário Cesariny

Imagem daqui

Exame



Feiticeiro sem deuses, reconheço
O limite dos meus encantamentos.
Só em raros momentos
De inspiração
Eu consigo o milagre dum poema,
Teorema
Indemonstrável pela multidão.

Mas é desse limite que me ufano:
Ser humano
E poeta.
Humildemente,
Com toda a paciência da terra,
Com toda a impaciência do mar,
Aguardo o transe, a hora desmedida;
E é o próprio rosto universal da vida
Que se ilumina,
Quando o primeiro verso me fulmina.

Miguel Torga

Foto:Greg Gorman

terça-feira, agosto 09, 2005

Poemas



Na grande confusão
deste medo
deste não querer saber
na falta de coragem
ou na coragem de
me perder me afundar
perto de ti tão longe
tão nu
tão evidente
tão pobre como tu
oh diz-me quem sou eu
quem és tu?

António Ramos Rosa

Foto:Marek Straszewski

segunda-feira, agosto 08, 2005

Notícias-gracia plena



E eu aqui
Calada, a recordar
o amor e a rir de mim
Televisão desligada!
Sigo colando figurinhas
no meu almanaque
Conta-me: Já invadiram o Iraque?
Já botaram a mão no petróleo?
Algum pai matou filho
ou vice-versa ou vide-verso?
Algum bandido virou herói
deste mísero circo
ou tema de escola de samba
para desfile na avenida?

E eu aqui
inerte...assombrada
a lembrar o amor
apaixonado!
Conta-me: Os tais Estados Unidos
leram a história de Roma,
da Pérsia, do Egito?
Então eles nada sabem
sobre o declínio dos Impérios?
Nunca leram sobre Napoleão,
Genghis khan, Satan?

E eu aqui
escondida do mundo,
no meu porão,
vou lendo Pessoa, Gedeão, Bilac
Não! Nada quero saber
da Coréia, do Iraque,
das assembleias da ONU
" O palhaço sem amor
é um assassino sério"-
acreditem-me

E eu aqui
sem abrigo antiaéreo
sem máscaras de oxigénio
Dona de casa, poeta, médica-
aumento o som estéreo:
Ouço Beethoven- A Patética

Maria da Graça Ferraz

Imagem daqui

Guerra Civil



E' contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto
O que digo
E o que faço
E' que pede castigo
E desespera a lança no meu braço

Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peco à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino

Miguel Torga

Foto:Norman Jean Roy

domingo, agosto 07, 2005

Que é voar?



Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo,os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre,leve,independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não -vivência

E isso é voar?
Não.

Voar é humano
é transitório , momentâneo...

Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.

Ana Hatherly

Foto:Michau KtórY Lata

Romance ingénuo de duas linhas paralelas



Duas linhas paralelas
Muito paralelamente
Iam passando entre estrelas
Fazendo o que estava escrito:
Caminhando eternamente de infinito a infinito
Seguiam-se passo a passo
Exactas e sempre a par
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é
Se podiam encontrar
Falar e tomar café.
Mas farta de andar sozinha
Uma delas certo dia
Voltou-se para a outra linha
Sorriu-lhe e disse-lhe assim:
"Deixa lá a geometria
E anda aqui para o pé de mim...!
Diz a outra: "Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
Temos de ir devagarinho
Andando sempre a direito
Cada qual no seu caminho!"
Não se dando por achada
Fica na sua a primeira
E sorrindo amalandrada
Pela calada, sem um grito
Deita a mãozinha matreira
Puxa para si o infinito.
E com ele ali à frente
As duas a murmurar
Olharam-se docemente
E sem fazerem perguntas
Puseram-se a namorar
Seguiram as duas juntas.
Assim nestas poucas linhas
Fica uma estória banal
Com linhas e entrelinhas
E uma moral convergente:
O infinito afinal
Fica aqui ao pé da gente.

José Fanha

Imagem daqui

sábado, agosto 06, 2005

"Paraíso"



Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.

David Mourão Ferreira

Foto:Zagubionawwietrze