domingo, julho 31, 2005

Poeminha Amoroso



Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo...

Cora Coralina

Foto:Jeanloup Sieff

Dormes...



XVIII

Dormes... Mas que sussurro a umedecida
Terra desperta? Que rumor enleva
As estrelas, que no alto a Noite leva
Presas, luzindo, à túnica estendida?

São meus versos! Palpita a minha vida
Neles, falenas que a saudade eleva
De meu seio, e que vão, rompendo a treva,
Encher teus sonhos, pomba adormecida!

Dormes, com os seios nus, no travesseiro
Solto o cabelo negro... e ei-los, correndo,
Doudejantes, sutis, teu corpo inteiro

Beijam-te a boca tépida e macia,
Sobem, descem, teu hálito sorvendo
Por que surge tão cedo a luz do dia?!

Olavo Bilac

Foto:Fernando Amaral

sábado, julho 30, 2005

As sem-razões do amor



Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade

Foto:Jola Bakoniuk

Poema vertical



Abrimos os corpos. Rasgámos silêncios.
Na mesma vertigem nós fomos o espaço
Nós fomos a sede
Nós fomos a fonte
Abrimos distâncias. E tudo inventámos.
A vida e a morte num gesto de febre
subiam em compasso
em tempo de espera
E a luta
E a raiva
Nas nossa artérias um sangue mais quente
e o teu movimento em ritmo louco
E a minha renuncia de não ser mais eu. De ser o teu corpo. De ser a tua
carne
Baloiço de membros
de pernas e braços
Mulher que eu embalo
que guardo em meu ventre
que bebe de mim
a quem eu me dou
de quem me alimento
Mulher incarnada
na minha loucura
Um grito. Uma pausa. Um gesto mais lento.
E a vida a esvair-se
num estertor da morte
Depois o cansaço no espasmo da noite
E nós renascidas
E livres no tempo.

Manuela Amaral

Foto:Pedro da Costa Pereira

sexta-feira, julho 29, 2005

Os dias de verão vastos como um reino



Os dias de verão vastos como um reino
cintilantes de areia e maré lisa
os quartos apuram seu fresco de penumbra
irmão do lírio e da concha é nosso corpo

Tempo é de repouso e festa
o instante é completo como um fruto
irmão do universo é nosso corpo

O destino torna-se próximo e legível
enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

Como se em tudo aflorasse eternidade

Justa é a forma do nosso corpo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto:Sascha Huettenhain

Um dia, quem sabe



Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
- Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra.

Maiakovski

Foto:David LaChapelle

quinta-feira, julho 28, 2005

Uma mulher espera por mim



Uma mulher espera por mim, nela tudo se contém, não falta nada,
No entanto faltaria tudo se lhe faltasse o sexo ou a humidade do homem
certo.
Tudo se contém no sexo, corpos, almas,
Significados, provas, purezas, delicadezas, proclamações, efeitos,
Ordens, canções, higidez, orgulho, o mistério materno, o leite seminal,
As esperanças todas, bens, outorgas, todas as paixões, belezas,
amores, os deleites da terra,
Todos os governos, juízes, deuses, o cortejo de pessoas da terra,
Tudo se contém no sexo como partes de si e justificações de si.
Sem pejo o homem de quem gosto sabe e confessa as delicias do sexo,
Sem pejo a mulher de quem eu gosto sabe e confessa as do sexo dela.
Pois eu me afasto das mulheres insensíveis,
Para ficar com a que espera por mim, e com as mulheres de sangue
quente que me satisfazem,
Eu vejo que elas me compreendem e não me repudiam,
Vejo que são dignas de mim e eu serei delas o marido vigoroso.
Essas mulheres não são em nada inferiores a mim,
Têm o rosto tisnado pelo brilho dos sóis e pelo sopro dos ventos,
Há na carne delas, antigas e divinas, agilidade, força,
Elas sabem nadar, remar, montar, lutar, atirar, correr, bater, recuar,
avançar, resistir, defender-se sozinhas,
São supremas por direito próprio - são calmas, límpidas, donas de si
mesmas.
Puxo vocês para junto de mim, mulheres,
Não as posso deixar ir. vou lhes fazer bem
Existo para vocês e vocês para mim, não apenas para o nosso bem, mas
para o bem dos outros,
Envoltos em você dormem grandes heróis e bardos,
Eles se recusam a acordar pelo toque de outro homem que não eu.
Sou eu, mulheres, abro o meu caminho,
Sou severo, cáustico, indissuadível, mas amo-vos,
Não vos machuco mais que o necessário a vós mesmas,
Derramo a substância geradora de filhos e filhas dignos destes
Estados, assedio com músculo pausado e rude,
Firmo-me eficazmente, não dou ouvido a rogos,
Não ouso retirar-me sem depositar o que há de muito acumulei dentro de
mim.
Através de vós eu dreno os rios enclausurados de mim mesmo
Em vós concentro mil anos de futuro,
Em vós faço enxerto dos tão amados por mim e pela América,
As gotas que em vós destilo farão medrar moças atléticas e ardentes,
novos artistas, músicos, cantores,
As crianças que em vós procrio vão procriar, por sua vez, outras
crianças,
Exigirei, dos meus dispêndios amorosos, homens e mulheres perfeitos,
Eles irão se interpenetrar, espero, como eu e tu agora nos
interpenetramos,
Contarei com os frutos dos generosos aguaceiros deles como conto com
os frutos dos aguaceiros que agora entorno.
Vou ficar à espera das ternas colheitas do nascimento, vida, morte,
imortalidade
Que tão amorosamente planto agora

Walt Whitman

Foto:Nuno Belo

Enquanto longe divagas



I

Enquanto longe divagas
E através de um mar desconhecido esqueces a palavra
- Enquanto vais à deriva das correntes
E fugitivo perseguido por inomeadas formas
A ti próprio te buscas devagar
- Enquanto percorres os labirintos da viagem
E no país de treva e gelo interrogas o mudo rosto das sombas
- Enquanto tacteias e duvidas e te espantas
E apenas como um fio te guia a tua saudade da vida
Enquanto navegas em oceanos azuis de rochas negras
E as vozes da casa te invocam e te seguem
Enquanto regressas como a ti mesmo ao mar
E sujo de algas emerges entorpecido e como drogado
- Enquanto naufragas e te afundas e te esvais
E na praia que é teu leito como criança dormes
E devagar devagar a teu corpo regressas
Como jovem toiro espantado de se reconhecer
E como jovem toiro sacodes o teu cabelo sobre os olhos
E devagar recuperas tua mão teu gesto
E teu amor das coisas sílaba por sílaba

II

O meu amor da vida está paralisado pelo teu sono
É como ave no ar veloz detida
Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso

III

Pois no ar estremece tua alegria
- Tua jovem riqueza de arbusto -
A luz espera teu perfil teu gesto
Teu ímpeto tua fuga e desafio
Tua inteligência tua argúcia teu riso

Como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso

Sophia de Mello Breyner Andresen

Imagem daqui

quarta-feira, julho 27, 2005

Hai - Kais





Imensidão
Cheiro salgado
de um cavalo suado
Quem galopa no mar ?...

Romance - I

No cinzeiro cheio
de cigarros fumados
os restos de uma carta...

Egoísmo

Se fosse só eu
a chorar de amor,
sorriria...

Mundo pequeno

O albatroz prepara
breve passeio
de Pólo a Pólo...

Romance - II

Bem na frente
de um retrato empoeirado,
uma aliança esquecida...

Infinito

Ó múmia longa,
ante os teus séculos,
eu durmo ainda...

Evocação

Lagosta púrpura
uma galera a remos
conduzindo um César...

Turismo sentimental

Viajei toda a Ásia
ao alisar o dorso
da minha gata angorá...

Turbulência

O vento experimenta
o que irá fazer
com sua liberdade...


Guimarães Rosa

Foto:Akif Hakan Celebi

A Poesia se Esfrega nos Seres e nas Cousas



Nunca sentiste uma força melodiosa
Cercando tudo que teus olhos vêem,
Um misto de tristeza numa paisagem grandiosa
Ou um grito de alegria na morte de um ser que queres bem?
Nunca sentiste nostalgia na essência das cousas perdidas
Deparando com um campo devoluto
Semelhante a uma virgem esquecida?
Num circo, nunca se apoderou de ti, um amargor sutil
Vendo animais amestrados
E logo depois te mostrarem
Seres humanos imitando um reptil?
Nunca reparaste na beleza de uma estrada
Cortando as carnes do solo
Para unir carinhosamente
Todos os homens, de um a outro pólo?
Nunca te empolgastes diante de um avião
Olhando uma locomotiva, a quilha de um navio,
Ou de qualquer outra invenção?
Nunca sentiste esta força que te envolve desde o brilho do dia
Ao mistério da noite,
Na extensão da tua dor
E na delícia da tua alegria?
Pois então, faz de teus olhos o cume da mais alta montanha
Para que vejas com toda a amplitude
A grandeza infindável da poesia que não percebes
E que é tamanha!

Adalgisa Nery

Foto:Michael Thompson

terça-feira, julho 26, 2005

Dual



Altas marés no tumulto me ressoam
E paredes de silêncio me reflectem

VI

Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser

Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto:Michal Barteczko

segunda-feira, julho 25, 2005

Coreografia



No palco da noite bailado de corpos
Cenário de sombras
esculpidas em nu
Tu danças as mãos
inscreves contornos
na minha nudez
Eu sou dimensão
que dança em teu espaço
Não temos cansaço
Só temos volúpia
Desejo
Harmonia
Vontade de luta
Ao longo de ti descubro caminhos. Trajecto de boca
E danço contigo
E esqueço a memória
Eu sou o teu sangue
A mesma saliva
O mesmo suor
Nós somos a mesma
Mulher-Repetida.

Manuela Amaral

Foto:Rada Marin

Para a Cristina



Como tudo
Hás-de chegar com o corpo
Encostado ao rosto
Da cidade.
Com teus olhos
Decididamente tristes
Vens tomar a minha mão
Dar-lhe o gosto das cerejas
E levá-la ao teu
Mais secreto descaminho.
Hás-de chegar
Nas asas do silêncio
Tão mansa como a tarde
Que se esvai
Entornando sobre o chão
O perfil agudo das paredes.
Chegas hoje ou amanhã
Quem sabe?
Hás-de chegar de surpresa
Como sempre
Desviando o sentido dos relógios
E pedindo que o desejo
Se vista de veludo.

José Fanha

Foto:Rafal Bednarz

domingo, julho 24, 2005

Dez Chamamentos ao Amigo



Se te pareço nocturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst

Foto:Artur Katulski

Poema II



De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

Natália Correia

Foto:Elsa Mota Gomes

A avó



A avó, que tem oitenta anos,
Está tão fraca e velhinha! . . .
Teve tantos desenganos!
Ficou branquinha, branquinha,
Com os desgostos humanos.

Hoje, na sua cadeira,
Repousa, pálida e fria,
Depois de tanta canseira:
E cochila todo o dia,
E cochila a noite inteira.

Às vezes, porém, o bando
Dos netos invade a sala . . .
Entram rindo e papagueando:
Este briga, aquele fala,
Aquele dança, pulando . . .
A velha acorda sorrindo,
E a alegria a transfigura;
Seu rosto fica mais lindo,
Vendo tanta travessura,
E tanto barulho ouvindo.

Chama os netos adorados,
Beija-os, e, tremulamente,
Passa os dedos engelhados,
Lentamente, lentamente,
Por seus cabelos, doirados.

Fica mais moça, e palpita,
E recupera a memória,
Quando um dos netinhos grita:
"Ó vovó! conte uma história!
Conte uma história bonita!"

Então, com frases pausadas,
Conta historias de quimeras,
Em que há palácios de fadas,
E feiticeiras, e feras,
E princesas encantadas . . .

E os netinhos estremecem,
Os contos acompanhando,
E as travessuras esquecem,
— Até que, a fronte inclinando
Sobre o seu colo, adormecem . . .

Olavo Bilac

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sexta-feira, julho 22, 2005

Marketing



Aqui ao meu lado o bom cidadão
escolheu Sagres
que é tudo tudo cerveja
a pausa que refresca
a longa pausa de um longo cigarro King Size.

atenção ao marketing.

Eu não gosto de cerveja
mas tenho que gostar que os outros gostem de cerveja
sobretudo da Sagres
para não contrariar os fabricantes de cerveja.

atenção ao marketing.

Ninguém contraria os fabricantes de cerveja
ninguém contraria os fabricantes da Opel e da Super Silver
nem os fabricantes de alcatifas para panaceias
nem as panaceias nem os códigos e os edredons macios
nem as mensagens de Natal dos estadistas
nem os negociantes de armas da Suiça
nem o homem de capa negra que virou as costas ao Palmolive
Está tudo perfeito e deito-me no conforto de um Lusospuma
a ver as procissões passar mesmo sem anjos mesmo sem anjos
que são agora selvagens e voam numa Harley.

Fernando Namora

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Esta manhã encontrei o teu nome



Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

Maria do Rosário Pedreira

Foto:Julia Margaret Cameron

Poema do fecho-éclair



Filipe II tinha um colar de oiro,
tinha um colar de oiro com pedras rubis.
Cingia a cintura com cinto de oiro,
com fivela de oiro,
olho de perdiz.

Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rocha
do mais transparente.

Andava nas salas
forradas de Arrás,
com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos,
combates de galos,
alões e podengos,
falcões e cavalos.

Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.

Na mesa do canto
vermelho damasco,
e a tíbia de um santo
guardada num frasco.

Foi dono da Terra,
foi senhor do Mundo,
nada lhe faltava,
Filipe Segundo.

Tinha oiro e prata,
pedras nunca vistas,
safiras, topázios,
rubis, ametistas.
Tinha tudo, tudo,
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.
Um homem tão grande
tem tudo o que quer.

O que ele não tinha
era um fecho-éclair.

António Gedeão

Imagem daqui

quinta-feira, julho 21, 2005

À Memória de Fernando Pessoa



Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão
- Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boemia
Coberta de farrapos e de estrelas
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma:
Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio da descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo. . .
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes. . .
E a mesma intriga; as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual!
Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição

De condenados, hirtos, a viver
- Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me: transformemos
A nossa natural angústia de pensar
- Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!

António Botto

Foto:Alexandro Bavari

Poesia de Hipatia



Conta-me
Conta-me o que se calou ainda.
Conta-me a memória, os sorrisos,
a doçura.
Põe a música certa a tocar e conta-me.
Conta-me o sentido, o racionalizado.
Conta-me das histórias,
dos equilibrismos.
Faz-me um desenho, uma pintura.
Diz-me como estava o céu,
como brilhavam as estrelas,
como já se ia embora Vénus
e a aurora raiava o negro
de rosas e amarelos.
Diz-me como foi o dia,
aquece-me desse mesmo sol.
Conta-me das metamorfoses,
dos crescimentos,
dos pés já doridos,
dos sonhos acordados.

Conta-me.
Não esqueças nem um pormenor,
um pensamento, um fio.
Conta-me.
Preenche cada espaço,
soletra cada letra.
Não te enganes nos ondes,
nos quandos, nos porquês.
Conta-me.
Recorda, agora, memória.
Conta-me tudo o que já começo a esquecer

Imagem daqui

P.S.: Poema gentilmente deixado num comentário pela lazuli

Trecho



Quem foi, perguntou o Celo
Que me desobedeceu?
Quem foi que entrou no meu reino
E em meu ouro remexeu?
Quem foi que pulou meu muro
E minhas rosas colheu?
Quem foi, perguntou o Celo
E a flauta falou: Fui eu.

Mas quem foi, disse a Flauta
Que no meu quarto surgiu?
Quem foi que me deu um beijo
E em minha cama dormiu?
Quem foi que me fez perdida
E me desiludiu?
Quem foi, perguntou a Flauta
E o velho Celo sorriu.

Vinícius de Moraes

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quarta-feira, julho 20, 2005

A um ausente



Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

Carlos Drummond de Andrade

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Para o Mia Couto



Elefantemos portanto.
Deixemos esta tão precária pele
Aprender outros saberes
Deixemos
Portantomente
O olhar do paquiderme
Ensinar ao passarinho
As paisagens do deslumbre
Das escritas mais antigas.
Permitamos que o vento sopre.
E que a pedra exista.
E que o sol dispare a sua fúria
Em todas as direcções.
E que a lua se entretenha
No seu jogo de brilhar.
Elefantemos portanto.
Ou,
Melhor dizendo,
Permitamos que um silêncio muito antigo
Venha
Carregado de silvos e sussurros
Venha
Conduzir-nos a palavra
Pelas veredas impalpáveis
Do mistério.

José Fanha

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Soneto de Áspera Resignação



Não me digas segredos nessa voz
em que dizes também o que não dizes.
Fica o silêncio ainda mais atroz
depois de entremostradas as raízes.

Prefiro que não digas nada, nada.
Que não sejas arbusto nem canção,
mas sombra entreaberta, recortada
por um lívido e breve coração.

Já que não podes dar-me o que eu sonhara
- inteireza de ramos e raiz -,
ao menos dá-me, intacta, a sombra clara
onde se esbatam vultos e perfis.

Pois nesta solidão melhor é ter
a sombra que um segredo de mulher

David Mourão Ferreira

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terça-feira, julho 19, 2005

As águas



A chuva regressou pela boca da noite
Da sua grande caminhada
Qual virgem prostituída
Lançou-se desesperada
Nos braços famintos
Das árvores ressequidas!

(Nos braços famintos das árvores
Que eram os braços famintos dos homens...)

Derramou-se sobre as chagas da terra
E pingou das frestas
Do chapéu roto dos desalmados casebres das ilhas
E escorreu do dorso descarnado dos montes!

Desceu pela noite a serenar
A louca, a vagabunda, a pérfida estrela do céu
Até que ao olhar brando e calmo da manhã
Num aceno farto de promessas
Ressurgiu a terra sarada
Ressumando a fartura e a vida!

Nos braços das árvores...
Nos braços dos homens...

Onésimo Silveira

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O que eu desejo pra você



Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem desesperar.
Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconseqüentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que você não se sinta demasiado seguro.
Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.
Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.
Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.
Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.
Desejo que você descubra ,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.
Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.
Desejo também que você plante uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhe o seu crescimento,
Para que você saiba de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.
Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga "Isso é meu",
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.
Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
Por ele e por você,
Mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar
Desejo por fim que você sendo homem,
Tenha uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenha um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a te desejar.

(Original de Victor Hugo adaptado por Vinícius de Morais)

Foto:Howard Shatz

segunda-feira, julho 18, 2005

O pardalzinho



O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!

Manuel Bandeira

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Poema Antigo



O homem que percorro
com as mãos

e a lua que concebo
na altitude
do tédio


o oceano
penso paralelo — ventre
à praia intata
das janelas brancas
com silêncio

ciclamens-astros
entre
as vozes que calaram
para sempre
o verbo — bússola
com raiz — grito de relevo

O homem que percorro
com as mãos

a estátua que consinto

a lua que concebo.

Maria Teresa Horta

Foto:Michael Vahle

Soneto ao caju



Amo na vida as coisas que têm sumo
E oferecem matéria onde pegar
Amo a noite, amo a música, amo o mar
Amo a mulher, amo o álcool e amo o fumo.

Por isso amo o caju, em que resumo
Esse materialismo elementar
Fruto de cica, fruto de manchar
Sempre mordaz, constantemente a prumo.

Amo vê-lo agarrado ao cajueiro
À beira-mar, a copular com o galho
A castanha brutal como que tesa:

O único fruto – não fruta – brasileiro
Que possui consistência de caralho
E carrega um culhão na natureza.

Vinícius de Moraes

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domingo, julho 17, 2005

Vai-te poesia



Vai-te poesia!
Deixa-me ver friamente
a realidade nua
sem ninfas de iludir
ou violinos de lua.
Vai-te, Poesia!
Não transformes o mundo
descarnado e terrível
num céu de esquecer
com mendigos de nuvens
famintos de estrelas
e feridas a cheirarem a cravos
- enquanto os outros, os de carne verdadeira,
uivam em vão
a sua fome de cadeias
e de pão.
Vai-te, Poesia!
Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos,
para fabricar sonhos
carregados de dinamite de lágrimas.
Vai-te, Poesia!

José Gomes Ferreira

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Os poemas



Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

Mário Quintana

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sexta-feira, julho 15, 2005

Pedra do Sono



El mar soplaba campanas,
las campanas secaban las flores,
las flores eran cabezas de santos.

Mi memoria llena de palabras,
mis pensamientos buscando fantasmas,
mis pesadillas atrasadas de muchas noches.

De madrugada mis pensamientos puros
volaban como telegramas;
y en las ventanas encendidas toda la noche
el retrato de la muerte
hizo esfuerzos desesperados para huir.

João Cabral de Melo Neto

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Elegia: Indo para o leito



Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.

Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o céu
De Maomé. E se no branco põe não é
O cabelo, mas sim a carne em pé.
Deixa que minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha mina preciosa, meu império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.
Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.

Como encadernacao vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-lo. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: tira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.

Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.

John Donne

Foto:Mara Costa

quinta-feira, julho 14, 2005

Che Guevara



Contra ti se ergue a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra.

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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Bashô-Quatro Haicais



Quatro horas soaram
Levantei-me nove vezes
Para ver a lua.

Fecho a minha porta.
Silencioso vou deitar-me
Prazer de estar só

A cigarra... Ouvi:
Nada revela em seu canto
Que ela vai morrer

Quimonos secando
Ao sol. Oh aquela manguinha
Da criança morta!

Manuel Bandeira

Foto:Ognid

Ar de nocturno



Tenho muito medo
das folhas mortas,
medo dos prados
cheios de orvalho.
eu vou dormir;
se não me despertas,
deixarei a teu lado meu coração frio.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Pus em ti colares
com gemas de aurora.
Por que me abandonas
neste caminho ?
Se vais muito longe,
meu pássaro chora
e a verde vinha
não dará seu vinho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Nunca saberás,
esfinge de neve,
o muito que eu
haveria de te querer
essas madrugadas
quando chove
e no ramo seco
se desfaz o ninho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Lorca

Foto:Howard Schatz

quarta-feira, julho 13, 2005

O poeta pede ao seu amor que lhe escreva



Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de kordiscos e açucenas.

Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

Lorca

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My Baby Just Cares for Me



My Baby Just Cares for Me
My baby don't care for shows
My baby don't care for clothes
My baby just cares for me
My baby don't care for cars and races
My baby don't care for high-tone places

Liz Taylor is not his style
And even Lana Turner's smile
Is somethin' he can't see
My baby don't care who knows
My baby just cares for me

Baby, my baby don't care for shows
And he don't even care for clothes
He cares for me
My baby don't care
For cars and races
My baby don't care for
He don't care for high-tone places

Liz Taylor is not his style
And even Liberace's smile
Is something he can't see
Is something he can't see
I wonder what's wrong with baby
My baby just cares for
My baby just cares for
My baby just cares for me

Canta:Nina Simone

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E alegre se fez triste



Aquela clara madrugada que
Viu lágrimas correrem do teu rosto
E alegre se fez triste como se
Chovesse de repente em pleno Agosto.
Ela só viu meus dedos nos teus dedos
Meu nome no teu nome. E demorados
Viu nossos olhos juntos nos segredos
Que em silêncio dissemos separados.
A clara madrugada em que parti.
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
Por onde um automóvel se afastava.
E viu que a Pátria estava toda em ti.
E ouviu dizer-me adeus: essa palavra
Que fez tão triste a clara madrugada

Manuel Alegre

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terça-feira, julho 12, 2005

La java des bombes atomiques



Mon oncle, un fameux bricoleur
faisait en amateur
des bombes atomiques
sans avoir jamais rien appris;
c'était un vrai génie,
question travaux prati-ques.
Il s'enfermait toute la journée
au fond d'son atelier
pour faire ses expériences,
et le soir il rentrait chez nous
et nous mettait en transe
en nous racontant tout.

Pour fabriquer une bombe "A",
mes enfants, croyez-moi,
c'est vraiment de la tarte
La question du détonateur
s'résout en un quart d'heure,
c'est de celles qu'on écarte.
En c'qui concerne la bombe "H",
c'est pas beaucoup plus vache,
mais un'chose me tourmente,
c'est que celles de ma fabrication
n'ont qu'un rayon d'action
de trois mètres cinquante.
Y a quéqu'chose qui cloche là-d'dans.
J'y retourne immédiatement.

Il a bossé pendant des jours
tâchant avec amour
d'améliorer l'modèle.
Quand il déjeunait avec nous,
il dévorait d'un coup
sa soupe au vermicelle.
On voyait à son air féroce
qu'il tombait sur un os,
mais on n'osait rien dire,
et pis un soir pendant l'repas
v'là tonton qui soupire
et qui s'écrie comme ça:
A mesure que je deviens vieux,
je m'en aperçois mieux,
j'ai le cerveau qui flanche
Soyons sérieux, disons le mot,
c'est même plus un cerveau,
c'est comme de la sauce blanche.
Voilà des mois et des années
que j'essaye d'augmenter
la portée de ma bombe,
et je n'me suis pas rendu compte
que la seule chose qui compte
c'est l'endroit où c'qu'elle tombe.
Y a quéqu'chose qui cloche là-d'dans.
J'y retourne immédiatement.

Sachant proche le résultat
tous les grands chefs d'Etat
lui ont rendu visite.
Il les reçut et s'excusa
de ce que sa cagna
était aussi petite,
mais sitôt qu'ils sont tous entrés
il les a enfermés
en disant: "Soyez sages",
et quand la bombe a explosé
de tous ces personnages
il n'est plus rien resté.

Tonton devant ce résultat
ne se dégonfla pas
et joua les andouilles.
Au tribunal on l'a traîné
et devant les jurés
le voilà qui bafouille :
"Messieurs, c'est un hasard affreux,
mais je jure devant Dieu
qu'en mon âme en conscience,
en détruisant tous ces tordus
je suis bien convaincu
d'avoir servi la France."

On était dans l'embarras.
Alors on l'condamna
et puis on l'amnistia.
Et l'pays reconnaissant
l'élut immédiatement
chef du gouvernement.

Boris Vian

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segunda-feira, julho 11, 2005

El prisionero



Por la carretera un soldado
Se arratraba esposado
Por la carretera un soldado
Con sus viejos zapatos
A lo largo del pueblo
Había varias mujeres
Al ver a aquél tan triste
A llorar se pusieron
Vete, soldado valiente, vete
Marcha a la carretera, vete
Te han hecho prisionero

Lo encierran en una fortaleza
Las muñecas no le han soltado
Lo encierran en una fortaleza
Por los pies bien colgado
Los hombres ya se acercan
Cuchillos afilados
La sangre en su piel desnuda
A saltar ya comienza
Habla, valiente soldado, habla
Como eres prisionero
Que hables es necesario

Si digo lo que no quiero decir
Podría marcharme
Si digo lo que no quiero decir
Van a liberarme
Pero si prefiero callarme
Nunca volveré a ver
Ni a mi madre ni a mi mujer
Y tampoco a mis hijos
Llora, soldado valiente, llora
Como eres prisionero
Que llores es necesario

Cuando delató a sus camaradas
Lo dejaron que se fuera
Cuando delató a sus camaradas
Lo dejaron que se fuera
Llevando su pobre vergüenza
Su cuerpo herido, su piel amoratada
Se fue a la carretera
Con sus viejos zapatos
Anda, valiente soldado, anda
Anda la carretera
Pues te han liberado

Cuando entra en su vivienda
El tiempo había pasado
Cuando entra en su vivienda
Una carta ha encontrado
Perdóname hombre mío
No puedo esperar siempre
Y pasar sin cariño
Muere, bravo soldado, muere
Más vale que mueras
Y serás enterrado...

Boris Vian

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domingo, julho 10, 2005

Ignoro o que seja a flor da água



Ignoro o que seja a flor da água
mas conheço o seu aroma:
depois das primeiras chuvas
sobe ao terraço,
entra nu pela varanda,
o corpo inda molhado
procura o nosso corpo e começa a tremer:
então é como se na sua boca
um resto de imortalidade
nos fosse dado a beber,
e toda a música da terra,
toda a música do céu fosse nossa,
até ao fim do mundo,
até amanhecer.
de Branco No Branco

Eugénio de Andrade

Foto:Manuel Passos

sábado, julho 09, 2005

Ao longo da muralha



Ao longo da muralha que habitamos
Há palavras de vida há palavras de morte
Há palavras imensas,que esperam por nós
E outras frágeis,que deixaram de esperar
Há palavras acesas como barcos
E há palavras homens,palavras que guardam
O seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras,surdamente,
As mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras e nocturnas palavras gemidos
Palavras que nos sobem ilegíveis À boca
Palavras diamantes palavras nunca escritas
Palavras impossíveis de escrever
Por não termos connosco cordas de violinos
Nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
E os braços dos amantes escrevem muito alto
Muito além da azul onde oxidados morrem
Palavras maternais só sombra só soluço
Só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
E entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

Mário Cesariny

Imagem daqui

sexta-feira, julho 08, 2005

Cristalizações



1.

Com palavras amo.

2.

Inclina-te como a rosa

só quando o vento passe.

3.

Despe-te

como o orvalho

na concha da manhã.

4.

Ama

como o rio sobe os últimos degraus

ao encontro do seu leito.

5.

Como podemos florir

ao peso de tanta luz?

6.

Estou de passagem:
ama o efémero.

7.
Onde espero morrer

será amanhã ainda?

de Ostinato Rigore

Eugénio de Andrade

Foto: A Brito

quarta-feira, julho 06, 2005

XXV



Quantos em ti lagos e rios
Quantos em ti os oceanos

Água vermelha que aos ouvidos
traz o aviso
de nenhuns campos

É bom sondarmos os abismos
que nunca vão cicatrizando

E ao som da água pressentirmos
de onde provimos
aonde vamos

David Mourão-Ferreira

Foto:Tiago Vale

segunda-feira, julho 04, 2005

A faca



A palavra será faca
o sentido será gume
a imagem será chama
mas a matéria é o lume.

Lume dos nervos riscados
pelo fósforo do medo
lume dos dentes cerrados
pela goma dum segredo.

Lume das faces de cera
lume dos dedos de cal
lume golpe lume pedra
lume silêncio metal.

Lume que se acende a frio
e nos devora por dentro
lume agulha lume fio
da faca pensamento.

Lume navalha que rasga
o ventre da solidão
vingança de quem se gasta
queimando frases em vão.

Lume lembrança das coisas
que nos arderam na voz
cinza viva que nos corta
e nos separa de nós.

José Carlos Ary dos Santos

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Dúvida



Amor
a tua voz
e a minha sensação de vácuo

de liberdades paralelas
ontem
esquinas encontradas
no ângulo dos lábios

Amor
a tua lâmpada de nevoeiro
sulcado
manhãs de aves
súbitas
com noites inventadas

nada
é o teu rosto
insetos de vertigem
sem paisagem.

Maria Teresa Horta

Foto:Nuno Belo

Princípios



Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

Nuno Júdice

Foto:Michael Vahle

domingo, julho 03, 2005

Live 8



Espero que tudo o que aconteceu ontem sirva de alguma coisa para o grupo dos G8.