segunda-feira, janeiro 31, 2005
Adeus, meus sonhos!
Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!
Misérrimo! Votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto,
E minh'alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.
Que me resta, meu Deus?
Morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já não vejo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!
Álvares de Azevedo
Foto:Armindo Dias
Hoje roubei todas as rosas dos jardins
Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.
Eugénio de Andrade
Foto:Hugo Neto
O Drama Heteronímico:
No dia 8 de março de 1914, o denominado Fernando Pessoa explode em três poetas diferentes: um mestre bucólico ( Alberto Caeiro ), um neoclássico estóico ( Ricardo Reis ), um poeta futurista ( Álvaro de Campos ). E eu, e eu?
"E tudo me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve."
(...) A heteronímia nascera como aspiração ao universal, como esperança de Unidade:
"Sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados, / Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, / Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos / Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo"
Ela desemboca, não na totalidade, mas no esfacelamento.
(...) Alberto Caeiro, "mestre" e "origem", dá à luz dois filhos (discípulos, "irmãos" entre si), Ricardo Reis e Álvaro de Campos, o ser moral e o ser vicioso, pólo masculino e pólo feminino.
(...) Caeiro é antes de tudo, o Pai: "Meu mestre, meu mestre perdido tão cedo! Revejo-o na sombra do que sou em mim, na memória que conservo do que sou de morto..." Esse pai é panteísta (...) Caeiro possui a sabedoria e a calma injejadas pelos outros heterônimos.
Ricardo Reis é o conciliado por esforço, o estóico, o "epicurista triste": "A obra de Ricardo Reis, profundamente triste é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer." Sua calma apolínea representa a dominação máscula do sofrimento, por força moral, por busca de "altura". Diante de seu mestre Caeiro, ele é a contradição homogênea.
Enquanto Álvaro de Campos é o outro radical, a contradição heterogênea, a subversão pura. Mesmo sexualmente ele é o outro, a mulher: "Eu a mulher legítima e triste do Conjunto". Moderno, engenheito, sensacionista, paradoxal, sadomasoquista, invertido, inconciliado (...)
Os versos de Caeiro são livres, têm a "naturalidade" de um discurso oral enunciado em plena natureza e em harmonia como esta. Os versos de Reis são contidos, de um "neoclassicismo científico". Os versos de Campos são livres, mas não como os de Caeiro. Prosa disposta em forma poética, esses versos são frequentemente mais do que livres, desencadeados. Seu discurso se deixa atravessar e esquartejar pelas pulsões inconscientes, que se manifestam como "anomalias" discursivas: caracteres tipográficos variados, assimetria brutal entre versos extremamente longos e outros compostos de uma única palavra, sobrecarga de sinais de pontuação.
(...) A farsa heteronímica se desenlaça em drama heterômico. (Pessoa, envelhecendo, exprime o desejo de desmascarar os heterônimos, assumindo-os sobre seu próprio nome:
"Já é tarde, e portanto absurdo, para o disfarce absoluto"(...)
"Começo a conhecer-me. Não existo."
Fernando Pessoa
Em desamparo, caminhou
Em desamparo, caminhou entre os ciprestes.
Quando esgotado, um refúgio procurava
o templo branco entreviu, na luz agreste.
No átrio, claudicou arrepiado:
- Um sopro perpassou entre as colunas,
estilete filiforme, agudo e gelado...
Devagar, subiu a escadaria;
Sabia de antemão que o aguardava
uma forma luminosa, bela e esguia...
Manuel Filipe
Foto: Wind
Escolha do poema: ognid
domingo, janeiro 30, 2005
Rebeldia
Soltem-me
as algemas
Quero
a minha alma livre
meu corpo livre
meu pensamento livre
Esbofetear o mundo
e cuspir
na vida
Manuela Amaral
Ruy Belo
Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhastes súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já a minha única viúva
Não posso dar-te mais do te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente.
Foto de "Ognid"
Ferro
No sonho esta noite
Vi um grande temporal.
Ele atingiu os andaimes
Curvou a viga feita
A de ferro.
Mas o que era de madeira
Dobrou-se e ficou.
Bertolt Brecht
When You Kiss Me
This could be it, I think I'm in love
It's love this time
It just seems to fit, I think I'm in love
This love is mine
I can see you with me when I'm older
All my lonely nights are finally over
You took the weight of the world off my
shoulders (the world just goes away)
Chorus:
Oh, when you kiss me
I know you miss me -
and when you're with me
The world just goes away
The way you hold me
The way you show me that you
adore me - oh, when you kiss me
Oh, yeah
You are the one, I think I'm in love
Life has begun
I can see the two of us together
I know I'm gonna be with you forever
Love couldn't be any better
Repeat Chorus
Instrumental Solo
I can see you with me when I'm older
All my lonely nights are finally over
You took the weight of the world off my
shoulders (the world just goes away)
Repeat Chorus
And when you kiss me
I know you miss me
Oh, the world just goes away
When you kiss me
Shania Twain
Segunda
Quando foi que demorei os olhos
sobre os seios nascendo debaixo das blusas,
das raparigas que vinham, à tarde, brincar comigo?...
... Como nasci poeta,
devia ter sido muito antes que as mães se apercebecem disso
e fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, não sei ao certo.
Mas a história dos peitos, debaixo das blusas,
foi um grande mistério.
Tão grande
que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossíveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.
E desafiava,
sem razão aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez,
de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tão certeira,
que levou o chapéu do senhor administrador!
Em toda a vila,
se falou, logo, num caso de política;
o senhor administrador
mandou vir, da cidade, uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver;
e os do partido contrário,
deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o céu...
Tal era o mistério dos seios nascendo debaixo das blusas!
Manuel da Fonseca
Menina dos olhos de água
Menina em teu peito sinto o Tejo
e vontades marinheiras de aproar
Menina em teus lábios sinto fontes
de água doce que corre sem parar
Menina em teus olhos vejo espelhos
e em teus cabelos nuvens de encantar
E em teu corpo inteiro sinto feno
rijo e tenro que nem sei explicar
Se houver alguém que não goste
não gaste, deixe ficar
que eu só por mim quero te tanto
que não vai haver menina para sobrar
Aprendi nos 'esteiros' com Soeiro
e aprendi na 'fanga' com Redol
Tenho no rio grande o mundo inteiro
e sinto o mundo inteiro no teu colo
Aprendi a amar a madrugada
que desponta em mim quando sorris
És um rio cheio de água lavada
e dás rumo à fragata que escolhi
Se houver alguém que não goste
não gaste, deixe ficar
que eu só por mim quero te tanto
que não vai haver menina para sobrar.
Pedro Barroso
Foto:António Melo
Eu sei, não te conheço, mas existes ...
Eu sei, não te conheço mas existes.
por isso os deuses não existem,
a solidão não existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.
Não me perguntes como mas ainda me lembro
quando no outono cresceram no teu peito
duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas mãos
e perfumaram depois a minha boca.
Eu sei, não digas, deixa-me inventar-te.
não é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos
sobre a tua nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há muito e desagua em ti,
Porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.
É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira de habitares
Em todas as palavras do meu canto.
Tenho construído o teu nome com todas as coisas.
tenho feito amor de muitas maneiras,
docemente,
lentamente
desesperadamente
à tua procura, sempre à tua procura
até me dar conta que estás em mim,
que em mim devo procurar-te,
e tu apenas existes porque eu existo
e eu não estou só contigo
mas é contigo que eu quero ficar só
porque é a ti,
a ti que eu amo.
Joaquim Pessoa
Foto:Pedro Marques Pereira
Ruy Belo
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro.
Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum.
Foto: Jorge Casais
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro.
Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum.
Foto: Jorge Casais
sábado, janeiro 29, 2005
Se Bastasse Una Canzone
Se bastasse una bella canzone
a far piovere amore
si potrebbe cantarla un milione
un milione di volte
bastasse già
bastasse già
non ci vorrebbe poi tanto a imparare ad amare di più
se bastasse una vera canzone
per convincere gli altri
si potrebbe cantarla più forte
visto che sono in tanti
fosse così fosse così
non si dovrebbe lottare per farsi sentire di più
se bastasse una buona canzone
a far dare una mano
si potrebbe trovarla nel cuore
senza andare lontano
bastasse già bastasse già
non ci sarebbe bisogno di chiedere la carità
dedicato a tutti quelli che
sono allo sbando
dedicato a tutti quelli che
non hanno avuto ancora niente
e sono ai margini da sempre
dedicato a tutti quelli che
stanno aspettando
dedicato a tutti quelli che
rimangono dei sognatori
per questo sempre più da soli
se bastasse una grande canzone
per parlare di pace
si potrebbe chiamarla per nome
aggiungendo una voce
e un'altra poi e un'altra poi
finche diventa di un solo colore più vivo che mai
dedicato a tutti quelli che
sono allo sbando
dedicato a tutti quelli che
hanno provato ad inventare
una canzone per cambiare
dedicato a tutti quelli che
stanno aspettando
dedicato a tutti quelli che
venuti su con troppo vento
quel tempo gli è rimasto dentro
in ogni senso
hanno creduto cercato e voluto che fosse così.
Eros Ramazzotti
Foto:António Melo
Florbela Espanca
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
Kiss from a rose
There used to be a greying tower alone on the sea.
You became the light on the dark side of me.
Love remained a drug that's the high and not the pill.
But did you know,
That when it snows,
My eyes become large and,
The light that you shine can be seen.
Baby,
I compare you to a kiss from a rose on the grave.
...kiss from a rose on the grave.
Ooh,
The more I get of you,
Ooh...................
Stranger it feels, yeah.
And now that your rose is is in bloom.
A light hits the gloom on the grave.
There is so much a man can tell you,
..there....................woa...
So much he can say.
there's so much inside.
You remain,
you.......
My power, my pleasure, my pain, baby
To me you're like a growing addiction that I can't deny.. yeah.
Won't you tell me is that healthy, baby?
But did you know,
That when it snows,
My eyes become large and the light that you shine can be seen.
Baby,
I've...
I compare you to a kiss from a rose on the grave.
been.............. kissed from a rose on the grave.
Ooh, the more I get of you
...ooh...........the..
Stranger it feels, yeah
stranger it feels, ...yeah.
Now that your rose is in bloom.
A light hits the gloom on the grey,
I've been kissed by a rose on the grave,
...I've been.......................I've...
I've been kissed by a rose
...been kissed by a rose on the grave.
I've been kissed by a rose on the grave,
...I've been.......................I've...
...And if I should fall, at all
I've been kissed by a rose
...been kissed by a rose on the grave.
There is so much a man can tell you,
..there....................woa...
So much he can say.
there's so much inside.
You remain
you.......
My power, my pleasure, my pain.
To me you're like a growing addiction that I can't deny, yeah
Won't you tell me is that healthy, baby.
But did you know,
That when it snows,
My eyes become large and the light that you shine can be seen.
Baby,
I've...
I compare you to a kiss from a rose on the grave.
been.............. kissed from a rose on the grave.
Ooh, the more I get of you
...ooh...........the..
Stranger it feels, yeah
stranger it feels.
Now that your rose is in bloom,
A light hits the gloom on the grave.
Yes I compare you to a kiss from a rose on the grave
I've..........been kissed from a rose on the grave.
Ooh, the more I get of you
...ooh...........the..
Stranger it feels, yeah
stranger it feels. ...yeah.
And now that your rose is in bloom
aah-ee-aah...
A light hits the gloom on the grave
aah-ee-aah...
Now that your rose is in bloom,
A light hits the gloom on the grave.
Seal
Corpo
Que não seja estátua!
Seja às vezes carne
Entre rosa e sangue
Entre forma e fundo.
Saiba ser o fruto
Sem ser só o gomo
Seja vinho novo
Seja apenas sumo.
Seja nevoeiro.
Venha nu, mas venha
Envolto na bruma....
Possa ser mistério...
Seja cais à espera
Seja barco à vela;
Possa ser mar alto
Possa ainda ser espuma.
(Traga o encanto de ser
impossível e longínquo
como um postal colorido
de uma cidade qualquer)
Que para além da imagem
Haja madrugada.
Seja uma viagem
Entre tudo e nada.
Como o álcool puro
Quando se evapora
E risca o futuro
Do lado de fora...
Fernando Tavares Rodrigues
Foto:António Melo
sexta-feira, janeiro 28, 2005
Eu Sempre Pensei
E eu sempre pensei: as mais simples palavras
Devem bastar.Quando eu disser como é
O coração de cada um ficará dilacerado.
Que sucumbirás se nao te defenderes
Isso logo verás.
Bertolt Brecht
Foto:Armindo Dias
Sortilégio
Eu não sei se é pecado
nem se quero sabê-lo!
(Não se pode viver sobre certas verdades!)
- Quero o seu corpo cansado;
as minhas duras mãos moendo o seu cabelo;
seus olhos gastos de saudades.
Quero-a a meus pés, vencida
do seu amor que a excede,
e, vencida, a vencer o meu limbo de medos.
Perder-me e tê-la perdida
os dois numa só carne, à raiva que nos pede
sejam garras os dedos!
A vida, como lobo,
à nossa roda, corre,
e eu e ela desfeitos num suor primitivo.
Ai! amor como roubo
aos abismos da morte! Ai! morte que se morre
sobre a tortura de estar vivo!
E isto somos nós
a sua sede e eu,
homem demónio e deus dum sonho desvairado!
- Meus irmãos, que é de vós?
Como podes perder, ó Céu, quem te perdeu,
se és tão longe e fechado?
António de Sousa
Foto:Nanã Sousa Dias
Jealous Guy
I was dreaming of the past,
And my heart was beating fast,
I began to lose control,
I began to lose control,
I didn't mean to hurt you,
I'm sorry that i made you cry,
I didn't want to hurt you,
I'm just a jealous guy.
I was feeling insecure,
You might not love me anymore,
I was shivering inside,
I was shivering inside,
I didn't mean to hurt you,
I'm sorry that i made you cry,
I didn't want to hurt you,
I'm just a jealous guy.
I didn't mean to hurt you,
I'm sorry that i made you cry,
I didn't want to hurt you,
I'm just a jealous guy.
I was tryin' to catch your eye,
Thought that you was tryin' to hide,
I was swallowing my pain,
I was swallowing my pain,I didn't mean to hurt you,
I'm sorry that i made you cry,
I didn't want to hurt you,
I'm just a jealous guy.
I'm just a jealous guy,
I'm just a jealous guy,
I'm just a jealous guy.
John Lennon
quinta-feira, janeiro 20, 2005
Márcia Maia
peregrinação
uma palavra
que diga de dor sem doer
de fogo sem queimar
de amor
sem dizer absolutamente
nada.
uma palavra-nada
oca inútil vazia
uma anti-palavra
(a que preciso)
: onde encontrá-la?
segredo
quando eu morrer
não chores
nem te debruces sentido
sobre o que não foi.
sente apenas a ausência do meu amor
como um arrepio
te roubar o meu perfume
e embaçar a minha face
qual filme antigo que perde a cor.
ternura
não são teus olhos
ou os traços do teu rosto
que me encantam
mas a luz que os ilumina
quando me olhas
que atenua as rugas
em meu rosto
e me devolve a doçura
que eu tinha
e se perdeu no avesso
dos espelhos.
Preparativos de viagem
Abriu o vinho, cortou o pão, o queijo, arrumou os copos e a faca na bandeja. Nua, foi até ele. Que, como sempre, perguntou para que tanta frescura. Não respondeu. Enfiou-lhe a faca à esquerda do esterno. Até o cabo. Repetiu o movimento. Ele ficou imóvel, grito parado na boca aberta. Depois, lavou a faca. Guardou-a no estojo de jacarandá. Vestiu-se de seda preta. Checou o dinheiro e a passagem. E, antes de partir para uma vida nova, comeu o queijo e bebeu o vinho. Afinal, de sua casa ninguém jamais saíra com fome. Não haveria de ser a primeira.
Mudança de ventos
Tábua de marés
Selecção de poemas e prosa – Wind e Lique
segunda-feira, janeiro 17, 2005
O cão atómico
1.
Este cão tem folhas nas orelhas,
com quatro talos
mas o que este cão deveria ter era calos,
e só tem olhos e ossos
e morrinha num dente!
Mas, meu Deus, este cão
quase o diria meu irmão
parece gente!
2.
Este cão é redondo. Está deitado,
rosna com gengivas de uivo.
Dizem-me que foi lobo,
mas perdeu a alcateia
como os homens perderam a razão,
que hoje serve de osso ao cão
escapou ao cogumelo nuclear,
e por isso se foi deitar.
Vitorino Nemésio
domingo, janeiro 16, 2005
Poesia
Não é compor a preto
no branco do papel,
Palavras estéreis
Liricamente floreadas.
O arco-íris multicolor
da poesia
É a tua vida!
E tu és o autor!
Está nas tuas mãos
a composição
da mais bela
obra-prima de sempre.
Realiza com amor
a poesia da vida.
Cistelo
Lisboa
Alguém diz com lentidão:
"Lisboa, sabes..."
Eu sei, é uma rapariga
Descalça e leve.
Um vento súbito e claro
Nos cabelos,
Algumas rugas finas
A espreitar-lhe os olhos,
A solidão aberta
Nos lábios e nos dedos,
Descendo degraus
E degraus
E degraus até ao rio
Eu sei. E tu, sabias?
Eugénio de Andrade
Foto: ognid
Liberdade em segurança
Os réus entraram. Três. Fardados de azul. De escudo a tiracolo e
viseira erguida.
O juiz pôs a touca com um pequeno jeito de mão direita. Afirmou
- Levante-se o queixoso.
O queixoso estava deitado. Não se levantou.
- Tem alguma coisa a acrescentar quanto à sua arguição contra os
réus? - insistiu o juiz, dando outro pequeno jeito na touca.
O queixoso nada disse. Continuava deitado.
- Dadas as circunstancias atenuantes e outras, declaro os três réus
inocentes. O queixoso demonstra à sociedade ser provocador. E
silencioso. Revolucionário alterante de ordem estabelecida.
Destabilizador da liberdade em segurança. Que os réus, absolvidos, se
retirem. Em segurança e liberdade.
Os três réus perfilaram-se. Fizeram a continencia com a mão direita.
E sairam. Pela porta da direita.
Sairam os meirinhos. Pela porta do fundo.
E também o juiz. Já sem touca. Pela porta da frente.
Sairam todos.
O queixoso não. Estava deitado, como já tive oportunidade de
informar. Com cinco tiros no baixo-ventre. E morto.
Mário Henrique Leiria
Coreografia
No palco da noite bailado de corpos
Cenário de sombras
esculpidas em nu
Tu danças as mãos
inscreves contornos
na minha nudez
Eu sou dimensão
que dança em teu espaço
Não temos cansaço
Só temos volúpia
Desejo
Harmonia
Vontade de luta
Ao longo de ti descubro caminhos. Trajecto de boca
E danço contigo
E esqueço a memória
Eu sou o teu sangue
A mesma saliva
O mesmo suor
Nós somos a mesma
Mulher-Repetida.
Manuela Amaral
Foto:Victor Melo
sábado, janeiro 15, 2005
José Régio
Corpo de ânsia.
Eu sonhei que te prostava,
E te enleava
Aos meus músculos!
Olhos de êxtase,
Eu sonhei que em vós bebia
Melancolia
De há séculos!
Boca sôfrega,
Rosa brava
Eu sonhei que te esfolhava
Petala a pétala!
Seios rígidos,
Eu sonhei que vos mordia
Até que sentia
Vómitos!
Ventre de mármore,
Eu sonhei que te sugava,
E esgotava
Como a um cálice!
Pernas de estátua,
Eu sonhei que vos abria,
Na fantasia,
Como pórticos!
Pés de sílfide,
Eu sonhei que vos queimava
Na lava
Destas mãos ávidas!
Corpo de ânsia,
Flor de volúpia sem lei!
Não te apagues, sonho! mata-me
Como eu sonhei.
Casimiro de Brito
SE EU TE PEDISSE A PAZ, QUE ME DARIAS
PEQUENO INSECTO DA MEMÓRIA DE QUEM SOU
NINHO E ALIMENTO? SE EU TE PEDISSE A
PAZ, A PEDRA DO SILÊNCIO COBRINDO-ME
DE PÓ, A VOZ RUBRA DOS FRUTOS, QUE ME
DARIAS RESPIRAÇÃO PAUSADA DE OUTRO
CORPO SOB O MEU CORPO?
PERDOA-ME POR SER TÃO SÓ, E FALAR-TE
AINDA DO MEU EXÍLIO. PERDOA-ME SE NÃO
TE PEÇO A PAZ. APENAS PERGUNTO: QUE ME
DARIAS SE A PEDISSE?
A SABEDORIA?
UM CAVALO DE OLHOS VERDES?
UM TRONCO DE MADEIRA PARA NELE GRAVAR O TEU NOME JUNTO AO MEU?
OU APENAS UMA FACA DE FOGO, INTRANQUILA, NO CENTRO DO CORAÇÃO?
NADA TE PEÇO, NADA. VISITO, SIMPLESMENTE, O TEU CORPO DE CINZA.
FALO-LHE DE MIM, ENTREGO-TE O MEU DESTINO. E DELE ME LIBERTO SÓ
DE PERGUNTAR: QUE ME DARIAS SE EU TE PEDISSE A PAZ E SOUBESSES
DE COMO A QUERO REVESTIDA POR UMA CROSTA DE SOL EM LIBERDADE?
Porto Sentido
Quem vem e atravessa o rio
Junto à serra do Pilar
vê um velho casario
que se estende ate ao mar
Quem te vê ao vir da ponte
és cascata, são-joanina
dirigida sobre um monte
no meio da neblina.
Por ruelas e calçadas
da Ribeira até à Foz
por pedras sujas e gastas
e lampiões tristes e sós.
E esse teu ar grave e sério
dum rosto e cantaria
que nos oculta o mistério
dessa luz bela e sombria
[refrão]
Ver-te assim abandonada
nesse timbre pardacento
nesse teu jeito fechado
de quem mói um sentimento
E é sempre a primeira vez
em cada regresso a casa
rever-te nessa altivez
de milhafre ferido na asa.
Rui Veloso
Bebido o luar
Bebido o luar, ébrios de horizontes,
Julgamos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.
Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.
Por que jardins que nós não colheremos,
Límpidos nas auroras a nascer,
Por que o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver
Sophia de Mello Breyner Andresen
Mercedes Benz
Oh Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz ?
My friends all drive Porsches, I must make amends.
Worked hard all my lifetime, no help from my friends,
So Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz ?
Oh Lord, won’t you buy me a color TV ?
Dialing For Dollars is trying to find me.
I wait for delivery each day until three,
So oh Lord, won’t you buy me a color TV ?
Oh Lord, won’t you buy me a night on the town ?
I’m counting on you, Lord, please don’t let me down.
Prove that you love me and buy the next round,
Oh Lord, won’t you buy me a night on the town ?
Everybody!
Oh Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz ?
My friends all drive Porsches, I must make amends,
Worked hard all my lifetime, no help from my friends,
So oh Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz ?
That’s it!
Janis Joplin
sexta-feira, janeiro 14, 2005
Doze moradas de silêncio
Hoje é dia de coisas simples
(Ai de mim! Que desgraça!
O creme de terra não voltará a aparecer!)
coisas simples como ir contigo ao restaurante
ler o horóscopo e os pequenos escândalos
folhear revistas pornográficas e
demorarmo-nos dentro da banheira
Na ladeia pouco há a fazer
falaremos do tempo com os olhos presos dentro das
chávenas
inventaremos palavras cruzadas na areia... jogos
e murmúrios de dedos por baixo da mesa
beberemos café
sorriremos à pessoas e às coisas
caminharemos lado a lado os ombros tocando-se
(se estivesses aqui!)
em silêncio olharíamos a foz do rio
é o brincar agitado do sol nas mãos das crianças
descalças
hoje
Al Berto
Foto:Paulo Castro
Bocage
Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:
Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:
Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:
Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.
Foto:A Brito
Assim, contigo
Gosto de olhar os teus cabelos molhados. Depois, senti-los nas minhas mãos, nos meus lábios. Conhecer a tua face com os meus dedos. E tranquilizar-me, assim, contigo.
Texto: ognid
Foto:Paulo Alegria
quinta-feira, janeiro 13, 2005
O binómio de Newton
Sejam A um anel, a e b dois elementos permutáveis de A (isto é, tais que ab = ba) e n um número natural não nulo. O elemento (a+b)^n de A pode ser escrito na forma seguinte, dita fórmula do Binômio de Newton:
(...)
onde
(...)
são os chamados coeficientes binomiais, ou coeficientes do binômio.
Em particular,
(a+b) (...)
O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó---óóóóóó óóó---óóóóóóó óóóóóóóó
(O vento lá fora).
Álvaro de Campos
(...)
onde
(...)
são os chamados coeficientes binomiais, ou coeficientes do binômio.
Em particular,
(a+b) (...)
O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó---óóóóóó óóó---óóóóóóó óóóóóóóó
(O vento lá fora).
Álvaro de Campos
O Nascido Depois
Eu confesso: eu
Não tenho esperança.
Os cegos falam de uma saída. Eu
Vejo.
Após os erros terem sido usados
Como última companhia, à nossa frente
Senta-se o Nada.
Bertolt Brecht
Libertação
Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.
Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.
Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.
Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.
Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Longe daqui, onde queiras,
a vida será maior.
Nem as espranças do céu
me conseguem demover
Este amor é teu e meu:
só na terra o queremos ter.
David Mourão-Ferreira
Foto:Nanã Sousa Dias
Esclarecimento
Peço desculpa a quem costumo visitar, mas estou sem computador.
Espero que a situação se resolva o mais depressa possível.
Beijos
wind
Espero que a situação se resolva o mais depressa possível.
Beijos
wind
quarta-feira, janeiro 12, 2005
O meu orgulho
Lembro-me o que fui dantes. Quem me dera
Não me lembrar! Em tardes dolorosas
Eu lembro-me que fui a Primavera
Que em muros velhos fez nascer as rosas!
As minhas mãos, outrora carinhosas,
Pairavam como pombas... Quem soubera
Pois que tudo passou e foi quimera,
E porque os muros velhos não dão rosas!
São sempre os que eu recordo que me esquecem...
Mas digo para mim: «Não me merecem...»
E já não fico tão abandonada!
Sinto que valho mais, mais pobrezinha:
Que também é orgulho ser sozinha,
E que também é nobreza não ser nada!
Florbela Espanca
domingo, janeiro 09, 2005
Daniel Filipe
Canto e lamentação da cidade ocupada
8.
O que menos importa é o fato surrado
afinal cada qual tem o seu próprio fado
Comer uma só vez por dia não tem importância
é até um bom preceito de elegância
Recear a prisão a pancada as torturas
ora quem os manda meter-se em aventuras
Não chegar o dinheiro para pagar o aluguer
nem para ir ao cinema nem para ter mulher
Disparates Doutra forma o poder cai na rua
e lembrem-se senhores a revolução continua
9.
Mas há a noite. O estar sozinho
e no entanto acompanhado – servo de um deus estranho
cumprindo o ritual jamais completo.
Mas há o sono. A lúcida surpresa
de um mundo imaterial e necessário,
com praias onde o corpo se desprende.
Mas há o medo. Há sobretudo o medo.
Fel, rancor, desconhecido apelo,
suor nocturno, rápido suicídio.
Balada para a trégua possível
Foto: António Melo
1.
Esta é a trégua possível, merecida
gerada no teu ventre de mulher.
Beijo, adiado, a tua face, vida!
E deixo, livre, o coração bater.
8.
Em tuas mãos obreiras nascem flores.
Em teu sexo germinam alvoradas.
manhãs de outono sem clarões de espadas
risos, perfumes, cores.
in “A invenção do amor e outros poemas”
Selecção de poemas: Wind e Lique
8.
O que menos importa é o fato surrado
afinal cada qual tem o seu próprio fado
Comer uma só vez por dia não tem importância
é até um bom preceito de elegância
Recear a prisão a pancada as torturas
ora quem os manda meter-se em aventuras
Não chegar o dinheiro para pagar o aluguer
nem para ir ao cinema nem para ter mulher
Disparates Doutra forma o poder cai na rua
e lembrem-se senhores a revolução continua
9.
Mas há a noite. O estar sozinho
e no entanto acompanhado – servo de um deus estranho
cumprindo o ritual jamais completo.
Mas há o sono. A lúcida surpresa
de um mundo imaterial e necessário,
com praias onde o corpo se desprende.
Mas há o medo. Há sobretudo o medo.
Fel, rancor, desconhecido apelo,
suor nocturno, rápido suicídio.
Balada para a trégua possível
Foto: António Melo
1.
Esta é a trégua possível, merecida
gerada no teu ventre de mulher.
Beijo, adiado, a tua face, vida!
E deixo, livre, o coração bater.
8.
Em tuas mãos obreiras nascem flores.
Em teu sexo germinam alvoradas.
manhãs de outono sem clarões de espadas
risos, perfumes, cores.
in “A invenção do amor e outros poemas”
Selecção de poemas: Wind e Lique
sábado, janeiro 08, 2005
Banalidades
Deito a cabeça no teu peito
Enrolada nos teus braços
E desfio com os dedos na tua pele
As banalidades que fizeram o meu dia
E tudo se torna importante
Porque nada é banal
Quando dito na tua pele
Desfiado no teu peito
Enrolada nos teus braços
Texto:
sexta-feira, janeiro 07, 2005
You Are Welcome To Elsinore
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinor
E há palavras noturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos conosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o
amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
Mário Cesariny de Vasconcelos
Gabriel
I can fly
but I want his wings
I can shine even in the darkness
but I crave the light that he brings
revel in the songs that he sings
my angel gabriel
I can love
but I need his heart
I am strong even on my own
but from him I never want to part
he's been there since the very start
my angel gabriel
my angel gabriel
bless the day he came to be
angel's wings carried him to me
heavenly
I can fly
but I want his wings
I can shine even in the darkness
but I crave the light that he brings
revel in the songs that he sings
my angel gabriel
my angel gabriel
my angel gabriel
Lamb
Cantigas Leva-as o Vento...
A lembrança dos teus beijos
Inda na minh' alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas dum livro triste.
Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desaparecido
Revive numa saudade
Florbela Espanca
A Voz
Da tua voz
o corpo
o tempo já vencido
os dedos que me
vogam
nos cabelos
e os lábios que me
roçam pela boca
nesta mansa tontura
em nunca tê-los...
Meu amor
que quartos na memória
não ocupamos nós
se não partimos...
Mas porque assim te invento
e já te troco as horas
vou passando dos teus braços
que não sei
para o vácuo em que me deixas
se demoras
nesta mansa certeza que não vens.
Maria Teresa Horta
quinta-feira, janeiro 06, 2005
O Beijo
Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escaracéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
Donde teria vindo! (não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?
É uma ave estranha colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.
E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...
Alexandre O'Neill
Foto:Paulo Lopes
Canção Primaveril
Anda no ar a excitação
de seios súbito exibidos
à torva luz de um alçapão,
por onde os corpos rolarão,
mordidos!
Ou é um deus, oi foi a Morte
que nos vestiu este torpor;
e a Primavera é um chicote,
abrindo as veias e o decote
ao meu amor!
Esqueço que os dedos têm ossos
é só de sangue esta caricia;
apenas nervos os pescoços...
Mas nos teus olhos, nos meus olhos,
a luz da morte brilha.
David Mourão-Ferreira
Foto:Carlos Freitas
O círculo
O círculo é a forma eleita
É ovo, é zero.
É ciclo, é ciência.
Nele se inclui todo o mistério
E toda a sapiência.
É o que está feito,
Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.
A senda mais perigosa.
Em nós se consumando,
Passando a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando.
Ana Hatherly
quarta-feira, janeiro 05, 2005
Quase
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Mário de Sá-Carneiro
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